quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

MARROCOS: A REPRESSÃO COMO RESPOSTA ÀS CRISES

(Boletim nº 116, Janeiro 2023)

A política externa agressiva do regime marroquino faz-nos, por vezes, esquecer a sua situação interna. Mas isso não impede a “velha toupeira” de fazer o seu trabalho e de expor as crispações sociais, que a repressão não consegue impedir.

Rabat, 4 Dezembro 2022 (foto CADTM)

No dia 4 de Dezembro realizou-se em Rabat uma manifestação para protestar contra o aumento do custo de vida e a escalada repressiva do regime, que reuniu cerca de 3.000 pessoas.
Eric Toussaint, do CADTM (Comité pour l’Abolition des Dettes Illégitimes), entrevistou Jawad Moustakbal da ATTAC Marrocos, questionando-o sobre «Quais são as razões económicas, sociais e políticas para o sucesso da mobilização em Rabat a 4 de Dezembro?»
«Os participantes na marcha cantavam slogans denunciando os recentes ataques ao poder de compra, e o chefe de governo, o multimilionário Aziz Akhenouch, com cartazes que diziam: "Akhenouch fora".
«Esta mobilização, iniciada por organizações sindicais e políticas de esquerda e agrupada numa coordenação denominada Frente Social Nacional, é uma resposta à profunda deterioração das condições de vida da maioria.
«Existem causas estruturais e conjunturais que explicam a deterioração das condições de vida da maioria dos marroquinos e marroquinas.
«As razões estruturais estão ligadas às escolhas económicas neoliberais que têm sido adoptadas por aqueles que governam o nosso país há décadas. As políticas de liberalização e privatização, por exemplo, beneficiaram uma elite local que gira em torno do "palácio" e que muitas vezes se associa a multinacionais ocidentais para açambarcar territórios (água, terras florestais, minas, etc.) ou as empresas públicas mais rentáveis, ou mesmo sectores estratégicos e vitais como a distribuição de água, energia, educação ou saúde.
«A abertura das fronteiras às mercadorias, exigida pelos acordos neocoloniais de comércio livre que Marrocos assinou, enfraqueceu o nosso tecido económico e levou à perda de empregos no ambiente urbano, enquanto que a adopção de uma agricultura orientada para a exportação, já desde há ¼ de século, continua a empobrecer os nossos pequenos agricultores e a agravar a nossa dependência alimentar.
«Estas políticas são recomendadas pelo FMI e pelo Banco Mundial e implementadas à letra pelos verdadeiros detentores do poder, a saber o Rei e os seus conselheiros. (…).
«Estes factores estruturais são os principais responsáveis por esta situação porque também limitam a capacidade do Estado para fazer face às condições económicas, reduzindo constantemente o orçamento dos serviços públicos e aumentando a nossa dependência alimentar e energética. O que aumenta a nossa fragilidade em relação às flutuações dos preços dos produtos que são essenciais para o nosso povo e para a nossa economia. A isto juntam-se os efeitos da seca, que se tornou mais intensa e mais frequente nos últimos 20 anos, em ligação com a crise ecológica e o aquecimento global.
«As desigualdades sociais em Marrocos são também as mais elevadas da região, de acordo com os últimos relatórios da Oxfam. A repressão parece ser a única resposta do Estado marroquino para gerir estas múltiplas crises exacerbadas pelas suas políticas.»
Moustakbal, a pedido de Toussaint, passa depois em revista as grandes mobilizações sociais em Marrocos nos últimos doze anos.
«As lutas pela defesa dos territórios (água, terra, florestas, etc.) têm sido constantes. Nunca cessaram, especialmente nas zonas mais marginalizadas, a que o colonizador francês chamou “o Marrocos inútil”. Estas lutas são uma resposta a um processo bastante violento de acumulação por despossessão liderado pelas classes dominantes. Para além destas lutas "permanentes", podemos distinguir 3 grandes mobilizações:
  • «Em 2011: O movimento de 20 de Fevereiro foi a mobilização mais maciça e prolongada, com marchas envolvendo dezenas de milhares de participantes em mais de uma centena de cidades de Marrocos. Simultaneamente com este movimento, que se concentrava mais nas grandes cidades e centros urbanos de média dimensão e cujas reivindicações eram principalmente democráticas e políticas, vários movimentos de protesto pelos direitos sociais, habitação, terra e trabalho surgiram em várias partes do país e aproveitaram o ambiente favorável criado pela chamada Primavera Árabe.
  • «Em 2016-2017 - Hirak (movimento de protesto) do Rif: Na sexta-feira 28 de Outubro de 2016, ocorreu um trágico e fatal incidente na cidade de Al Hoceima, no nordeste de Marrocos, quando um agente estatal apreendeu as mercadorias de Mouhcine Fikri, um vendedor de peixe, e as atirou para dentro de um camião de lixo. Quando o vendedor entrou desesperadamente no camião para recuperar o seu peixe, "um polícia local ordenou ao motorista do camião basculante que ligasse o compactador e o 'esmagasse'", de acordo com activistas e testemunhas. O camião esmagou horrivelmente Fikri, causando a sua morte. Este triste acontecimento levou a 10 meses de manifestações pacíficas. Estas manifestações mobilizaram todos os habitantes de Al-Hoceima e das cidades vizinhas. Este movimento, que era o eco do movimento de 20 de Fevereiro, retomando alguns dos seus slogans e organizando marchas e/ou sit-ins todos os fins-de-semana, caracterizou-se também por muitas inovações em termos de organização, comunicação e envolvimento das camadas sociais mais amplas através de assembleias populares nos cafés, onde a lista de reivindicações foi discutida e aprovada, abrangendo toda a região, bem como todos os aspectos da vida das pessoas (económicos, sociais, políticos, ambientais, culturais e desportivos).
  • «Em 2017-2018 - Hirak (movimento de protesto) de Jerada: Este movimento nasceu na sequência da conjunção de dois acontecimentos sucessivos: o primeiro foi a repressão de uma manifestação contra o aumento dos preços da electricidade e a detenção de dois jovens estudantes do ensino secundário; o segundo ocorreu no dia seguinte e resultou da morte de dois irmãos que se afogaram no fundo de uma das minas improvisadas escavadas nas proximidades da cidade para extrair carvão. Desde o encerramento em 1998 do Charbonnages du Maroc, que operava três grandes poços dentro de Jerada, a população, que dependia inteiramente da mina, começou a cavar poços na floresta circundante para explorar sozinha os veios de carvão. Por conseguinte, foram organizadas manifestações na praça principal da cidade com a participação de milhares de mulheres e homens. As exigências deste movimento centraram-se em três áreas principais: a tarifação da água e da electricidade, uma alternativa económica e a aplicação do princípio da responsabilização.
«Há também a campanha de boicote de 2018 que acho interessante mencionar aqui. De facto, após a liberalização dos preços dos combustíveis e a abolição dos subsídios para certos produtos básicos, Marrocos testemunhou muitas tentativas espontâneas de organizar campanhas de boicote contra produtos pertencentes a personalidades influentes próximas do governo. A campanha de 2018 dizia respeito a três marcas: a empresa Centrale para produtos lácteos do grupo Danone, a Sidi Ali pertencente a Meriem Bensaleh, ex-presidente da associação patronal, e a marca Afriquia, que detém a maior parte do mercado de distribuição de hidrocarbonetos e pertence ao actual chefe de governo Aziz Akhenouch. Este último é um dos homens mais ricos do continente. Acumulou a sua riqueza aproveitando a sua proximidade com o Palácio Real. A campanha de boicote foi muito bem sucedida e encontrou uma simpatia popular generalizada, não só nas redes sociais, mas também no terreno. As três empresas perderam vendas, algumas das quais chegaram aos 40% do seu volume de negócios e foram forçadas a rever as suas políticas de preços. Foi o caso da Danone relativamente à produção de leite.»
A situação actual da agricultura marroquina foi abordada numa edição recente
1
Aurélie Collas, «L’agriculture marocaine assoiffe le pays», Le Monde, 9 Outubro 2022.
do diário Le Monde: «Marrocos encontra-se numa situação de "stress hídrico estrutural", como o Banco Mundial assinalou em Julho num relatório sobre a economia marroquina. Com 600 metros cúbicos de água por pessoa por ano - em comparação com 2.600 metros cúbicos em 1960 - a procura de água excede largamente os recursos. "Nos 500 metros cúbicos, alcançaremos o limiar crítico de escassez. Muitas regiões já estão abaixo deste nível", adverte o Sr. Amraoui
2
Fouad Amraoui, professor em ciências da água na universidade Hassan II de Casablanca.
. O país encontra-se perante um dilema: como conciliar um modelo agrícola intensivo que representa 14% do PIB e emprega 40% da população activa, mas absorve 85% do consumo nacional de água, com o imperativo de preservar o que resta dos seus recursos hídricos?»
Semanas depois, o jornal
3
Aurélie Collas, «Au Maroc, l’oued victime des “voleurs d’eau“», Le Monde, 30 Outubro 2022.
voltou ao tema:
«"Não são agricultores, mas investidores nómadas: alugam terras aos agricultores durante uma estação agrícola, semeiam, colhem, embolsam os seus lucros e partem", acrescenta Kabir Kacha, membro da Associação Marroquina dos Direitos Humanos (AMDH) em Khénifra, muito activa na causa do Wadi [curso de água sazonal] Chbouka. "Levam água de graça, não pagam impostos, não contratam mão-de-obra local, não vendem aqui os seus legumes, mas enviam-nos para fábricas de batatas fritas. Não acrescentam qualquer valor à região. Pelo contrário, destroem o ambiente", denuncia este professor de filosofia, (...).
«Em Lehri, são chamados "ladrões de água". Desde Junho os habitantes enviaram sete cartas para alertar as autoridades públicas: o governador da região, os ministérios do interior, do equipamento, da agricultura, etc. Foram organizadas várias manifestações. "Mas, em todas, a polícia ordenou-nos que ficássemos em casa. Tudo é feito para nos manter calados", protesta Kenza (nome alterado), um residente da aldeia, referindo-se também a um comunicado do conselho municipal, datado de 20 de Junho, que acusa os manifestantes de "criar divisões" e afugentar os "investidores agrícolas". "Obviamente, as autoridades locais estão a protegê-los. A grande questão é porquê? O que têm a ganhar?", pergunta Mohamed Zendour, presidente da secção local da AMDH.»
Peça chave na preservação do regime autoritário é o controlo sobre os meios de comunicação social e a repressão sobre os que desafiam o status quo. Ganha, assim, um maior relevo o prémio atribuído pela organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), na 30ª edição dos prémios dedicados à Liberdade de Imprensa celebrada na capital francesa, ao jornalista Omar Radi, condenado a seis anos de prisão por «violação e espionagem».
Radi, um jornalista que se destacou pelo trabalho de investigação em temas sensíveis, como a corrupção, ao longo dos últimos dez anos, tornou-se alvo de uma investigação policial em Junho de 2020 por «espionagem» quando a Amnistia Internacional revelou que o seu telemóvel tinha sido alvo do programa israelita Pegasus. Um mês mais tarde foi preso, alegadamente por «violação».
Já antes a RSF tinha denunciado «que a situação dos meios de comunicação social no país é a pior desde que Mohammed VI se tornou rei em 1999.» Khaled Drareni, representante da organização para o Norte de África, comentou: «O regresso às práticas dos anos mais negros de Marrocos é perturbador e inaceitável. Contraria a imagem de respeitabilidade que o governo gosta de mostrar ao mundo e, acima de tudo, vai contra as legítimas aspirações da população marroquina ao exercício efectivo das suas liberdades, incluindo a liberdade de imprensa. Exigimos que as autoridades libertem os jornalistas presos, anulem as suas condenações, especialmente as de Souleiman Raissouni e Omar Radi, e desistam de qualquer processo judicial pendente.»
Mas não são só os jornalistas a serem vítimas da repressão policial. O medo da mudança leva o regime a prender figuras da elite que com ele colaboraram. É o caso de Mohammed Ziane, ministro dos Direitos Humanos em 1995 e 1996, preso e condenado a três anos de detenção em Novembro passado. «O Sr. Ziane, de 79 anos de idade, foi processado por uma queixa do Ministério do Interior marroquino com 11 acusações, incluindo "insultar funcionários públicos e o poder judicial", "insultar um organismo constituído", "difamação", "adultério" e "assédio sexual".»
Todas estas práticas repressivas estão devidamente identificadas e são do conhecimento das Nações Unidas. A Revisão Periódica Universal levada a cabo pela Comissão dos Direitos Humanos da ONU abordou no passado mês de Novembro a situação em Marrocos, recolhendo e sistematizando um vasto leque de informações cujo relatório é público.


 


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