terça-feira, 4 de abril de 2023

MARROCOS: «A POPULAÇÃO ESTÁ A MOBILIZAR-SE»

(Boletim nº 119 - Abril 2023)

Pressionado pelo mal-estar político e social interno e pela crise internacional, o regime marroquino tem recorrido sistematicamente a uma dura repressão interna e ao suborno e chantagem externos — “armas” que adiam os problemas mas não contribuem para a sua resolução.

Contra um «poder pessoal e absoluto»
Nos últimos meses os relatórios sobre a situação dos direitos humanos em Marrocos, e no território que este ocupa no Sahara Ocidental, têm-se multiplicado. Instituições como a Amnistia Internacional, a Human Rights Watch e o Departamento de Estado dos EUA deram conta da sua leitura sobre a situação que se vive naqueles dois territórios, com as suas populações submetidas a um regime autoritário como o são todos os regimes coloniais.
O regime de Rabat caiu numa perseguição cega a “tudo o que mexe” que, se transmite externamente sinais de uma grande insegurança, transmite sinais intimidatórios internamente.
Um caso emblemático desta estratégia é o de Mohamed Ziane, ex-Presidente da Ordem dos Advogados e ex-Ministro dos Direitos Humanos de um governo do falecido rei Hassan II, que foi também deputado e fundador do Partido Liberal Marroquino. Com o passar do tempo – Ziane celebrou na prisão, em 14 de Fevereiro último, o seu octogésimo aniversário – tornou-se uma voz crítica do regime. Envolveu-se decididamente no Hirak do Rif, um movimento social que varreu esta região do norte de Marrocos em 2016-2017, tendo sido o advogado principal do seu dirigente Nasser Zefzafi, que foi julgado juntamente com outros 52 responsáveis do protesto por «prejudicar a segurança interna do Estado» e por «rebelião». Pelas críticas públicas que então fez a declarações e decisões por parte do governo durante esses protestos, tornou-se um alvo das autoridades, sendo uma das vítimas marroquinas do programa israelita de espionagem Pegasus. A gota de água neste processo foi a entrevista que deu, em Outubro de 2022, ao diário El Independiente, onde critica a frequente ausência do rei, com um poder quase absoluto, numa situação internacional tão difícil. A uma série de perguntas foi respondendo sem rodeios: «Quem governa efectivamente o país? Certamente que os amigos do rei.», «Considera que Marrocos é uma ditadura? Marrocos é um poder pessoal e absoluto. Não é Saddam Hussein ou Gaddafi ou Hitler ou Estaline, mas é um poder muito pessoal e muito absoluto.» Mais à frente: «Uma sociedade pode viver do patriotismo? Não. Nem do patriotismo nem do expansionismo. Isso é um disparate do século XIX. Mesmo no século XX não foi aceite. No século XXI, não acreditar no universalismo é um disparate.»
Em 21 de Novembro de 2022, Ziane foi encarcerado na prisão de El Arjat, nos arredores de Rabat, acusado de uma miríade de delitos pelo Ministério do Interior, que ele nega totalmente, entre os quais «ofensa a funcionários públicos e ao poder judicial», «insulto a um organismo constituído», «difamação», «adultério» e «assédio sexual», e condenado a uma pena de 3 anos.
Outro caso singular de perseguição por parte do regime marroquino é o do jornalista Ignacio Cembrero. No passado mês de Março o Tribunal de Primeira Instância de Madrid arquivou o processo instaurado por Marrocos contra ele, por ter acusado os serviços secretos marroquinos de serem responsáveis pela espionagem, através do Pegasus, dos telemóveis de políticos, jornalistas e activistas. Entre outras informações, escreveu na sua conta no Twitter que as investigações do Forbidden Stories, assim como um relatório do Parlamento Europeu, e até declarações da ex-ministra dos Negócios Estrangeiros de Espanha Arancha González Laya, apontavam para a espionagem de Rabat recorrendo àquele programa israelita. «[Ignacio Cembrero] Relatou que o jornal digital Maroc-Diplomatic publicou duas mensagens suas através do WhatsApp com personalidades espanholas, mensagens que os serviços secretos marroquinos disponibilizaram a este meio de comunicação, e que em Abril de 2014 foi alvo de falsificação de identidade no Facebook e recebeu ameaças de morte. Um ano mais tarde, foi seguido e fotografado em cafés em Madrid e Paris, fotografias essas que foram publicadas por jornais marroquinos simpatizantes do regime. Foram também utilizadas para fazer uma fotomontagem, publicada na imprensa marroquina, dele sentado ao lado do Príncipe Moulay Hicham, considerado como o membro inconveniente da família real marroquina.»
Esta foi a quarta vez que Marrocos perdeu as suas acções judiciais contra este jornalista: duas por alegadamente glorificar o terrorismo foram arquivadas, e da terceira, apresentada por um homem de negócios ligado aos serviços secretos marroquinos, foi absolvido.
Esta repressão ocorre num momento de grave situação económica e social no país. Diz o Secretariado Nacional da ATTAC/CADTM
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Comité pour l'Abolition des Dettes Ilégitimes.
Marrocos num comunicado de 18 de Fevereiro :
«Marrocos está a passar por um aumento sem precedentes no preço dos alimentos, da energia e dos serviços. A população está a mobilizar-se. Há apelos dos sindicatos para manifestações e marchas de protesto, e também da Frente Social Marroquina (colectivo social) em comemoração do 12º aniversário do movimento de 20 de Fevereiro (um grande movimento de protesto social nascido em Marrocos em 2011, no contexto das revoltas populares que envolveram o Norte de África e o Médio Oriente/região árabe). (…).
«No contexto da actual crise global, as consequências da dependência económica de Marrocos ligadas às políticas liberais estão mais uma vez a tomar forma. O défice global da balança comercial, bem como os elevados custos de energia, alimentação, agricultura, indústria e outros, agravaram-se num contexto de abrandamento económico e declínio das receitas governamentais. Os subsídios e as reduções de impostos para os grandes capitalistas reflectem-se directamente no orçamento público. Daí o crescente recurso ao endividamento. A dívida pública atingiu níveis enormes. As suas condicionalidades são cada vez mais duras, impondo medidas de austeridade e atacando os ganhos dos assalariados e das camadas populares do país, muitos dos quais sofrem com o peso da dívida privada, principalmente os microcréditos.»
A ATTAC/CADTM lembra que em Outubro próximo irão decorrer em Marraquexe as assembleias anuais do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, e desafia a população a aproveitar a ocasião «para denunciar as suas políticas criminosas».
Um outro artigo crítico é o de Aziz Chahir, doutorado em ciências políticas e professor-investigador em Salé, Marrocos, que aborda as tensões sociais no país.
«Enquanto os indicadores socioeconómicos do país estão no vermelho, Marrocos está sem dúvida atolado numa crise económica duradoura que poderá alimentar a agitação social que se manifesta regularmente.
«De acordo com um inquérito realizado em 2019 pelo Gabinete Nacional para o Desenvolvimento Humano (ONDH), quase 45% dos marroquinos consideram-se pobres (38,6% nas zonas urbanas e 58,4% nas zonas rurais).
«Isto soma-se aos 3,2 milhões de pessoas que se calcula terem caído na pobreza ou vulnerabilidade como resultado da crise da covid-19.
«Num relatório sobre as perspectivas económicas mundiais, publicado a 11 de Janeiro, o Banco Mundial prevê uma queda no crescimento para Marrocos em 2023 (de 4,3% para 3,5%), devido em parte à deterioração do sector agrícola em resultado da seca do ano passado.
«A mesma observação é feita pelo relatório Davos 2023 do Fórum Económico Mundial, publicado a 14 de Janeiro, segundo o qual "Marrocos está seriamente ameaçado pela crise do custo de vida, bem como pela inflação, pelo forte aumento dos preços das mercadorias, pelos riscos de abastecimento e pela dívida".
«Isto alimentou o êxodo rural para os centros periurbanos, abandonados pelo Estado e partidos políticos, onde o descontentamento social é subtilmente canalizado e assumido por movimentos islamistas, tais como a associação Al Adl Wal Ihsane (Justiça e Espiritualidade), ou por forças de esquerda, tais como a Frente Social Marroquina (FSM).
«Não deixa de ser surpreendente constatar que uma província como Oued-Eddahab (sul), onde a taxa global de pobreza atinge os 30,2%, é também um dos locais preferidos para o recrutamento de separatistas saharauis.
«Do ponto de vista político, a precariedade e a exclusão social podem alimentar subrepticiamente os movimentos de protesto, sobretudo nas periferias urbanas onde a insegurança, a criminalidade e a radicalização são factores de implosão da ordem social, mas também no Sahara Ocidental, onde a pobreza que corrói as populações saharauis poderia pressioná-las a aderir à causa dos separatistas da Frente POLISARIO. (…).
«Mas o que dizer de um poder obcecado pelo mostruário diplomático do reino e que parece cada vez mais desligado da realidade social dos marroquinos, especialmente os mais pobres, as primeiras vítimas da actual crise económica? (…).
«É concebível que o reino se situe na 123ª posição entre 190 países, atrás dos seus três vizinhos do Norte de África, a Argélia, a Tunísia e, até, a Líbia, que viveu duas guerras civis?»

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