domingo, 4 de setembro de 2022

SAHARA OCIDENTAL: O “PRISMA” DE MARROCOS

(Boletim nº 112, Setembro 2022)

O reconhecimento norte-americano – via Trump – da anexação marroquina d(e parte d)o Sahara Ocidental foi um enorme incentivo ao regime de Rabat na sua aposta numa solução “caseira” para o processo de descolonização do território, como está patente no discurso de 20 de Agosto de Mohamed VI a pretexto da passagem do 69º aniversário da “Revolução do Rei e do Povo”.

Em busca do prisma

O discurso, basicamente centrado na defesa da ocupação do Sahara Ocidental, está dividido em duas partes. A primeira é uma enumeração das vitórias do regime nesta sua luta. A segunda é uma enumeração dos passos que há que dar para se chegar à vitória final.

«Nos últimos anos fizemos grandes progressos a nível regional e internacional, todos eles favoráveis à justa e legítima posição do Reino sobre a marroquinidade do Sahara.

«Assim, muitos países influentes, respeitadores da plena soberania de Marrocos sobre os seus territórios, mostraram a sua receptividade e apoio à Iniciativa de Autonomia, que é vista como a única forma possível de resolver este conflito regional artificial.

«A posição dos Estados Unidos da América, que se tem mantido constante independentemente de mudanças na administração ou na situação económica, torna este acolhimento favorável incontornável.

«Saudamos igualmente a posição clara e responsável de Espanha, um país vizinho que conhece perfeitamente bem a origem e a verdadeira natureza deste conflito.

«Esta postura construtiva marcou uma nova etapa na parceria hispano-marroquina que nenhuma contingência regional ou desenvolvimento político interno pode agora afectar.

«Além disso, a atitude construtiva em relação à Iniciativa de Autonomia tomada por alguns países europeus como a Alemanha, Holanda, Portugal, Sérvia, Hungria, Chipre e Roménia, contribuirá para estabelecer um novo marco nas relações de confiança com estas nações amigas, reforçando a parceria de qualidade que as liga ao nosso país.

«Paralelamente a este apoio, cerca de trinta países abriram consulados nas províncias do Sul, marcando assim o seu claro apoio à integridade territorial do Reino e à marroquinidade do Sahara.

«Aproveitamos esta oportunidade para reiterar a expressão da Nossa consideração aos Nossos Irmãos Reis, Emires e Presidentes dos países árabes irmãos, nomeadamente Jordânia, Bahrain, Emiratos Árabes Unidos, Djibuti e Comores, que abriram consulados em Laayoune e Dakhla.

«Agradecemos também aos restantes Estados árabes que têm afirmado constantemente o seu apoio à marroquinidade do Sahara, e especialmente aos países do Conselho de Cooperação do Golfo, Egipto e Iémen.

«Além disso, as posições dos nossos irmãos africanos são para nós uma verdadeira fonte de orgulho, uma vez que cerca de 40% dos Estados africanos, pertencentes a cinco agrupamentos regionais, abriram consulados em Laayoune e Dakhla.

«Esta dinâmica também diz respeito aos países da América Latina e Caraíbas, muitos dos quais abriram consulados no Sahara marroquino, enquanto outros decidiram alargar a sua jurisdição consular às províncias do sul do Reino.

«Dada esta evolução positiva que envolve países de todos os continentes, gostaria de enviar uma mensagem clara a todos: a questão do Sahara é o prisma através do qual Marrocos vê o seu ambiente internacional. É também, clara e simplesmente, a bitola que mede a sinceridade das amizades e a eficácia das parcerias que constrói.

«Em relação a certos países entre os nossos parceiros, tanto tradicionais como novos, cujas posições sobre a questão do Sahara são ambíguas, esperamos que clarifiquem e revejam a sua posição de uma forma que não deixe margem para equívocos.»

E qual é a chave para abrir a porta da vitória redentora?

«Uma frente interna unida e plenamente mobilizada, onde quer que se encontrem, para contrariar as manobras dos inimigos: esta é a base em que qualquer estratégia de defesa da marroquinidade do Sahara deve assentar.

«Gostaria de aproveitar esta oportunidade para saudar e assegurar aos membros da comunidade marroquina que vivem no estrangeiro a Minha estima pela defesa abnegada da integridade territorial do seu país, fazendo ressoar a causa nacional em todos os fóruns à sua disposição e através das posições que ocupam. (…).

«Chegou portanto o momento de dotar esta comunidade do enquadramento, dos meios e das condições necessárias para dar o melhor de si, no melhor interesse do seu país e do seu desenvolvimento. (…).»

Na sua abordagem o rei não se refere à situação dos marroquinos residentes em Marrocos e que os obriga a sair do país. E contudo, como escreve o jornal Le Monde:1

«O modus operandi está bem estabelecido e é sistemático. O governo marroquino "esmaga toda a oposição" através da aplicação metódica de um "verdadeiro manual" de "técnicas indirectas e desleais", enquanto se esforça por preservar a sua imagem como um "país moderado que respeita os direitos", disse a Human Rights Watch (HRW) num relatório publicado a 28 de Julho. A investigação, baseada em entrevistas a quase 90 pessoas e na análise de doze julgamentos envolvendo oito jornalistas ou intelectuais, é a primeira investigação em larga escala sobre a metodologia utilizada pelo regime de Rabat nos últimos dez anos para "amordaçar as vozes críticas" e "afugentar todos os potenciais críticos do Estado". (…).

«Embora o silenciamento dos opositores tenha uma história muito longa em Marrocos, desde meados da década de 2010 tem assumido uma nova forma, observa o relatório, sendo estas vozes discordantes acusadas de "crimes que não o de expressão": adultério, violação e agressão sexual, espionagem, lavagem de dinheiro e até mesmo tráfico de seres humanos. A ideia subjacente é evitar, tanto quanto possível, julgamentos manifestamente demasiado políticos - susceptíveis de heroicizar aqueles que estão a ser processados - baixando-os à vil posição de vigaristas, depravados ou violadores. Os casos de agressão sexual, em particular, visam esconder-se atrás da onda internacional #metoo, para melhor tornar os arguidos indefensáveis.»

Uns dias antes tinha sido divulgado o contributo da União Europeia para “dotar” com “os meios necessários” o desenvolvimento da sociedade marroquina, como explica um trabalho de Zach Campbell e Lorenzo D’Agostino da Disclose, uma associação de jornalistas que integra «a Rede Internacional de Jornalismo de Investigação (GIJN), um grupo de 184 organizações com sede em 77 países cuja missão é apoiar e reforçar o jornalismo de investigação.»

«Para reforçar o controlo dos migrantes, a União Europeia forneceu à polícia marroquina programas para extrair dados de telemóveis. Na ausência de monitorização, estas tecnologias podem ser utilizadas para aumentar a vigilância sobre jornalistas e defensores dos direitos humanos em Marrocos.

«A Disclose, em parceria com o semanário alemão Der Spiegel, revela que a UE entregou ao Reino de Marrocos poderosos sistemas de vigilância digital. Programas concebidos por duas empresas especializadas em pirataria telefónica e extracção de dados, a MSAB e a Oxygen Forensics, antes de serem entregues às autoridades marroquinas pela Intertech Líban, uma empresa franco-libanesa. Tudo sob a supervisão do Centro Internacional para o Desenvolvimento da Política Migratória (ICMPD). O objectivo oficial desta transferência, financiada pelo orçamento do "programa de gestão de fronteiras da UE para a região do Magrebe", era combater a imigração irregular e o tráfico de seres humanos às portas da Europa. (…).

«Para além da compra dos programas de espionagem e dos computadores onde estão instalados, a União Europeia também financiou sessões de formação dadas às forças de polícia marroquina por funcionários da Intertech e da MSAB e Oxygen Forensics. Mas isso não é tudo. De acordo com documentos internos obtidos pela ONG Privacy International, a Europa também enviou os seus próprios peritos da Academia Europeia de Polícia, CEPOL, para uma formação de quatro dias em Rabat entre 10 e 14 de Junho de 2019. Na ordem do dia: sensibilização sobre "recolha de informação a partir da Internet"; "reforço da capacidade de investigação digital"; introdução ao "hacking social", uma prática que consiste em extrair informação de alguém através de redes sociais. (…).

«Resta saber se estas tecnologias de vigilância digital são, real e exclusivamente, utilizadas para combater a imigração ilegal. No entanto, de acordo com a nossa investigação, nunca foi efectuado qualquer controlo. Nem dos fabricantes nem dos funcionários europeus. Por outras palavras, Marrocos poderia decidir utilizar as suas novas aquisições para a repressão interna sem que a União Europeia o soubesse. Este risco é ainda mais grave, segundo os investigadores de segurança digital contactados pela Disclose, porque o XRY e o software Detective não deixam vestígios em dispositivos pirateados... ao contrário do Pegasus. (…).

«Para garantir que o equipamento não será desviado do seu objectivo oficial, a Comissão Europeia afirma que um documento de compromisso foi assinado pelas autoridades marroquinas – que não nos foi transmitido. De acordo com um porta-voz da Comissão contactado pela Disclose, o documento afirma que a tecnologia só será utilizada para combater o "tráfico de pessoas". Nada mais? "A UE confia em Rabat para respeitar o seu compromisso, é da sua responsabilidade", elude-se o porta-voz. (…).

«De facto, esta transferência de tecnologia deve ser objecto de especial atenção. Isto porque os sistemas fornecidos pela UE são classificados como bens de dupla utilização (BDU), ou seja, podem ser utilizados tanto no contexto militar como civil. Este tipo de exportação é mesmo regulamentado por uma posição comum da UE datada de 2008, que estipula que a transferência de bens de dupla utilização é proibida se existir um "risco claro" de que o equipamento entregue possa ser utilizado para "repressão interna". Este risco foi amplamente confirmado no caso marroquino, como o demonstrou o caso Pegasus.

«Quando contactadas, a MSAB e a Oxygen Forensics recusaram-se a responder. O mesmo aconteceu com os reguladores sueco e americano em matéria de exportação de bens de dupla utilização. Também não houve resposta das autoridades marroquinas. (…).

«No parlamento europeu estas exportações estão longe de ser unânimes. “A pretexto de proteger as nossas fronteiras, não podemos estar satisfeitos com as promessas de um regime autoritário", disse a eurodeputada Markéta Gregorová (do grupo dos Verdes). “É uma negligência deliberada e moralmente inaceitável por parte da Europa”. Esta negligência é tanto mais perturbadora quanto a empresa MSAB foi acusada de ter equipado a polícia birmanesa em 2019, numa altura em que os abusos contra a população civil eram conhecidos e estavam documentados.»

1Le Monde, 29 Julho 2022, p. 5.


 




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