sábado, 4 de fevereiro de 2023

A ALIANÇA MARROCOS-ISRAEL E A DESCOLONIZAÇÃO DO SAHARA OCIDENTAL

(Boletim nº 117 - Fevereiro 2023)

Desde que o ex-presidente dos EUA Donald Trump reconheceu a anexação marroquina do Sahara Ocidental em Dezembro de 2020, Israel passou a ser um aliado ostensivo do regime de Rabat, desde o terreno político-militar ao económico-financeiro. O que será um incentivo à solidariedade dos povos palestiniano e saharaui.

«Colaboração frutuosa»
O sítio do Irmep apresentou como «Uma grande exigência territorial recente de Israel» o reconhecimento pelos E.U.A. «do Sahara Ocidental como território marroquino» em troca de Marrocos se envolver «em intercâmbios comerciais e diplomáticos com Israel». Comenta o articulista:
«Esta é uma das piores fases das recentes humilhações da política dos EUA chamada "Acordos de Abraham", uma iniciativa do lobby israelita lançada durante a administração Trump, que procura ultrapassar as exigências de pôr fim à violência israelita, à limpeza étnica, à opressão, ao apartheid e ao desalojamento territorial da população autóctone palestiniana. 
«A administração Biden nada fez para inverter os Acordos de Abraham e restaurar a credibilidade norte-americana. Desde a Segunda Guerra Mundial que o direito internacional proíbe a aquisição territorial através da guerra e da conquista. Os Acordos de Abraham exigem que os EUA legitimem a aquisição territorial através da guerra e da conquista se esta funcionar em benefício de Israel.»
Os resultados da subscrição destes Acordos tornaram-se, então, mais visíveis, como relata o sítio LibreMercado:
«A empresa energética israelita NewMed Energy acaba de chegar a acordo com a Adarco Energy e o Gabinete Nacional Marroquino de Hidrocarbonetos e Minas para explorar gás natural e petróleo em águas atlânticas.
«A área onde as empresas gozam de uma licença de exploração, de aproximadamente 33.812 km², está localizada ao largo do Cabo Bojador, na costa do Sahara Ocidental, em águas a sul da Zona Económica Exclusiva marroquina e pertencentes à antiga colónia espanhola ocupada por Rabat. (…). 
«O acordo prevê que a NewMed Energy deterá 37,5% da licença de exploração, a Adarco outros 37,5% e o Gabinete marroquino 25%. A licença contempla a exploração e pesquisa de hidrocarbonetos nesta zona do Atlântico durante oito anos: os primeiros 30 meses serão dedicados à análise geológica, após os quais será feita a prospecção. O acordo prevê a possibilidade de prorrogação das licenças se os depósitos forem confirmados ou de abandono do bloco no final de cada fase, se os resultados não forem satisfatórios. O pacto ainda precisa de ser aprovado pelo Ministro da Energia, Transição e Desenvolvimento Sustentável de Marrocos e pelo Ministro das Finanças, bem como pela assembleia geral de accionistas da NewMed Energy. (…). 
«Junto à licença Boudjour Atlantique está outra licença localizada em águas saharauis, Dakhla Atlantique, operada por outra companhia israelita, a Ratio Petroleum. A empresa obteve a licença em Outubro de 2021, alguns meses após a normalização das relações entre Marrocos, Israel e os EUA.»
Recentemente, Lluís Rodríguez Capdevila, um estudioso catalão, publicou um artigo - «El idilio entre Israel y Marruecos» - onde analisa as relações entre os regimes destes dois Estados.
«Na sequência do recente 16º Congresso da Frente POLISARIO, parece que a guerra no Sahara Ocidental está a entrar numa nova fase marcada por uma escalada da tensão militar entre os dois opositores, que pode ser afectada pela introdução de novas armas no campo de batalha e pelo aumento da utilização de drones. Face à previsível escalada do conflito, Marrocos está a aumentar a sua dependência de Israel, do qual se serve em grande medida para a aquisição de armas, bem como para o treino militar e tecnológico, tornando o Estado sionista num dos novos actores no conflito que está a adquirir maior protagonismo. 
«A colaboração entre Israel e Marrocos é muito antiga, mas nunca foi tão frutuosa como agora, graças aos acordos de parceria entre Rabat e Telavive, encorajada em grande parte pelo antigo presidente dos EUA Donald Trump durante o seu mandato. (…). 
«A política externa de Trump durante o seu mandato caracterizou-se em grande parte por favorecer os interesses de Israel no Médio Oriente, e sempre à custa das aspirações do povo palestiniano, que viu a sua pretensão de se tornar um Estado cada vez mais distante. Com decisões tão importantes como mudar a embaixada dos EUA para Jerusalém ou retirar o seu país do acordo nuclear iraniano, Trump agradou continuamente ao poderoso lobby judeu americano, ao qual pertence o seu genro Jared Kushner, casado com a sua filha Ivanka. Assim que chegou à Casa Branca, Trump nomeou Kushner como conselheiro superior do presidente dos EUA e confiou-lhe, como uma das suas principais tarefas, o redesenho da paz no Médio Oriente, mas, claro, tendo sempre em conta os interesses tanto dos EUA como de Israel na região. (…). 
«Mas em Dezembro de 2020, foi a vez de Marrocos. E o preço era claro: o regime marroquino estabeleceria relações diplomáticas com Israel em troca do reconhecimento por parte da administração Trump da soberania de Marrocos sobre o Sahara Ocidental, uma operação que estava em curso há algum tempo com viagens a Rabat tanto de Kushner em Maio de 2019 como da própria Ivanka Trump no mês de Novembro seguinte, embora houvesse outras viagens descritas como "não-oficiais" que levaram vários delegados norte-americanos ao país do Magrebe. Já em 2019, Israel, então o oitavo maior exportador mundial de armas, vendia radares militares e sistemas de comunicações a Marrocos através de países terceiros. 
«Marrocos foi o primeiro país a reconhecer a independência dos Estados Unidos. O próprio Donald Trump recordou-o num dos seus tweets a 10 de Dezembro de 2020: "Marrocos reconheceu os Estados Unidos em 1777. É portanto apropriado que reconheçamos a sua soberania sobre o Sahara Ocidental". Com a sua decisão, Trump reactivou as relações bilaterais entre os governos de Israel e Marrocos, que deram os seus primeiros frutos com o estabelecimento, em 2021, dos primeiros voos directos entre Telavive e Marraquexe pela companhia El Al e entre a capital israelita e Casablanca pela companhia marroquina RAM. Em Outubro desse ano, a companhia petrolífera israelita Ratio obteve uma concessão para a prospecção de jazidas de hidrocarbonetos nas águas da cidade saharaui ocupada de Dakhla. 
«Contudo, o entendimento entre Tel-Aviv e Rabat remonta ainda mais atrás, ao tempo em que Marrocos começou a construir o Muro da Vergonha em plena guerra do Sahara, na década de 1980. Na altura, os serviços secretos israelitas contribuíram para a concepção dos muros defensivos que formam agora a vasta barreira física de 2.720 km que divide o território saharaui de norte a sul. Algumas décadas mais tarde, foi o próprio governo israelita que, a 23 de Junho de 2002, aprovou a construção de outro muro que actualmente se estende, em 80% do seu comprimento, em território palestiniano ocupado. De facto, o próprio muro na Palestina erguido pelas autoridades de ocupação israelitas tem uma semelhança jurídica com o do Sahara Ocidental, uma vez que tanto as ocupações israelitas como marroquinas dos territórios palestinianos e saharauis, respectivamente, são juridicamente semelhantes. 
«Mas embora a colaboração militar e dos serviços secretos entre Israel e Marrocos remonte já a meio século, os dois países formalizaram este acordo de segurança em Rabat em 24 de Novembro de 2021, aonde o próprio Ministro da Defesa israelita, o antigo general Benny Gantz, se deslocou para normalizar o comércio de armas entre os dois governos, culminando assim o Acordo sobre a normalização das relações entre Israel e Marrocos de 10 de Dezembro de 2020. Foi também Gantz que, em Israel, autorizou a venda no estrangeiro de sistemas de espionagem, como o Pegasus, cuja utilização pelos serviços secretos marroquinos no Verão de 2021 causou um escândalo internacional quando foi revelado que espiava políticos da oposição, jornalistas e mesmo chefes de Estado estrangeiros, entre os quais o Presidente francês Emmanuel Macron, como denunciado pela Amnistia Internacional.

«Porém, o restabelecimento de relações diplomáticas com Israel não é uma medida muito bem vista por um povo, o povo marroquino, que sempre mostrou solidariedade para com os palestinianos e que foi mesmo utilizado pelo próprio Makhzen para fazer de Marrocos bandeira pela causa palestiniana. (…). 
«Mas o recente Campeonato Mundial de Futebol no Catar ofereceu-nos, pelo menos, um par de imagens que mostram a contradição de ver marroquinos a apoiar a causa palestiniana enquanto defendem a ocupação do Sahara [Ocidental] por Marrocos. A primeira imagem foi tirada no final do jogo entre as selecções marroquina e espanhola. Os jogadores marroquinos posaram com uma bandeira palestiniana no relvado para celebrar a sua qualificação para os quartos-de-final do Campeonato do Mundo. A segunda imagem é fornecida por estes mesmos jogadores da equipa nacional marroquina cantando "o Sahara é nosso, os seus rios e a sua terra são nossos", um vídeo que rapidamente se tornou viral nas redes sociais e que recuperamos aqui neste tweet de Taleb Alisalem (…). 
«Talvez esta solidariedade para com a Palestina recebida de Marrocos explique o escasso apoio à causa saharaui por parte dos palestinianos, que receiam que se exigirem para o Sahara o que querem para si próprios, nomeadamente o fim da ocupação por uma potência estrangeira, possam deixar de ser bem vistos pelo povo marroquino e pelo seu governo, embora isto seja em si mesmo uma contradição de convicções, uma vez que, como já observámos anteriormente, tanto a causa saharaui como a palestiniana são casos de ocupação juridicamente semelhantes. (…). 
«A colaboração entre Israel e Marrocos não é assim tão surpreendente, uma vez que um grande número de judeus israelitas são de origem marroquina e, além disso, existe ainda uma pequena mas historicamente influente comunidade judaica no país do Magrebe que se congratula com esta aproximação entre o seu país e o Estado judaico. Por outro lado, ambos os países anexaram território que não lhes pertence em violação do direito internacional e concordam em aliar-se a fim de defenderem conjuntamente as suas respectivas ocupações. (…). 
«Pela sua parte, a chegada de Joe Biden à Casa Branca não significou a reafirmação do reconhecimento da soberania marroquina sobre o Sahara Ocidental, mas a actual administração norte-americana também não a retirou, e o Secretário de Estado Antony Blinken manifestou mais de uma vez ao seu homólogo marroquino, Nasser Bourita, o seu apoio ao plano de autonomia que Marrocos tem vindo a apresentar desde 2007. No entanto, a questão do Sahara parece estar bloqueada no Congresso dos EUA, tal como a proposta de abertura de um consulado dos EUA no Sahara ocupado ou a venda de mais drones MQ-9B ao governo marroquino, que veremos se será por muito tempo, uma vez que os lobbies marroquinos e, acima de tudo, judeus, exercem forte pressão sobre o Capitólio. O que não parece ter encalhado, contudo, é o fornecimento de helicópteros AH-64 Apache e de caças F-16 a Rabat, entre outros armamentos que fazem de Washington o principal fornecedor de armas a Marrocos. 
«No entanto, a aquisição de drones não é um problema para o governo marroquino, pois é principalmente Israel que desde Janeiro de 2020 tem vindo a fornecer a Marrocos este tipo de aeronaves não tripuladas. A utilização crescente destas armas pelos dois exércitos em conflito na Guerra do Sahara pode aumentar o número de baixas. Também entre a população civil saharaui, um alvo militar dos drones das Forças Armadas Reais Marroquinas desde que veículos civis saharauis foram atingidos por por estas aeronaves a 25 de Janeiro de 2021, causando a morte de três pessoas. 
«Marrocos é o único dos dois exércitos que tem drones, mas o receio de que a Frente POLISARIO acabe por adquirir este tipo de aviões não tripulados levou o governo marroquino a formalizar a compra de mais drones israelitas, chineses e turcos, incluindo o já utilizado Bayraktar TB2, e a tornar-se o primeiro país africano a construir um modelo protótipo graças aos acordos de colaboração entre o governo de Mohammed VI e Israel. A "droneificação" da Guerra do Sahara está em curso.»



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