sexta-feira, 4 de novembro de 2022

ONU: DA POBREZA DO DISCURSO E RESPECTIVA PRÁTICA

(Boletim nº 114 - Novembro 2022)

No passado dia 3 de Outubro o Secretário-geral das Nações Unidas apresentou o seu relatório sobre a questão do Sahara Ocidental que «abrange os desenvolvimentos ocorridos desde a emissão do meu relatório anterior de 1 de Outubro de 2021 (S/2021/843) e descreve a situação no terreno, o estado das negociações políticas sobre o Sahara Ocidental, a implementação da Resolução 2602 (2021) e os desafios existentes para as operações da Missão e medidas tomadas para lhes fazer face.»

Descolonização ou ”desentendimento regional”?
Apresentado anualmente ao Conselho de Segurança, baliza a resolução que assegura o prolongamento do mandato da MINURSO — Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental – e o conteúdo do mandato do Representante Pessoal do Secretário-geral para o Sahara Ocidental, que dirige o processo negocial. Da sua leitura, sublinhamos a demissão das Nações Unidas na defesa dos seus próprios princípios.
Dias depois de ter sido aprovada uma moção na Comissão Especial de Políticas e Descolonização da Assembleia Geral das Nações Unidas (conhecida como Quarta Comissão), na qual se reconhece o Sahara Ocidental como um território não autónomo, pendente de descolonização, o relatório do Secretário-geral mantém a tendência que se tem vindo a afirmar no âmbito do Conselho de Segurança da ONU de apresentar o conflito não como uma questão de descolonização mas como um desentendimento regional do qual se exige das partes “boa-fé” e “bom senso”. O compromisso assumido pelas Nações Unidas de proceder a uma consulta à população saharaui – tal como o exige a sua própria Carta e resoluções e consubstanciado na criação da MINURSO — tem vindo a ser substituído por uma linguagem que abre a porta ao esquecimento deste compromisso. «[§90] Apesar deste contexto desafiador, continua a ser minha convicção que uma solução política para a questão do Sahara Ocidental é possível, desde que todos os interessados se empenhem de boa-fé e haja um apoio contínuo da comunidade internacional. As Nações Unidas continuam disponíveis para reunir todos os interessados na questão do Sahara Ocidental na procura de uma solução pacífica.» A ONU aparece como uma entidade benemérita que ajuda os desentendidos a entenderem-se. Como se não houvesse direito internacional e não competisse às Nações Unidas zelar pelo seu cumprimento. Como se não houvesse um território ocupado e um poder ocupante.
Neste quadro, actos ilegais de Marrocos são por vezes apontados mas nunca condenados, nem mesmo questionados, normalizando-os e branqueando as respectivas responsabilidades.
Alguns exemplos: «[§10] A 8 de Setembro de 2021 realizaram-se em Marrocos eleições legislativas, a nível regional e comunal e na parte do Sahara Ocidental sob controlo marroquino. Numa carta que me foi dirigida em 13 de Setembro, o Representante Permanente de Marrocos referiu-se às taxas de participação dos eleitores no Sahara Ocidental como "uma nova confirmação, através das urnas, do compromisso inabalável dos cidadãos das províncias do sul à sua marroquinidade".» A realização de eleições por parte do poder ocupante num território ocupado não é legítimo. Muito menos a aceitação deste tipo de argumentação que, aliás, nos poderia fazer perguntar: se as autoridades marroquinas estão tão seguras do resultado da votação, porque não aceitam o referendo?
«[§67] A exigência de Marrocos de que a MINURSO utilize matrículas de veículo marroquinas a oeste do muro de separação [isto é, na parte ocupada por Rabat], em contravenção do acordo de estatuto-de-missão, juntamente com a carimbagem dos passaportes MINURSO por Marrocos, também continuou a afectar a percepção da população local sobre a imparcialidade da Missão.
«Em Março de 2014, o meu Representante Especial chegou a um acordo verbal com o Governo de Marrocos para a substituição gradual das placas de matrícula marroquinas por matrículas das Nações Unidas (S/2014/258, §50). Esse acordo ainda não foi implementado.» Ao fim de oito anos, tudo o que a ONU tem para dizer é simplesmente reconhecer o facto?
Um dos maiores escândalos da actuação de Rabat é o sistemático fecho do território do Sahara Ocidental a todas as entidades e pessoas que não apoiam incondicionalmente a sua política de ocupação. Começando pelas próprias Nações Unidas:
«[§27] (...), o meu Enviado Pessoal tinha comunicado às autoridades marroquinas a sua intenção de visitar o Sahara Ocidental. Também assinalou publicamente esta intenção antes da sua viagem, observando que seria guiado pelo formato das visitas empreendidas pelos seus antecessores. Durante as consultas com as autoridades marroquinas sobre o planeamento da sua proposta de visita ao Sahara Ocidental, o meu Enviado Pessoal foi informado da posição do Governo de Marrocos de que não lhe seria possível encontrar-se com representantes da sociedade civil e organizações de mulheres por ocasião desta primeira visita. À luz dos princípios das Nações Unidas, em particular a importância da participação igualitária das mulheres e do seu pleno envolvimento em todos os esforços para a manutenção e promoção da paz e da segurança, e considerando também a importância do envolvimento com organizações da sociedade civil, o meu Enviado Pessoal decidiu não prosseguir com uma visita ao Sahara Ocidental durante a viagem, mas declarou que esperava fazê-lo durante as suas próximas visitas à região".»
«[§77] O Gabinete do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (OHCHR) não pôde realizar quaisquer visitas ao Sahara Ocidental pelo sétimo ano consecutivo apesar de múltiplos pedidos e apesar do Conselho de Segurança na sua resolução 2602 (2021), encorajar fortemente o reforço da cooperação. A falta de informação em primeira-mão foi prejudicial para uma avaliação global dos direitos humanos na região. Além disso, defensores dos direitos humanos internacionais, investigadores, advogados e observadores foram alegadamente expulsos ou impedidos de entrar no Sahara Ocidental.»
Em 14 de Outubro o Secretário-geral da Frente POLISARIO Brahim Ghali escreveu a António Guterres dando-lhe conta da sua leitura do relatório apresentado, onde lhe chama a atenção para a parcialidade do mesmo, apontando exemplos concretos que justificam a sua crítica e a sua preocupação.
Como escreve Lehbib Abdelhay, «a única conclusão que se pode tirar do relatório do SG da ONU sobre o Sahara Ocidental é que ele dá aos saharauis motivos para prosseguirem a luta armada como única opção para alcançar os seus direitos e desconfiarem da ONU até que esta demonstre de novo a sua adesão às suas próprias resoluções sobre a questão da descolonização da última colónia africana.»

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