quarta-feira, 5 de outubro de 2022

RESPEITAR OU OBSTACULIZAR O DIREITO INTERNACIONAL, EIS A QUESTÃO

(Boletim nº 113, Outubro 2022)

Enquanto a guerra prossegue no Sahara Ocidental ao longo do “muro da vergonha”, e o processo de reatamento das negociações sob os auspícios da ONU se revela, mais uma vez, difícil, as diplomacias de ambas as partes – Marrocos e a Frente POLISARIO — mantêm-se extremamente activas. A conjuntura internacional também o propicia.

Gustavo Petro com, à sua direita, Mohamed Salek

A 22 de Setembro o Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos emitiu uma sentença na qual lembra que «a noção de autodeterminação tem uma forte ressonância em África e reveste um significado particular e profundo para o seu povo. A colonização, o apartheid, a ocupação militar e as diversas formas de opressão estrangeira das quais o continente foi vítima moldaram a identidade e a história africanas como sendo intrinseca e inextricavelmente ligadas à luta pela autodeterminação.» (§ 290). E faz notar que a Carta da União Africana (UA) «consagra, além disso, explicitamente, o direito dos povos colonizados ou oprimidos a libertarem-se dos laços de dominação e o direito à assistência dos Estados-partes na sua luta pela liberdade.» (§ 295).
«(…) o Tribunal observa que a ONU e a UA reconhecem a situação da RASD como uma situação de ocupação e consideram o seu território como um dos territórios cujo processo de descolonização ainda não está totalmente concluído. Por conseguinte, ambas as organizações têm apelado consistentemente a Marrocos e à RASD para que se empenhem de boa-fé em negociações directas, com vista à realização de um referendo para garantir o direito à autodeterminação do povo saharaui.» (§301).
«O Tribunal sublinha que a ocupação continuada da RASD por Marrocos é incompatível com o direito à autodeterminação do povo da RASD, tal como consagrado no artigo 20 da Carta, e constitui uma violação desse direito.» (§303). «O Tribunal observa que tendo em conta que uma parte do território da RASD continua ocupado por Marrocos, é incontestável que os Estados que são partes da Carta têm individual e coletivamente uma obrigação para com o povo da RASD, a de proteger o seu direito à autodeterminação, em particular prestando-lhe assistência na sua luta pela liberdade, abster-se de qualquer tipo de reconhecimento da ocupação marroquina e denunciar a violação dos direitos humanos que possam resultar desta ocupação.» (§307).
«O Tribunal reitera (…) que todos os Estados-partes da Carta e do Protocolo, bem como todos os Estados-membros da União Africana, têm a responsabilidade, nos termos do direito internacional, de encontrar uma solução permanente para a ocupação, de garantir o usufruto do direito inalienável do povo saharaui à autodeterminação, e de não fazer nada que possa reconhecer essa ocupação como legal ou obstaculizar o usufruto desse direito.» (§323).
O veredicto foi resultado de uma queixa interposta por um cidadão do Gana, representado por um conhecido advogado nigeriano, Femi Falana, contra oito países – Benim, Burkina Faso, Costa do Marfim, Gana, Mali, Malawi, Tanzânia e Tunísia – pelo facto de não terem cumprido com os seus deveres de proteger os direitos políticos, económicos, sociais e culturais do povo saharaui estipulados na Carta Constitutiva da União Africana, na Carta Africana dos Direitos Humanos e noutros textos legais, incluindo os dois pactos internacionais dos Direitos Humanos. Embora estes Estados não tenham sido condenados, em resposta aos termos em que foi apresentada a queixa, o Tribunal tornou inequívoco o direito à autodeterminação do povo do Sahara Ocidental e as obrigações daí decorrentes para todos os Estados-membros da UA.

Dois pesos, duas medidas

Os êxitos diplomáticos de cada parte do conflito têm-se medido através de alguns actos concretos: o reconhecimento ou o restabelecimento de relações entre a RASD e outros Estados e a reafirmação jurídica do direito do povo saharaui à autodeterminação, por um lado; a abertura de consulados no território ocupado e declarações de apoio à proposta de autonomia no quadro da soberania marroquina, por outro.
Ao longo dos anos, fruto das pressões e das ofertas marroquinas, vários países suspenderam o reconhecimento ou recusaram continuar a reconhecer a RASD. Alguns abriram consulados em El Aiun (capital do Sahara Ocidental) ou Dakhla (cidade portuária importante), embora não tenham cidadãs e cidadãos, nem empresas, que o justifiquem: é um agradecimento à potência ocupante pelos benefícios recebidos. Estão neste caso as Comores (2019); o Bahrein, o Burkina Faso, o Burundi, a Costa do Marfim, Djibuti, os Emirados Árabes Unidos, Essuaitíni, o Gabão, a Gâmbia, a Guiné-Bissau, a Guiné-Conacri, a Guiné Equatorial, o Haiti, a Libéria, a República Centro-africana, a República Democrática do Congo, São Tomé e Príncipe, a Zâmbia (2020); a Jordânia, o Malawi, o Senegal, a Serra Leoa, o Suriname (2021); o Togo e Cabo Verde foram os mais recentes (2022).
De acordo com a sentença do Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos, acima mencionada, estes países (maioritariamente africanos) estão activamente a «obstaculizar [o] direito [à autodeterminação]» do povo saharaui.
Os EUA e a Espanha não constam desta lista. Donald Trump reconheceu através de um tweet, em Dezembro de 2020, já depois de perder as eleições, a soberania marroquina sobre o Sahara Ocidental – declaração que não foi negada até agora pela administração Biden – mas nenhum dos planos subsequentes teve seguimento, nomeadamente o de abrir um consulado em Dakhla. Pelo contrário, o Senado norte-americano aprovou em Agosto passado uma proposta de orçamento para o ano fiscal de 2023 na qual recusa explicitamente qualquer financiamento para a construção ou funcionamento de um consulado.
A Espanha protagonizou até agora a maior cedência política à chantagem de Rabat, ao considerar oficialmente em Março que o plano de autonomia proposto pelo Reino de Marrocos em 2007 representa a proposta «mais séria, realista e credível» para a resolução da questão saharaui e, mais grave, que este posicionamento serve «para garantir a estabilidade, soberania, integridade territorial e prosperidade dos nossos dois países» (como se sabe, a “integridade territorial” de Marrocos significa, para este país, o reconhecimento da sua soberania sobre o território não-autónomo do Sahara Ocidental). Mas na Assembleia Geral da ONU, em Setembro, o Presidente do governo Pedro Sánchez limitou-se a sinalizar que o seu país «apoia uma solução política mutuamente aceitável», regressando à retórica mínima habitual.
É que não é fácil negar claramente o Direito Internacional, não só quando se sucedem sentenças que reforçam inequivocamente o estatuto do Sahara Ocidental como território sem qualquer vínculo com Marrocos, por isso não-autónomo e pendente de um processo de descolonização (Tribunal de Justiça da UE, em 2021; Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos, em 2022), mas para mais quando, a propósito da invasão russa da Ucrânia, se somam as declarações veementes a favor do direito à autodeterminação dos povos e contra a aquisição de territórios pela força…
Talvez tenha sido por isso que o Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, Josep Borrell, declarou a 23 de Agosto numa entrevista à televisão espanhola (RTVE): «A posição do Governo espanhol foi e é a da UE, ou seja, defender a realização de uma consulta para que seja o povo saharaui a decidir como quer que seja o seu futuro». O MNE marroquino, Naser Bourita, discutiu directamente com Borrell, de tal modo que ele teve de dar uma nova entrevista (à agência EFE), no dia seguinte, mas não conseguiu dizer mais do que reafirmar que a solução para o problema do Sahara Ocidental «passa por uma solução negociada entre as partes», «no âmbito das Nações Unidas». Irritado, o ministro Bourita desmarcou um encontro já agendado para Setembro com o Alto Representante da UE.
Na mesma semana, Rabat tentou tirar partido da visita da MNE alemã, Annalena Baerbock, a Marrocos. Lentamente, as relações entre os dois países, praticamente suspensas desde Março de 2021 por súbita iniciativa marroquina, foram sendo retomadas. Agora, uma declaração conjunta publicada no final da visita (26 Agosto), indicou que «A Alemanha considera o plano de autonomia apresentado em 2007 como um esforço sério e credível de Marrocos e como uma boa base para uma solução aceite pelas duas partes». No entanto, estamos longe da fórmula de Sánchez: a proposta «mais séria, realista e credível» (ou, seja a única).
Pelo facto da divulgação desta posição ter coincidido com a visita de estado do Presidente francês, Emmanuel Macron, à Argélia (25-27 Agosto) com, entre outras coisas, a questão do gás em cima da mesa, ela acabou por não ter internacionalmente o relevo desejado.

A luta continua!

A República Árabe Saharaui Democrática, proclamada unilateralmente pela Frente POLISARIO a 27 de Fevereiro de 1976, foi posteriormente reconhecida por 84 países e em 1984 a RASD tornou-se membro de pleno direito da Organização de Unidade Africana (OUA). Essa circunstância levou Marrocos, em protesto, a pedir de imediato a sua demissão da organização continental, à qual voluntariamente regressou em 2017 – nesse momento já transformada em União Africana (UA) — em reconhecimento implícito do fracasso da estratégia anterior.
No último mês, o Presidente da RASD e Secretário-geral da FPOLISARIO, Brahim Ghali, foi convidado para participar em três eventos importantes: a 8ª Conferência Internacional de Tóquio sobre o Desenvolvimento Africano (TICAD), que junta os membros da UA, o Japão e algumas organizações internacionais (Tunes, 27 e 28 de Agosto); a tomada de posse do Presidente do Quénia, William Ruto (Nairobi, 13 de Setembro); e a tomada de posse do Presidente de Angola, João Lourenço (Luanda, 15 de Setembro). Foi sempre recebido com honras de Chefe de Estado, como todos os seus colegas da UA.
Marrocos reagiu intempestivamente: na véspera da TICAD8 divulgou um comunicado em que anuncia que se retira da Conferência e chama o seu embaixador na Tunísia para consultas. O governo anfitrião tomou a medida recíproca, explicitando: «Tal como a Tunísia respeita as resoluções das Nações Unidas, também está vinculada pelas resoluções da União Africana, da qual o nosso país é um dos fundadores.» De relações cortadas com a Argélia, ameaçando regularmente a Mauritânia, Rabat amplia o seu isolamento na região ...
Em Nairobi, o MNE marroquino foi recebido no dia 14 pelo novo Presidente, que logo publicou no twitter: «Na Residência Oficial em Nairobi, recebida uma mensagem de parabéns de Sua Majestade o Rei Mohamed VI. O Quénia rescinde o seu reconhecimento da RASD e dá os primeiros passos para reduzir a presença da entidade no país». Horas depois a declaração foi apagada, mas, entretanto, o Ministério dos Negócios Estrangeiros marroquino tinha divulgado um comunicado oficial: «No seguimento da mensagem de Sua Majestade o Rei Mohamed VI ao novo Presidente da República do Quénia, Senhor William Ruto, a República do Quénia decidiu revogar o reconhecimento da chamada ‘RASD’ e dar os primeiros passos para fechar a sua representação em Nairobi». E acrescentava que tinha sido assinada uma declaração conjunta na qual «por deferência ao princípio da integridade territorial e da não-ingerência, a República do Quénia [tinha dado] o apoio total ao plano de autonomia sério e credível proposto pelo Reino de Marrocos» como a única solução possível para a questão do Sahara.
Para além da surpresa, as reações internas não se fizeram esperar, vindas de vários quadrantes. Cinco dias depois, o Ministério dos Negócios Estrangeiros queniano publicou, por sua vez, um comunicado, datado do dia 16: «A posição do Quénia sobre a RASD está totalmente alinhada com a Carta da UA que apela ao direito inquestionável e inalienável de um povo à autodeterminação. (…). A Resolução 690 (1991) do Conselho de Segurança da ONU apela à autodeterminação do Sahara Ocidental através de um referendo livre e justo organizado pela ONU e pela UA. O Quénia apoia à letra a implementação desta Resolução do Conselho de Segurança da ONU». E esclarece ainda: «Faz-se igualmente notar que o Quénia não conduz a sua política externa no Twitter ou em quaisquer outras plataformas sociais, mas sim através de documentos e funcionários governamentais».
Um caso com contornos semelhantes tinha acontecido no início de Agosto no Perú. O Presidente Pedro Castillo empossou no dia 5 um novo MNE, Miguel Rodriguez, a quem o ministro marroquino dos Negócios Estrangeiros telefonou, dois dias depois. De imediato ele cancelou o reconhecimento da RASD, celebrado um ano antes. A oposição protestou veementemente e exigiu a sua demissão. Um mês depois, o Presidente aceitou a carta de renúncia do ministro, reafirmou o respeito pelo direito à autodeterminação do povo saharaui e o reconhecimento da RASD, e voltou a chamar César Landa, o anterior MNE, para preencher o cargo.
Tranquila foi a cerimónia na qual, a 8 de Agosto, dia seguinte à histórica tomada de posse de Gustavo Petro como Presidente da Colômbia, este, ao lado do MNE saharaui, Mohamed Salem Ould Salek, confirmou o reconhecimento da RASD pelo seu governo.
Também o Sudão do Sul retomou as relações diplomáticas com a República Árabe Saharaui Democrática, em encontro entre as autoridades dos dois governos, à margem da Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque, no dia 20 de Setembro. Mas logo à embaixada do país em Rabat foi exigido um esclarecimento sobre o significado de tal reunião. O porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Sudão do Sul assinala então em comunicado que «o encontro entre a nossa delegação [chefiada pelo Vice-Presidente do país] e o Ministro dos Negócios Estrangeiros Saharaui não nega as nossas relações estratégicas bilaterais com o Reino [de Marrocos]. Além disso, a República do Sudão do Sul é um membro da União Africana e das Nações Unidas e gostaria de reiterar que não considera adequado ter opiniões contrárias à posição da União Africana e à resolução 690 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, como um quadro de compromisso viável que permita encontrar uma solução duradoura para a disputa relativa ao Sahara Ocidental». A explicação não deve ter sido suficiente, porque no dia seguinte o MNE sudanês, Mayiik Ayii Deng, escreveu ao seu homólogo marroquino, retomando integralmente os dois parágrafos acima citados, mas acrescentando outros dois: «Neste contexto, a República do Sudão do Sul, que apenas reconhece Estados que são membros da ONU, considera que um contacto com uma delegação não significa de nenhuma forma um reconhecimento estatal. Esperando sinceramente que esta explicação seja satisfatória para permitir que os dois países amigos continuem a reforçar as suas cordiais relações diplomáticas (...)».
Neste momento, em África, a RASD tem relações diplomáticas, a nível de embaixada, com a África do Sul, Angola, Argélia, Botsuana, Etiópia, Moçambique, Nigéria, Quénia, Tanzânia, Uganda e Zimbabué e é reconhecida ainda pelo Chade, Gana, Lesoto, Líbia, Mali, Maurício, Mauritânia, Namíbia, Ruanda, Seicheles e Sudão do Sul.
No quadro da CPLP, dos seus nove membros, três reconhecem a RASD e acolhem os seus embaixadores: para além de Angola e Moçambique, também Timor-Leste.
Nas Américas, há embaixadas da RASD em Cuba, Equador, México, Nicarágua, Panamá, Uruguai e Venezuela, e o Estado saharaui é também reconhecido pelo Belize, Bolívia, Colômbia, Honduras, Peru e Trinidad e Tobago.


 

 


Sem comentários:

Enviar um comentário