sábado, 4 de fevereiro de 2023

TESH SIDI: «A VIDA NOS ACAMPAMENTOS NÃO PODE SER ROMANTIZADA»

 (Boletim nº 117 - Fevereiro 2023)

O sítio Mundo Negro dos Missionários Combonianos publicou recentemente uma entrevista a Tesh Sidi, uma jovem engenheira informática saharaui, onde esta partilha a experiência da descoberta e construção da sua identidade. É essa entrevista que aqui apresentamos.

«É necessária uma grande pressão política»

«Nasci nos campos de refugiados saharauis em Tindouf (Argélia), em 1994. Vim para Espanha quando tinha sete anos de idade. Sou engenheira informática e trabalho no mundo das grandes bases de dados na banca. Criei e coordeno a plataforma digital SaharawisToday».
Gostaria que me falasses da tua infância.
Nasci nos anos 90, em tempos muito difíceis para os refugiados saharauis que tinham acabado de se instalar nos campos. Não havia nada, não havia leite para as crianças e não havia água em casa. As mães trocavam os seus filhos para poderem amamentá-los. Quando o meu irmão gémeo e eu nascemos, quase morremos. Na verdade, todos nós tivemos problemas de saúde. A minha mãe, que era anémica, não tinha recursos. Éramos vários irmãos e ela não teve outra escolha senão deixar-me com a minha avó. Fiquei com ela entre os quatro e os sete anos na Mauritânia.
Lembras-te bem do que viveste durante esses anos?
Digo sempre que nós, saharauis, nascemos já crescidos. Devido às circunstâncias, somos educados para resistir e não nos podemos queixar. A sociedade e o contexto forçam-nos a amadurecer e a crescer rapidamente. Sim, tenho memórias desse tempo com a minha avó. Era uma beduína que só sabia criar e ordenhar cabras e nunca estava com crianças. Aqueles anos vivi com adultos e animais. Quando tinha apenas seis anos de idade, sabia como fazer as coisas de uma mulher mais velha. Quando tinha sete anos, regressei aos campos de Tindouf, na Argélia, com o meu irmão gémeo, a minha mãe, o meu pai e seis outros irmãos. Foi um choque de identidade, tive de aprender a amá-los, porque estes laços fraternais não tinham sido construídos antes.
Não deve ter sido nada fácil.
Na Mauritânia, vivia fora dos sistemas educativo e de saúde. Não sabia ler nem escrever. Tinha pensamentos e fazia o trabalho de um adulto. Quando fui para a escola tive de perceber que era uma criança, que tinha uma família e que vivia em sociedade. Não posso romantizar a minha história e dizer que tive uma infância feliz. Foi a que tive, a infância de qualquer criança numa situação de conflito. Não podemos romantizar a pobreza. Não comi um iogurte nem provei chocolate até chegar a Espanha, nem tive acesso a algo tão básico como a carne. Agora vejo que os meus sobrinhos e sobrinhas têm isso nos campos, mas vão sofrer outros problemas: problemas de identidade, exílio, conflito armado ... Eles não vão ficar isentos de tudo isso. A vida nos acampamentos não pode ser romantizada.
Porque vieste para Espanha?
Vim quando tinha quase oito anos de idade, para uma família de acolhimento em Alicante. Se chegar aos acampamentos vinda da Mauritânia foi uma mudança de mundo, vir para aqui foi uma mudança de planeta, de galáxia e de tudo. Tive medo dos edifícios porque não conseguia compreender como podiam ser tão altos. Nos acampamentos, as pequenas casas de adobe estão de acordo com o teu tamanho, acessíveis à tua altura ou à de um adulto, mas eu cheguei e encontrei edifícios muito altos, pessoas a correr, barulho, semáforos, tudo para "agora"... e, acima de tudo, a sensação de que todos me repreendiam por qualquer coisa: "Senta-te bem", "Come assim"... Eu não estava habituada a tantas exigências sociais, a viver sob um protocolo permanente. Nos acampamentos, os pais não te condicionam tanto porque já "és" adulto, e quando chegas aqui vens já com uma mentalidade construída. Vim durante cinco Verões e depois fiquei com a minha família de acolhimento dos 12 aos 18 anos de idade. A minha mãe espanhola teve a ideia de me educar, mas eu disse-lhe que já estava educada, e não foi um acto de rebeldia, mas de maturidade precoce forçada pela situação. A minha família espanhola fez o melhor que pôde comigo, mas não da melhor maneira. Tive uma adolescência muito dura.
Sentias que não te enquadravas?
As pessoas que emigraram sofrem uma crise de identidade muito grande, porque não são nem daqui nem de lá. A necessidade de se enquadrar em ambos os lugares pode pregar-lhes partidas muito más. Passei dez anos a rejeitar ser saharaui e as desgraças que me tinham acontecido na minha vida.
Escondias isso?
Sim. Costumava dizer às pessoas que era de Alicante, só isso. Mas quando comecei a ler literatura com referências africanas, incluindo saharauis, dei-me conta de que tinha herdado pensamentos coloniais, e chegou um momento, aos 18 anos de idade, em que me apercebi que aquele não era o meu sítio. Na minha casa espanhola sentia muitas exigências sociais e culturais, e tinha de estar constantemente a agradecer pelo que me estavam a dar, porque "vinha de um acampamento de refugiados", algo que me afectava muito e sentia como um menosprezo. Por outro lado, tinha a minha família saharaui, conservadora, muçulmana, uma das poucas que tinha deixado as suas filhas estudar no Ocidente desde muito novas. Estava ciente do medo da minha mãe de eu não ser muçulmana, nem culturalmente saharaui, desse medo do que as pessoas diriam. Senti pressão aqui e ali, e decidi separar-me, começar a trabalhar e estudar por conta própria, para recuperar a minha dignidade e a minha liberdade como pessoa. Rompi relações com a minha família biológica e com a minha família de acolhimento, mas era livre de começar a construir uma identidade para mim própria.
Fizeste esse processo sozinha?
Até me tornar activista não tinha nenhum ponto de referência. Comecei a trabalhar como empregada de mesa, em lojas... Estudei engenharia informática na altura da crise, e tive amigos que me ajudaram a pagar a universidade. Terminei a minha licenciatura e vim para Madrid. Era o tempo da explosão informática e encontrei trabalho facilmente. Pedi um empréstimo para fazer um mestrado em bases de dados e inteligência artificial. Para mim não há coisas impossíveis para quem se esforça e trabalha. As pessoas dizem-me que as coisas me têm corrido bem, mas eu comi arroz branco na universidade, tal como comi no acampamento, porque muitas vezes não tinha dinheiro para comprar carne ou champô.
Como descobriste o activismo?
Quando terminei o mestrado e conseguido um bom emprego, em Abril de 2020, explodiu a guerra no Sahara Ocidental. Não sabia nada do conflito nem das suas causas, mas comecei a ir a manifestações e nasceu em mim uma necessidade imperiosa tanto de ajudar o povo saharaui como de recuperar a minha identidade. E quando vi que a causa saharaui estava estagnada em termos de comunicação, decidi ajudar com o meu conhecimento de bases de dados e do processamento de dados nas redes sociais. Assumi a presidência da Associação Saharawi em Madrid, fizemos muitas coisas e muitos jovens saharauis da diáspora começaram a organizar-se. Tornei-me uma pessoa muito exposta, a dar conferências, os políticos chamavam-me... Parecia-me que a causa se tinha tornado muito humanitária, mas pouco política, e comecei a aproximar-me das organizações políticas, dos meios de comunicação social, comecei a levar jornalistas e políticos aos acampamentos… Todo este processo materializou-se no SaharawisToday, uma plataforma de comunicação digital que criei com a minha companheira Itziar.
O que podemos encontrar em SaharawisToday?
Analisámos o que está errado com a causa saharaui e vimos que deveríamos ser nós próprios, os saharauis, a comunicar, que não deveriam ser os jornalistas ou os antropólogos a falar sempre sobre o povo saharaui. No SaharawisToday falamos sobre migração; sobre o combate ao racismo institucional que sofremos; sobre as mulheres saharauis, que são frequentemente silenciadas; sobre a responsabilidade da Espanha para com as suas antigas colónias ou sobre a responsabilidade da população de se informar sobre o passado do seu país. Contextualizamos para explicar a relação do Sahara com o que está a acontecer em Ceuta e Melilha, com as águas das Ilhas Canárias ou porque é que Marrocos está a bloquear e a chantagear a Espanha... Somos 11 pessoas, saharauis de lá, daqui e de França. Publicamos em francês, árabe, inglês e espanhol, e oferecemos um fórum de opinião para o povo saharaui, em toda a sua diversidade. Há lugar para tudo menos para o fascismo e o machismo. Sempre fomos um povo de transmissão oral, mas temos de pôr a nossa história por escrito. Há artigos, vídeos, reportagens ao vivo, resumos de política internacional, análises... Reunimos todos os eventos da causa saharaui em todo o mundo e informamos sobre como viajar para os acampamentos.
Para terminar, acreditas que haverá um referendo?
É necessária uma grande pressão política. Penso que o povo saharaui tem de ocupar posições de poder. Muitas pessoas que emigraram tendem a estudar ciências sociais e dedicam-se ao campo das ONG ou da cooperação internacional devido a esta necessidade de "salvar" o que temos. Mas não há nada de errado em estar num banco ou na política. É preciso estar onde as decisões são tomadas para mudar as coisas. No banco onde trabalho, sabem que sou uma saharaui e uma activista. Os saharauis têm de tentar ser presidentes da comunidade nos seus edifícios, membros do parlamento, uma referência onde quer que trabalhem. Penso que o referendo vai ser complicado nos próximos anos. Enquanto não tivermos um primeiro-ministro saharaui ou migrante, as coisas não vão mudar. Levará tempo, mas não devemos ficar frustrados. Temos de ser optimistas.


 

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