sábado, 4 de fevereiro de 2023

XVI CONGRESSO DA FRENTE POLISARIO: A LUTA CONTINUA E INTENSIFICA-SE

(Boletim nº 117 - Fevereiro 2023)

A AAPSO teve a oportunidade de participar na abertura do Congresso que se celebrou na wilaya de Dakhla, nos Acampamentos de refugiados saharauis, no ano em que a Frente POLISARIO assinala os seus 50 anos. Partilhamos agora o que de mais relevante conhecemos e aprendemos.

Continuar a luta até à independência

A importância deste Congresso

Carlos Ruiz Miguel, catedrático de Direito Constitucional na Universidade de Santiago de Compostela, publicou em Setembro passado um livro intitulado El Frente POLISARIO: desde sus orígines hasta la actualidad. Nele considera que dos 15 Congressos do movimento de libertação saharaui realizados à data, dois foram mais significativos.
O II Congresso (25 e 31 de Agosto de 1974), que definiu com maior clareza e amplitude o seu projecto político, dividido em três perspectivas: programa para o curto prazo, programa para o longo prazo e relações externas, e elegeu El Uali como Secretário-geral da organização, que viria a morrer em combate a 9 de Março de 1976. Recorda-se que o momento era crítico: no estertor do franquismo e em pleno processo de descolonização no Portugal de Abril, a questão do Sahara Ocidental concentrava atenções a nível internacional: em Outubro de 1975 foi aprovado o relatório da missão da ONU ao território (dia 10), foi divulgado o parecer do Tribunal Internacional de Justiça que reconhecia o direito do povo saharaui à autodeterminação (dia 16) e teve início, na prática, a invasão marroquina (no fim do mês, embora a data oficial da Marcha Verde seja 6 de Novembro).
E o VIII Congresso (17-19 de Junho de 1991), que reviu a Constituição da República Árabe Saharaui Democrática (RASD), adoptando uma visão política baseada na economia de mercado e no multipartidarismo, uma vez obtida a independência do país. Neste quadro, ficou mais clara a diferenciação entre a FPOLISARIO e a RASD que, no entanto, mantêm, até à libertação, um elo forte de ligação através do Secretário-geral do movimento que é, por inerência, o Presidente da República. Esta foi a época em que mudanças semelhantes ocorreram em muitos países, nomeadamente africanos, no seguimento das alterações geopolíticas aceleradas em 1989.
As expectativas criadas à volta do XVI Congresso estavam relacionadas com o contexto internacional que se vive, em transformação e muito incerto, mas sobretudo com o facto de ser o primeiro conclave posterior ao reinício da guerra com Marrocos, ocorrido a 13 de Novembro de 2020. Esta opção, tomada frente à quebra do cessar-fogo por parte do poder ocupante nesse mesmo dia, no quadro geral de estagnação das negociações políticas que durante 30 anos apenas tinham beneficiado o regime de Rabat, estava a ser reivindicada pelas bases saharauis, em particular os jovens, há bastante tempo e fez parte das discussões do XV Congresso, mas a sua efectiva decisão deu-se já depois. O lema do XVI Congresso foi «Intensificar a luta armada para expulsar o invasor e conseguir a soberania».

Causas e consequências da guerra

O Congresso ratificou sem hesitações a continuação da luta armada e, no actual contexto em que por um lado, Marrocos não reconhece oficialmente o recomeço do conflito bélico mas ataca militares e civis (saharauis, mauritanos, argelinos) e, por outro, a ONU não consegue desbloquear o processo negocial, ela terá de subir de nível, como forma de pressão militar e, consequentemente, política.
Não é uma decisão fácil, e o povo saharaui sabe o que significa e o que custa. A lembrança da I guerra de libertação nacional (1975-1991) está muito presente, e as possibilidades reais de escalamento para um conflito regional estão sobre a mesa. Mas é também muito claro o balanço de 30 anos de cessar-fogo e de aposta convicta na construção da paz, durante os quais Marrocos assinou um acordo para a realização do referendo de autodeterminação, que não honrou, aumentando a agressividade da sua política diplomática, as violações de direitos humanos no território ocupado e a apropriação ilegal dos recursos naturais saharauis. Sem que o Conselho de Segurança da ONU mostrasse vontade de defender os princípios da sua própria organização.
Como resumiu a Ministra da Cooperação da RASD, Fatma Mehdi, a única mulher que participa na equipa de negociações saharaui, numa entrevista: «Nestes 30 anos o povo saharaui foi dando, dando e dando possibilidades, oportunidades para conseguir uma solução pacífica. Lamentavelmente, a comunidade internacional demonstrou que não existe uma vontade real para encontrar um fim para este conflito. É um conflito que dói muito ao povo saharaui, que é vítima disto… Mas também ao povo marroquino.»
As questões da guerra e da paz são sempre complexas e difíceis, mas há evidências internacionalmente aceites. O não adquirir um território pela força é uma base inequívoca do Direito Internacional, que tem sido recorrentemente recordado no caso da invasão da Ucrânia. O não modificar as fronteiras herdadas do colonialismo é um dos pilares da constituição da União Africana, para mais se vai contra a vontade dos povos em causa. Perante situações desta gravidade, é legítimo o recurso às armas. Como diz explicitamente a Constituição da República Portuguesa, ao reconhecer «o direito dos povos à autodeterminação e independência e ao desenvolvimento, bem como o direito à insurreição contra todas as formas de opressão»
1
Artigo 7º, §3.
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Até agora o conflito armado, embora de baixa intensidade, tem sido constante como o atestam os comunicados diários do Exército Popular de Libertação Saharaui, desde Novembro de 2020. Mas as suas consequências são múltiplas, para além dos militares mortos e feridos de ambos os lados (cujos números não são públicos) e dos civis de três países, atingidos por drones marroquinos. Implicam uma corrida ao armamento na região, um aumento desproporcionado de gastos militares, com o que isso significa de cortes nas despesas sociais e outras, e o risco de a qualquer momento poder deflagrar um conflito regional. «A vida aqui é muito dura, quase não há trabalho», disse Zein na wilaya de Dakhla, «e agora com a guerra é pior. Não podemos deslocar-nos pelo território libertado [sob controlo da FPOLISARIO] que é cenário de guerra, por isso não podemos comerciar com as populações mauritanas. Também as famílias que tratavam dos camelos e das cabras, viviam disso, não podem fazê-lo, têm de permanecer nos Acampamentos».
Apesar de tudo isto, as decisões do Congresso nesta matéria foram claras e reforçaram a coesão da sociedade saharaui. A esperança continua posta na solução política que há-de permitir a realização de um referendo justo e credível.

Democracia interna

Pela primeira vez, houve dois candidatos à liderança da FPOLISARIO: o Secretário-geral cessante, Brahim Ghali, e um outro veterano, Bachir Mustafa Sayed. A campanha junto dos delegados e delegadas foi curta no tempo, mas aberta. Os resultados foram anunciados no dia 20 de Janeiro: num total de 2.097 delegados/as, votaram 1.870, foram registados 54 votos nulos e Brahim Ghali foi reeleito com 69% dos votos (1253), ficando Bachir Mustafa Sayed com 31% (564).
A eleição para o Secretariado Nacional, órgão principal de decisão entre Congressos, foi também muito participada, tendo havido um grande número de candidaturas. No final, entre os seus 27 membros eleitos, estava Bachir Mustafa Sayed. Tendo havido durante os trabalhos repetidos apelos ao aumento do número de mulheres em posições de responsabilidade, foram eleitas para o Secretariado Nacional 6 mulheres, demonstrando um caminho percorrido, mas ainda a aprofundar.
De acordo com os Estatutos da FPOLISARIO, o Congresso dura em regra cinco dias, podendo ser prolongado. Foi o que aconteceu, dada a decisão de dar a todos os delegados e delegadas a oportunidade de usarem da palavra, se o desejassem. Perante o que estava em jogo, o debate foi intenso e o conclave, iniciado no dia 13, só terminou no domingo, 22.

Solidariedade internacional

O mesmo princípio de ouvir todos e todas aplicou-se aos membros das delegações estrangeiras que se dirigiram ao Congresso durante um dia e meio, nos dias 13 e 14. Cerca de 340 representantes de partidos políticos, de grupos interparlamentares e de organizações de solidariedade e da sociedade civil em geral, de muitos países de todos os continentes, com relevo para África e América Latina, foram protagonistas no início dos trabalhos. Especialmente aplaudidas foram as saudações dos representantes argelinos e mauritanos.
O sistema de tradução simultânea em três línguas (árabe, castelhano e inglês) e os excelentes e incansáveis tradutores saharauis facilitaram a comunicação entre a comunidade solidária e os congressistas. Este foi um elemento, entre muitos outros, demonstrativo da capacidade organizativa da FPOLISARIO que, em tempo de guerra, conseguiu preparar a recepção de perto de 3.000 pessoas (entre delegados, convidados e pessoal de apoio), assegurando transporte, alojamento, alimentação e segurança durante mais de uma semana. Num ambiente sem constrangimentos, adubado pela simpatia das famílias de acolhimento e de todos os responsáveis pelos vários serviços existentes.
Numa terra inóspita onde vivem há quase cinco décadas 173.600 refugiados (último número oficial disponível, Alto Comissariado para os Refugiados, 2017), separados das suas famílias que ficaram no território ocupado ou que estão na diáspora, na altura em que a ajuda humanitária indispensável à sua sobrevivência é cada vez mais difícil, num tempo em que se escolhe fazer a guerra para obter o reconhecimento do direito à autodeterminação e independência e a paz, a solidariedade internacional é muito valorizada.

A luta continua

Ao Congresso seguir-se-á a formação do novo governo da RASD, que terá a tarefa de transpor para a prática as decisões tomadas, enunciadas na Declaração Política final.
Ao regressar a El Aiun, uma parte do grupo de 40 delegados e delegadas que se deslocou do território ocupado para participar no Congresso foi recebida no aeroporto com agressões, insultos e ameaças.
«Temos uma visão de longo prazo, estamos preparados para aprofundar a resistência», disse numa conversa um jovem diplomata. «Não chegámos até aqui para pararmos!», titula o sítio SaharawisToday na sua página de entrada, onde também se encontra informação de base e a reportagem sobre o XVI Congresso.


 


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