quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

MARROCOSGATE: «O FIM DO ESTADO DE DIREITO»

(Boletim nº 116 - Janeiro 2023)

Política e mediaticamente, o ambiente de contestação criado à volta do Catar facilitou a atenção e a divulgação do escândalo. Porque em relação a Marrocos tem sido mais difícil. No entanto, não foi surpresa: anos de indícios, de publicações nas redes sociais, de situações inexplicáveis. Chegou o Marrocosgate.

Panzeri condecorado por Mohamed VI (2014)

Corrupção e ingerência política no Parlamento Europeu

A acção pública iniciou-se no dia 9 de Dezembro 2022, com a prisão da então vice-presidente do Parlamento Europeu (PE), Eva Kaili, do ex-deputado Pier António Panzeri, do seu ex-assistente e actual assistente do eurodeputado Andrea Cozzolino e companheiro de Kaili, Francesco Giorgi, e de Niccolo Figa-Talamanca, presidente de várias ONG, entre as quais uma denominada “Não há Paz sem Justiça”, todos indiciados por corrupção. Falou-se primeiro que seria a favor do Catar, depois também de Marrocos. A investigação foi aberta pelos serviços belgas de segurança do Estado, em 2021, passando em Julho de 2022 para a alçada da justiça belga. O processo ainda vai no adro. Muito será revelado em 2023. Até agora, o governo de Marrocos, sempre tão activo em política externa, remeteu-se a um silêncio ensurdecedor.
A partir do que tem vindo a ser noticiado nos meios de comunicação social europeus, que começaram por citar comunicados da justiça belga, intervenções do ministro da tutela e documentos judiciais, e posteriormente se lançaram em investigações próprias, há duas coisas que parecem claras:
  • primeiro, que o esquema de corrupção marroquino é muito mais antigo, passou por várias fases, foi-se adaptando à situação concreta dos parlamentares protagonistas (informações filtradas e divulgadas em 2014-2015 mencionam uma “nota urgente” datada de 2011 na qual um emissário de Panzeri se dirige às autoridades marroquinas, tentando reafirmar a sua lealdade);
  • segundo, que as questões que estão em causa, para o Catar e para Marrocos, não são comparáveis – o que está em jogo no PE relativamente a Marrocos é substancialmente muito mais relevante.
Neste contexto o ex-deputado europeu francês José Bové relembrou, voluntariamente, o episódio em que o então ministro da Agricultura marroquino, agora primeiro-ministro do Reino, Aziz Akhannouch, o tentou subornar quando se discutia o acordo comercial UE-Marrocos sobre os produtos agrícolas. Tendo-lhe sido solicitada a indicação de um bar em lugar discreto para um encontro, Bové deu a morada… do seu advogado. Akhannouch nega o acontecimento e anunciou ter apresentado queixa na justiça francesa contra Bové por difamação.
Um outro aspecto tem vindo a emergir: este não seria o único esquema de ingerência política externa nas decisões do PE, as empresas jogam também um papel. O jornal alemão Der Spiegel revelou um outro caso concreto. Alertado pelo embaixador marroquino em Atenas, o CEO da empresa grega Archirodon, sediada nos Países Baixos, com um contrato para construir um novo porto em El Aiun, dedicado à exportação de fosfatos do Sahara Ocidental ocupado, exerceu pressões sobre parlamentares espanhóis antes da votação de uma Resolução sobre a «Renovada parceria com a vizinhança meridional: uma nova agenda para o Mediterrâneo». O grupo europarlamentar da Esquerda tinha proposto duas emendas ao texto da Resolução, uma pedindo o fim da política migratória baseada em acordos como os assinados com a Turquia e Marrocos para conter os fluxos migratórios, «que violam os direitos humanos e tornam a UE refém das suas políticas erráticas e anti-democráticas»; outra apelando a que a UE respeitasse as resoluções da ONU e as sentenças do Tribunal de Justiça da UE sobre o Sahara Ocidental. Ambas foram rejeitadas na votação final.
Pelo que se sabe até agora no que diz respeito a Marrocos, as pistas vão dar ao actual Embaixador marroquino na Polónia, Abderrahim Atmoun que, por sua vez, receberia instruções da Direcção Geral de Estudos e Documentação, o equívoco nome dos serviços secretos marroquinos para o exterior. Este empresário, agora diplomata, foi deputado marroquino e co-presidiu à Comissão parlamentar mista UE-Marrocos entre 2011 e 2019, primeiro com Pier António Panzeri, depois com Andrea Cozzolino. No relatório marroquino relativo ao biénio 2012-2013, dado a conhecer através de uma fuga de informação publicada em 2015, revela-se que os seus membros «tiveram mais de 100 reuniões bilaterais programadas com os eurodeputados durante o ano de 2012 e 140 (...) em 2013. Quanto aos encontros não programados nos bastidores e corredores, eles foram incontáveis». A sua leitura é instrutiva.

Como se constrói uma teia de influência e para quê

No caso de Marrocos, parecem estar em causa quatro questões principais: a defesa dos interesses económicos e comerciais de quem governa (não do povo marroquino); a recepção de ajudas europeias de centenas de milhões de euros a título de “gestão” dos fluxos migratórios; a preservação do mito de país moderno e tolerante; e principalmente, em interligação com os objectivos anteriores, o reconhecimento da soberania de Marrocos sobre o Sahara Ocidental.
A identificação de actores em postos relevantes para as finalidades pretendidas é um passo importante. Rabat tem uma ampla experiência nesta matéria. No número de Julho de 2022 deste boletim, publicámos um artigo do jornal El Independiente sobre o lobby marroquino em Espanha. Ex-primeiros ministros e ministros foram alvos primordiais e continuam activos.
Pier António Panzeri acumulou três funções relevantes enquanto euro-deputado (2004-2019): a de presidente da delegação para as relações com os países do Magrebe (2009-2017), a de presidente da Conferência dos Presidentes das Delegações (2014-2027) e a de presidente da Subcomissão dos Direitos Humanos (2017-2019). Quando em 2019 não foi reeleito para o PE, a sua sucessora à frente desta Subcomissão, Marie Arena, era conhecida como sua próxima colaboradora.
Nessa altura foi preciso alargar o círculo de “amizades” e por isso criar outro mecanismo. Panzeri fundou uma Organização Não-Governamental com um nome atraente – Fight Impunity – para cujo Conselho de Administração Honorário conseguiu atrair figuras sonantes que a credibilizavam (o Prémio Nobel da Paz 2018 Denis Mukwege, o ex-primeiro ministro francês Bernard Cazeneuve, a ex-Comissária Europeia para o Consumo e as Pescas Emma Bonino, a ex-Alta Representante da UE para a política externa Federica Mogherini, o ex-Comissário para a Imigração Dimitris Avramopoulos, a ex-deputada sueca Cecilia Wikström, a ainda parlamentar europeia portuguesa Isabel Santos… agora todos demissionários). Pela ONG passavam avultadas somas que deveriam ser repartidas por várias pessoas de modo a que, no lugar e momento certos, fizessem abortar situações embaraçosas para o regime marroquino.
Os meios estão descritos no que já se conhece deste e doutros casos: convites para férias em estâncias de luxo, convites para recepções exclusivas, visibilidade em eventos especiais, condecorações várias, acesso ao círculo real, pagamentos em dinheiro vivo quando necessário. Numa escuta telefónica à mulher de Panzeri (também detida), divulgada pela imprensa italiana, ela tenta persuadir o marido a fazer férias mais baratas do que as do ano anterior, que tinham custado «100 mil euros»… Nas casas de Kaili e Panzeri e numa mala que o pai da euro-deputada tinha com ele quando se preparava para deixar a Bélgica foram encontrados, ao todo, cerca de 1,5 milhões de euros em notas.
Já em Novembro de 2018 o Presidente do PE, António Tajani (agora vice-presidente do Conselho de Ministros e MNE do governo italiano liderado por Georgia Meloni), recebeu uma carta oficial do co-presidente do grupo parlamentar dos Verdes, Philippe Lamberts, convidando-o a abrir um inquérito sobre uma possível violação do código de conduta de deputados europeus em matéria de lobbying, sobretudo a favor de Marrocos. A diligência seguia-se a um artigo do EUobserver intitulado «Exposição: como Marrocos faz pressão sobre a UE pela sua reivindicação sobre o Sahara Ocidental» e nele se mostrava como um grupo de eurodeputados, que intervinham na elaboração dos Acordos comerciais UE-Marrocos, que deveriam ser votados em Janeiro de 2019, tinha criado uma fundação com antigos ministros marroquinos, situada a 150 metros do PE e que não figurava no registo da UE. Alguns dos nomes citados eram os dos franceses Gilles Pargneaux e Patricia Lalonde, do romeno Romona Manescu e da belga Frédérique Ries. O assunto não teve seguimento.

As consequências

Ao abrigo deste caso, foram lembradas situações que justificam sérias dúvidas sobre a integridade destas decisões e a das e dos parlamentares que as protagonizaram.
Desde logo, as respeitantes aos Acordos comerciais entre a UE e Marrocos, nos domínios das pescas e da agricultura, que foram já objecto de três sentenças muito claras dos Tribunais da UE, e cuja quarta decisão, definitiva, se aguarda neste ano de 2023. Em causa está a inclusão do território não-autónomo do Sahara Ocidental nos Acordos, como se fosse parte do Reino de Marrocos. Não é admissível, disse o Tribunal de Justiça da UE, visto que o Sahara Ocidental e Marrocos são dois territórios «separados e distintos», sendo assim ilegais. No entanto, a UE, coadjuvada por alguns dos seus Estados-membro, recorreu sempre destas sentenças. Com que finalidade? E o que fará quando for publicada a sentença que já não admite mais recursos?
Os sinais não são bons: em Outubro de 2022 a Comissão Europeia continuava a trabalhar na ideia de demonstrar que os Acordos celebrados com Marrocos «beneficiam» a «população» do Sahara Ocidental, quando o Tribunal de Justiça da UE já explicitou que essa abordagem não tem qualquer legalidade, porque do que se trata é de obter o «consentimento» do «povo» do Sahara Ocidental para que possam ser explorados os recursos naturais que lhe pertencem. A entidade que pode dar esse consentimento é a Frente POLISARIO, enquanto representante do povo saharaui, clarificou o Tribunal.
Dois exemplos no campo dos Direitos Humanos:
  • Nos últimos três anos houve duas Resoluções de urgência condenando a Argélia pela deterioração das liberdades e pelas prisões arbitrárias (28 Novembro 2019 e 26 Novembro 2020), enquanto que o silêncio imperou sobre as mesmas situações verificadas em Marrocos e denunciadas por várias ONG internacionais reconhecidas. Os responsáveis pelas Resoluções urgentes no PE? Andrea Cozzolino e o seu assistente Francesco Giorgi. Também o número de votos recolhidos pela última destas resoluções contrasta com a votação da Resolução condenando Marrocos (10 Junho 2021) por causa do episódio da migração forçada de crianças para Espanha nesse ano: em relação à Argélia, 669 votos a favor, 3 contra; em relação a Marrocos, 397 votos a favor, 85 contra e 196 abstenções.
  • Em 2021, as votações para decidir os três primeiros lugares do Prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento, criado pelo Parlamento Europeu em 1985, resultaram num vencedor, Alexei Navalny, em segundo lugar foram homenageadas as mulheres do Afeganistão e, em terceiro lugar, um empate entre duas candidatas, Sultana Khaya (Sahara Ocidental, proposta pelo grupo da Esquerda) e a ex-presidente golpista da Bolívia Jeanine Áñez (proposta pela extrema-direita do PE). Na votação de desempate, ganhou a última, porque o grupo Socialista e Democratas recebeu uma ordem escrita para votar nela.

Um Estado policial, cuja teia continua activa

Lembramo-nos como a Amnistia Internacional denunciou a utilização em larga escala do programa espião israelita Pegasus por parte dos serviços de informação marroquinos, tanto a nível interno, para vigiar opositores, como a nível externo, para seguir personalidades influentes incluindo, entre outros, altas figuras dos Estados francês — como o presidente Emmanuel Macron — e espanhol — como o presidente do governo Pedro Sánchez. No primeiro caso, o “incidente” provocou o esfriamento das relações entre Paris e Rabat, no segundo caso levou à submissão de Madrid perante o rei Mohamed VI.
Parecem restar poucas dúvidas de que os serviços secretos marroquinos orquestravam as múltiplas intromissões no Parlamento Europeu e, como já foi veiculado, nas instituições europeias em geral.
O mais perturbador é que a rede tem anos, foi propagando mentiras, criando cumplicidades, fazendo vencer a ideia de que Marrocos não pode ser «incomodado», a tal ponto que, mesmo depois de ter rebentado o escândalo, e das juras de mudar para sempre a facilidade e a impunidade… numa votação no dia 16 de Dezembro de 2022, condenando o Catar pela sua presumível acção corruptora, aprovada por 541 votos a favor, dois contra e três abstenções, quando foram a votos duas emendas que propunham condenar pelo mesmo motivo o Reino de Marrocos, elas foram chumbadas, por 253 votos contra, 238 a favor e 67 abstenções.
O ministro da Justiça belga Vincent Van Quickenborne afirmou publicamente: «Um Estado mafioso começa quando parlamentares, eleitos pelo povo, são corrompidos contra pagamento para terem um discurso e adoptarem um determinado comportamento de voto. É o fim do Estado de Direito».



 


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