sexta-feira, 5 de agosto de 2022

MARROCOS: REPRESSÃO CRESCENTE

(Boletim nº 111, Agosto 2022)

A aceitação de dois pedidos de asilo solicitados por cidadãos marroquinos (um deles enquanto cidadão francês) na China e no Canadá, devido às perseguições de que eram alvo por parte da polícia política marroquina, ilustra bem a natureza do regime de Rabat e até onde ele chega quando se trata de reprimir a sua própria população. O que se junta à violência continuada contra o povo saharaui no território ocupado.

A repressão permanente

A violação dos direitos humanos é uma prática intrínseca do actual regime marroquino, bem documentada e divulgada por organizações e instituições empenhadas na defesa destes direitos. Um desses testemunhos foi-nos dado pelos presos políticos saharauis, do chamado grupo de Gdeim Izik, e respectivas famílias que, a 1 de Julho, apresentaram uma queixa contra o reino de Marrocos junto do Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Detenção Arbitrária, alegando actos de tortura e repressão política.
O Grupo de Apoio de Genebra para a Protecção e a Promoção dos Direitos Humanos que divulgou em comunicado esta informação, lembra que «O grupo de Gdeim Izik refere-se a um grupo de aproximadamente 25 activistas saharauis, jornalistas, defensores dos direitos humanos, activistas políticos, advogados e manifestantes que foram detidos antes e depois do violento desmantelamento do campo de protesto de Gdeim Izik em Novembro de 2010. Com confissões assinadas sob tortura como principal prova de acusação, 23 dos prisioneiros de Gdeim Izik foram condenados a penas de prisão que variaram entre os 20 anos e a prisão perpétua por um tribunal militar em 2013, e depois, a 19 de Julho de 2017, por um tribunal de recurso civil para 19 dos seus membros. (…).»
«"Marrocos é conhecido por ser excelente na assinatura e ratificação de tratados da ONU e pelos seus esforços incansáveis para obter lugares nas várias comissões da ONU", disse Mads Andenas, conselheiro jurídico dos prisioneiros de Gdeim Izik e ex-relator do Grupo de Trabalho da ONU sobre Detenção Arbitrária. "Contudo, Marrocos também é conhecido pelo seu notório incumprimento e desrespeito dos instrumentos internacionais, pela sua não aplicação das decisões da ONU e pela punição das vítimas que cooperam com a ONU. Para que os nossos instrumentos de direitos humanos valham mais do que o papel em que estão escritos, não se pode permitir que esta espiral descendente e a erosão dos organismos da ONU continue.»
No dia seguinte chegava-nos um apelo da ASVDH (Associação Saharaui das Vítimas de Violações dos Direitos Humanos), dando conta de que a sua «sede, foi hoje, 2 de Julho de 2022, alvo de um assalto pela polícia de ocupação e dos seus serviços de informações, a fim de impedir a realização da primeira sessão da reunião do seu Conselho de Coordenação. (…).
«Desde a renovação do Conselho Executivo e do Conselho de Coordenação da ASVDH, as autoridades marroquinas recusaram-se a receber o dossier administrativo da associação e continuaram a obstruir o seu trabalho, o que constitui uma violação flagrante do direito internacional dos direitos humanos e do direito humanitário internacional.»
O apelo refere ainda que «no momento em que Bachri Ben Taleb, presidente da ASVDH, registava esta intervenção, um agente ocupante num carro preto "Dacia Duster" com o número "Maroc 205440" deu um pontapé no telefone do presidente que lhe feriu a mão e partiu o telefone.»
A população marroquina também é vítima desta violência. Eis dois exemplos, um ocorrido o ano passado e o outro recentemente.
O primeiro envolveu um casal de youtubers marroquinos. Como conta o jornalista Ali Lmrabet, «Desde Agosto [de 2021], a youtuber Dounia Moustaslim, mais conhecida pelo seu nome de casada Dounia Filali, e o seu marido Adnane Filali são oficialmente reconhecidos como refugiados políticos marroquinos na República da China. (…).»
«De um local não revelado na China, Dounia Filali e o seu marido Adnane, que concordaram em falar com o Middle East Eye [MEE], ainda estão espantados. São os primeiros marroquinos a ter obtido este precioso “abre-te sésamo” na China. Mas o caminho tem sido longo e tortuoso.»
Ali Lmrabet conta a história de como o casal se viu forçado a esta opção.
«Dounia Filali e o seu marido Adnane são a história de um jovem casal marroquino que se mudou pela primeira vez para Hong Kong em 2017, fundou uma empresa de vendas online, e um ano mais tarde, a fim de evitar continuar a pagar preços astronómicos pelo seu alojamento, mudou-se para Shenzhen, uma cidade a poucas centenas de metros de distância da antiga colónia britânica.
«O casal não deixou Marrocos por razões políticas ou mesmo económicas. O pai de Adnane, Mohamed Filali, é cartoonista e proprietário da empresa de que uma das suas publicações, a revista Akhbar Souk, foi uma das mais vendidas no reino durante o tempo de Hassan II. Algumas das suas edições atingiram facilmente um milhão de exemplares vendidos.
«O tio do Sr. Filali é Abdelmajid Fenjiro, antigo director-geral da MAP, a agência noticiosa oficial, e antigo embaixador do reino no Líbano. Um grande notável do regime, entretanto falecido. Isto significa que nada predestinou este casal, ligado à burguesia ociosa de Rabat, à dissidência política.
«Tudo corria bem para o casal até que Dounia Filali teve a ideia de criar na China um canal de televisão no Youtube. (…).
«”Cada um dos vídeos de Dounia começou a ultrapassar as 200.000 visualizações em poucos dias e pareceu sensato deixar o nosso negócio e concentrarmo-nos na gestão do canal", disse Adnane Filali ao MEE.
«Em Marrocos, enquanto se abordam assuntos de sociedade, mesmo os mais sensíveis, está-se relativamente a salvo de problemas. Mas se por acaso se alguém se interessar por uma questão política, como as falhas da monarquia, os poderes excessivos das várias polícias políticas e o conflito interminável do Sahara Ocidental – especialmente se tratar a informação de forma neutra – então a máquina da polícia política, grosso modo organizada em duas grandes estruturas, a DGST (Direction Générale de la Sûreté du Territoire, mais conhecida pelo seu nome obscuro de DST) e a DGED (Direction Générale des Études et de la Documentation), começa a trabalhar para o forçar a alinhar-se com as teses oficiais, ou, em caso de recusa, para o esmagar. (…).
«Para Dounia Filali, os tormentos começaram quando decidiu entrevistar Mohamed Ziane, ex-Ministro dos Direitos Humanos de Hassan II e antigo Bastonário, em Dezembro de 2020.
«Advogado do jornalista Bouachrine e dos detidos do movimento do Rif, Mestre Ziane tornou-se nos últimos anos o pior pesadelo dos serviços secretos marroquinos e do seu chefe Abdellatif Hammouchi, a quem refere pelo nome e critica nas suas muitas intervenções. (…).
«A entrevista de Ziane teve um efeito catalisador no canal Filali. O número de visualizações dos seus vídeos, mesmo os antigos, explodiu e o número de subscritores acompanhou-o. Mais de 265.000 até à data
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297.000 em 25 de Julho 2022.
.
«A partir desse momento, alguém altamente colocado decidiu colocar o casal Filali numa lista negra de importunos a abater. Por todos os meios. E a caça ao homem começou.
«Foi desencadeada uma gigantesca operação de desinformação mediática para silenciar o jovem casal. Com métodos, um modus operandi e uma linguagem nunca antes utilizados, mesmo durante os piores anos do regime de Hassan II. (…).
«Não tendo conseguido assustar os Filali, a pressão aumentou. Desta vez, as acusações imundas publicadas na imprensa marroquina estranhamente não provocaram qualquer reacção do Sindicato Nacional da Imprensa Marroquina (SNPM) ou do Conselho Nacional da Imprensa, os valentes cavaleiros da ética jornalística nacional quando se trata de atacar os raros meios de comunicação independentes. Dounia Filali foi apresentada como o resultado de um incesto cometido pelo seu avô sobre a sua mãe. Um sítio recomendou que ela praticasse 'prostituição' em vez de jornalismo e outro atacou os seus seios de forma directa. (…).
«Em Maio, o casal foi anonimamente avisado de que tinham sido trocados comentários ameaçadores contra eles num grupo privado da rede social Instagram. Foram feitas ameaças de morte explícitas, escritas e audiovisuais, de cara descoberta, por marroquinos que viviam na China. (…).
«Confrontados com uma ameaça directa, os Filali decidem comunicar o assunto às autoridades chinesas (…). A polícia pediu-lhes, entretanto, que suspendessem as suas actividades nas redes sociais até que o caso fosse esclarecido. (…).
«Entretanto, o casal tinha iniciado um procedimento junto do ACNUR
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Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.
para pedir asilo político. Sem acreditar muito nisso. (…). Uns dias mais tarde, as coisas mudam. O seu caso é recuperado pela questão do programa espião israelita Pegasus, no qual Marrocos desempenha um papel de primeiro plano.
«A revelação desta enorme rede de espionagem pela imprensa internacional desperta de certa forma os chineses. Os altos funcionários da polícia de Shenzhen substituíram a polícia local e convocaram o casal para lhes dizer que estavam a assumir a investigação sobre as ameaças que tinham recebido. (…).
«Alguns dias mais tarde, em Agosto, o ACNUR anunciou que lhes concedia o estatuto de refugiados políticos na China. Uma estreia para os cidadãos marroquinos. (…).
«Com novos documentos de residência, Dounia e Adnane Filali foram recentemente autorizados a retomar as suas actividades nas redes sociais. Começaram com uma entrevista a Ali Aarrass, um ex-preso político que passou uma década nas prisões do reino Xerifiano, período durante o qual ele foi, como testemunha a documentação audiovisual que conseguiu fazer sair da prisão, horrivelmente torturado. O vídeo já ultrapassou as 100.000 visualizações.»
O segundo caso teve como protagonista Zakaria Moumni, antigo campeão do mundo de light contact, na sua variante tailandesa. Desembarcou no Canadá em 5 de Abril de 2017, apresentando um passaporte francês e um pedido de asilo político, para grande espanto dos funcionários que o atenderam. Mas conforme conta o diário Le Monde na sua edição de 18 de Junho passado, «a 26 de Maio de 2022, a Comissão de Imigração e Refugiados do Canadá» concedeu-lhe «o estatuto de refugiado "na acepção do artigo 96" da Lei Canadiana de Imigração e Protecção de Refugiados, que abrange qualquer pessoa que tenha um "receio bem fundamentado de perseguição com base na raça, religião, nacionalidade, pertença a um determinado grupo social, ou opinião política”.»
Moumni «tinha deixado a França depois de mais uma série de ameaças, que tinha atribuído aos serviços de segurança marroquinos. Um país a cuja nacionalidade tinha renunciado e onde esteve preso durante 18 meses.
Após ter ganho o título de campeão em 1999, tentou arranjar um lugar de treinador ou formador, um prémio normalmente atribuído a desportistas de alto nível, o que lhe foi negado, injustamente na sua opinião. «Tinha abordado o Rei de Marrocos em várias ocasiões para denunciar a "corrupção" no seio da sua federação e tinha sido recebido pelo seu conselheiro, Mounir ElMajidi, que rapidamente se mostrou ameaçador», conta o Le Monde.
«Em Setembro de 2010, ao sair de um avião em Rabat vindo de França, foi detido pelos serviços secretos marroquinos e levado para o centro de interrogatórios de Témara. Aí foi torturado e privado de comida. "Eles disseram-me: ‘Este é o matadouro de Sua Majestade. Aqui fazemos o que queremos! (…)’”.
«No final de um julgamento rápido, Zakaria Moumni foi condenado a três anos de prisão efectiva por ter "extorquido" 2.800 euros a dois cidadãos marroquinos. Um "golpe fabricado", segundo os seus advogados de defesa.»
Em Fevereiro de 2014 apresentou num tribunal de Paris uma queixa por tortura contra «Abdellatif Hammouchi, o patrão da contra-espionagem marroquina». Rabat pagou-lhe na mesma moeda apresentando uma queixa por difamação que em Janeiro de 2015 foi recusada pelo tribunal de apelo.
«Um opositor regular da tortura, o Sr. Moumni tem sido alvo de repetidas ameaças de morte deixadas no seu atendedor de chamadas ou publicadas nas redes sociais. (...). Em Dezembro de 2016, apresentou uma queixa por tentativa de homicídio após ter sido atacado com uma faca. A queixa foi encerrada uma vez que os atacantes não tinham sido identificados. "Tinha esgotado todos os recursos: entre queixas, cartas a Bernard Cazeneuve (então Ministro do Interior), a François Hollande... Eu só estava a pedir protecção...", recorda ele.
«Decidiu então deixar a França, levando consigo as provas das suas audiências pela polícia judiciária francesa e pela DGSI, bem como os resumos das investigações judiciais.... Todos estes elementos levaram as autoridades canadianas a considerar que, se a França é de facto um Estado presumido capaz de proteger os seus cidadãos, não foi esse o seu caso. "As suas numerosas queixas contra as autoridades marroquinas corroboram as suas alegações de perseguição em França", nota a comissão canadiana. A facilidade com que os seus agressores conseguiram localizá-lo apesar das múltiplas mudanças de residência, a recorrência das ameaças e a sua multiplicação ao longo do tempo "levam o tribunal a concluir que o requerente foi vítima de perseguição política em França".
«Na fundamentação da sua decisão, a comissão acrescenta que "as provas indicam que as autoridades francesas tinham conhecimento da situação do requerente, uma vez que este tinha estado em contacto com agentes do Ministério do Interior durante muito tempo. "Tendo em conta todas as ameaças, parece que as autoridades francesas não demonstraram um mínimo de vontade de o proteger", acrescenta a comissão.
«A nota de decisão comenta duramente a relação entre os Estados marroquino e francês: "Num tal contexto, onde as relações diplomáticas e de segurança entre a França e Marrocos são muito importantes, parecia mais provável que as autoridades francesas privilegiassem esta relação em detrimento das queixas do requerente pela sua segurança em França", continua o organismo de protecção dos refugiados, sublinhando que "existe uma estreita colaboração entre as autoridades francesas e o Sr. Hammouchi, Director-geral da Segurança Territorial de Marrocos"... (…).»


 


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