sexta-feira, 5 de agosto de 2022

ONU: A DIFICULDADE DE NEGOCIAR

(Boletim nº 111, Agosto 2022)

O resultado da segunda visita à região do Enviado Pessoal do Secretário-geral da ONU para o Sahara Ocidental foi pouco encorajador. Na semana seguinte, um dos seus antecessores, o embaixador Christopher Ross, dirigindo-se a uma iniciativa europeia, partilhou a sua experiência e ideias sobre o processo, contribuindo para se perceber o que se está a passar.

Falta de apoio para negociar

Visando relançar o processo negocial sobre o Sahara Ocidental, no passado dia 1 de Julho o Secretário-geral da ONU, através do seu porta-voz Stephan Dujarric, anunciou que o seu Enviado Pessoal para aquele território, Staffan de Mistura, iria empreender nos dias seguintes uma nova ronda de negociações na região, com encontros com as autoridades marroquinas em Rabat e uma visita ao Sahara Ocidental.
«Durante esta fase de contactos», disse Dujarric, «o Enviado Pessoal pretende continuar a guiar-se pelos precedentes claros estabelecidos pelos seus antecessores», esperando aprofundar as consultas que iniciou aquando da sua anterior visita, em Janeiro, onde se deslocou igualmente aos acampamentos de refugiados na região de Tindouf (Argélia).
Agora previa-se uma deslocação a El Aiun, capital do Sahara Ocidental, em 4 de Junho, onde se encontraria com membros da MINURSO, facto que não ocorreu por Marrocos não o ter permitido. Recorde-se que as visitas dos Enviados Pessoais ao território saharaui têm tido sempre a "aprovação" prévia da potência ocupante que impõe condições para o seu “consentimento”, e em algumas ocasiões as vetou. O último Enviado a encontrar-se oficialmente com grupos saharauis pró-independência foi Christopher Ross em 2012 e o governo marroquino proibiu-o posteriormente de viajar para o Sahara, entrando em conflito directo com ele e declarando-o como 'persona non grata'. A actual iniciativa diplomática de Staffan de Mistura resultou assim num fracasso.
Ross aceitou partilhar a sua experiência enquanto Enviado Pessoal do Secretário-geral da ONU para o Sahara Ocidental entre 2009-2017 por ocasião do "1º Dia Europeu da Amizade com o Povo Saharaui", realizado em Florença, Itália, no dia 7 de Julho.
Ross: uma longa experiência
«(…) Visitei pela primeira vez os campos de refugiados em 1981 e vi em primeira mão as trágicas condições de vida da população. Estava determinado a que, se alguma vez surgisse a oportunidade de ajudar a pôr fim ao seu sofrimento e permitir-lhes regressar à sua pátria de uma forma mais humana, eu faria tudo para os ajudar. (…).
«Em 2007, antes da minha nomeação, o Conselho de Segurança tinha apelado a negociações, sem condições prévias e de boa-fé, entre Marrocos e a FPOLISARIO. O seu objectivo, segundo o Conselho, era, e continua a ser, o de alcançar "uma solução política mutuamente aceitável, que preveja a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental".
«Em Abril desse ano as duas partes apresentaram as suas propostas: Marrocos para uma ampla autonomia do Sahara Ocidental sob a sua soberania, a FPOLISARIO para um referendo que incluísse a independência como opção e que delineasse as relações estreitas que um Estado independente teria com Marrocos. Estas propostas eram mutuamente exclusivas e deixavam pouco espaço a compromissos. (…).
«Infelizmente, nada que se possa chamar uma negociação teve alguma vez lugar e a comunidade internacional tem todo o direito de saber porquê. A FPOLISARIO compareceu em cada sessão pronta para discutir ambas as propostas, mas Marrocos veio com uma importante condição prévia: que se discutisse apenas a sua própria proposta. Escusado será dizer que a FPOLISARIO se recusou a aceitar o que via como um dictat, e as negociações foram um nado-morto desde o início. (…).
«Na ausência de progressos sobre o futuro do território, os direitos humanos em particular emergiram como um campo de batalha substituto, com cada lado a acusar o outro de violações graves. Em cada um dos seus relatórios ao Conselho de Segurança, o Secretário-geral apelou à monitorização independente dos direitos humanos, mas em vão. Enquanto a FPOLISARIO manifestou a sua vontade de aceitar o controlo nos campos de refugiados na Argélia, Marrocos recusou-se a permitir a sua presença na parte do Sahara Ocidental sob o seu controlo, alegando que violaria a sua auto-proclamada soberania.
«O próprio Conselho de Segurança também desempenhou um papel importante na perpetuação do impasse de 13 anos ao não exercer qualquer pressão real sobre as partes no que respeita ao conteúdo de um acordo, devido a divisões entre os seus membros.
«Alguns, nomeadamente a França e os seus aliados africanos, apoiam a autonomia. Outros, incluindo o Reino Unido e, mais recentemente, a Rússia, defendem a autodeterminação. Em Dezembro de 2020, como se sabe, o Presidente Trump deu o passo insensato de reconhecer a soberania marroquina sobre o Sahara Ocidental, uma soberania que não existe e que não lhe cabia reconhecer. A acção de Trump foi irreflectida por três razões. Em primeiro lugar, complicou o processo de negociação, fazendo com que tanto Marrocos como a FPOLISARIO, bem como a Argélia, endurecessem ainda mais as suas posições. Em segundo lugar, destruiu quaisquer perspectivas iniciais de integração e cooperação regional, incluindo sobre migração ilegal, droga, contra-terrorismo e outras questões de segurança. E, em terceiro lugar, prejudicou as relações dos EUA com a Argélia, o seu outro grande parceiro no Norte de África e um dos principais defensores da autodeterminação. A Espanha imitou o exemplo dos EUA em Março de 2022, declarando a autonomia como a solução mais séria, realista e credível e desencadeando uma crise nas suas relações com a Argélia. É instrutivo a este respeito que nenhum outro grande país, nem mesmo a França, tenha seguido os EUA e a Espanha na declaração de apoio aberto à posição marroquina.
«Em suma, temos duas partes incapazes de negociar, o Conselho de Segurança dividido e os EUA e a Espanha a complicar as coisas. Mas para além de evitar compromissos e pressões substanciais, o Conselho permitiu que as partes, particularmente Marrocos, ignorassem impunemente a sua orientação. A FPOLISARIO e a Argélia, por seu lado, ignoraram o apelo do Conselho para um recenseamento formal dos refugiados, preferindo salientar que a estimativa da ACNUR de 2017 responde a essa necessidade. Entretanto, Marrocos ignorou o apelo do Conselho para evitar condições prévias nas negociações, o apelo para examinar a proposta da FPOLISARIO e o apelo para permitir o livre acesso da MINURSO a todos os interlocutores na sua área de operações.
«O que se segue agora quando o último Enviado Pessoal, Staffan de Mistura, começa a sua segunda viagem ao Norte de África?
«Se o seu mandato se limitar a deslocar-se de lugar em lugar e a organizar reuniões das partes, como foi o caso dos seus três antecessores, enfrentará as mesmas dificuldades que eles enfrentaram.
«Marrocos já está a insistir que a Argélia venha para a mesa de negociações como parte de pleno direito. A Argélia e a FPOLISARIO recusam-se a prosseguir nessa base.
«Creio que a única forma de De Mistura esperar quebrar o impasse é se o Conselho lhe der um mandato mais amplo, semelhante àquele em que James Baker trabalhou entre 1997 e 2004. Durante esses anos, a procura de um acordo estava nas mãos do Enviado Pessoal e não das partes. Baker apresentou diversas variantes de um plano de acordo e comprometeu-se com as partes sobre os seus detalhes. Os seus esforços falharam porque cada uma destas variantes levavam a um referendo sobre a autodeterminação em algum momento e porque Marrocos revogou o seu compromisso sobre esse referendo após a morte do rei Hassan II em 1999. Em sucessivos discursos ao longo dos anos, o rei Mohamed VI estabeleceu linhas vermelhas: nenhuma negociação excepto sobre os pormenores da autonomia, nenhum referendo que inclua a independência, e nenhum controlo dos direitos humanos. Pergunta-se, como é que De Mistura pode ter sucesso?
«O que devem então fazer os membros da comunidade internacional, incluindo governos e sociedade civil?
  1. Para dar espaço ao reinício do processo negocial, devem convencer todos os interessados a evitar novas acções provocatórias que possam conduzir a uma escalada das hostilidades.
  2. Devem apoiar plenamente De Mistura nos seus esforços para reavivar o processo negocial, em particular exortando as partes, os Estados vizinhos e as principais partes interessadas internacionais a envolverem-se plenamente nele.
  3. De acordo com as orientações do Conselho de Segurança, deveriam trabalhar para convencer Marrocos a negociar sem condições prévias e a comprometer-se com a proposta da FPOLISARIO numa base de reciprocidade.
  4. Se o processo de negociação permanecer bloqueado, devem trabalhar com os membros do Conselho de Segurança para dar a De Mistura um mandato mais amplo.
  5. Em conformidade com as orientações do Conselho de Segurança, devem trabalhar para convencer Marrocos a permitir o acesso da MINURSO a todos os interlocutores na sua área de operações. Paralelamente, devem encorajar Marrocos a abrir o território sob o seu controlo a jornalistas, académicos e outras partes interessadas. Medidas como estas permitiriam ao mundo avaliar os desejos dos habitantes do Sahara Ocidental que vivem sob controlo marroquino. Qualquer solução que não tenha em conta as opiniões desta população seria intrinsecamente desestabilizadora.
  6. Deveriam trabalhar para convencer a FPOLISARIO a retomar o seu antigo costume de receber o EPSG/Chefe da MINURSO em Rabouni, Argélia, em vez de no Sahara Ocidental a leste do muro. Devem também pressionar a FPOLISARIO e a Argélia para verificar a exactidão da estimativa da população de refugiados do ACNUR de 2017 por meios apropriados. Tal como acontece com os Saharauis Ocidentais que vivem sob controlo marroquino, qualquer solução que não tenha em conta a opinião desta última população seria igualmente desestabilizadora por natureza.
  7. De acordo com as orientações do Conselho de Segurança, deveriam trabalhar para convencer Marrocos a aceitar medidas independentes e credíveis para assegurar o pleno respeito pelos direitos humanos, como a FPOLISARIO está preparada para o fazer numa base de reciprocidade.
  8. Finalmente, mas de grande importância, deveriam trabalhar para mobilizar uma ajuda humanitária muito maior aos refugiados que vivem em condições miseráveis nos acampamentos.
«O povo autóctone do Sahara Ocidental já sofreu o suficiente e o seu direito a participar na determinação do seu futuro foi perdido na poeira do conflito e no nevoeiro das palavras.
«É tempo de pôr fim a este sofrimento e restaurar o seu direito à autodeterminação no contexto da solução política mutuamente aceitável solicitada pelo Conselho de Segurança.» 
 


 


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