sábado, 4 de junho de 2022

Boletim nº 109 - Junho 2022

RECUSAR A PRÁTICA DE «DOIS PESOS E DUAS MEDIDAS»

No passado dia 20 de Maio o jornal Público publicou na sua edição online um artigo de Luísa Teotónio Pereira, ex-coordenadora da Comissão para os Direitos do Povo Maubere (CDPM) e membro da Associação de Amizade Portugal-Sahara Ocidental (AAPSO), a propósito da passagem de uma data simbólica dos processos de libertação dos povos de Timor-Leste e do Sahara Ocidental. É esse texto que aqui partilhamos.

20 de Maio: «Viva o internacionalismo militante»

«Nos anos 1980 a solidariedade portuguesa assinalou de várias formas, no mesmo dia, o direito à autodeterminação de Timor-Leste e do Sahara Ocidental. Numa dessas iniciativas, que se tornou memorável, José Afonso juntou a sua voz à dos presentes na Voz do Operário, em Lisboa, ampliando a força das convicções na luta pela justiça a nível internacional.
O 20 de Maio celebrava a formação da ASDT (Associação Social-Democrata Timorense), em 1974, que meses mais tarde se transformaria na FRETILIN (Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente). Foi a data escolhida para o reconhecimento internacional da independência do país, em 2002, cujo 20º aniversário festejamos esta semana. Mas recordava também a realização, em 1973, da primeira acção armada da Frente POLISARIO (Frente Popular para a Libertação de Saguia El Hamra e Rio de Oro) contra o colonialismo espanhol. Sendo os dois “territórios não-autónomos”, pendentes de descolonização, e constando da lista das Nações Unidas no âmbito da Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais (1960), o paralelo era evidente.
Havia mais algumas coincidências. As ditaduras que governavam os dois países colonizadores entraram em colapso em meados da década de 1970, dando origem a processos de democratização: em Portugal, a 25 de Abril de 1974, através de um golpe militar que se transformou numa revolução; em Espanha, por vontade do ditador Franco, através da relegitimação da monarquia constitucional, em 1975. Os dois territórios foram invadidos por um poderoso vizinho, no último trimestre de 1975: o Sahara Ocidental pelo Reino de Marrocos, em final de Outubro (a data convencional é 6 de Novembro); Timor-Leste pela República da Indonésia, também a partir de Outubro, com o assalto final a Díli no dia 7 de Dezembro. Ambas as acções foram fortemente condenadas pela ONU. Os respectivos movimentos independentistas, como forma de luta contra a ocupação ilegal dos seus países, proclamaram unilateralmente a independência: a República Democrática de Timor-Leste foi instituída dias antes da conquista pela força de Díli, a 28 de Novembro de 1975; a República Árabe Saharaui Democrática foi consagrada no dia seguinte à total retirada das tropas espanholas, a 27 de Fevereiro de 1976. Em 1984 foi aceite como membro de pleno direito da Organização de Unidade Africana (hoje União Africana).
Em 1991 surgiu um raio de esperança: a FPOLISARIO e o Reino de Marrocos assinaram um acordo de cessar-fogo, sob os auspícios da ONU e da OUA, concordando em realizar um referendo de autodeterminação para decidir sobre o futuro do território. Nesse sentido, foi criada a MINURSO (Missão de Paz das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental) e iniciou-se o processo de identificação do universo eleitoral saharaui. A Resistência timorense, os activistas em vários países que apoiavam a luta pelos direitos do povo de Timor-Leste, festejaram. Era um precedente importante, e poder-se-ia aprender muito.
No mesmo ano de 1991, enquanto o regime marroquino colocava todos os entraves possíveis à elaboração dos cadernos eleitorais, em Timor ocorria o massacre de Santa Cruz, que despoletou a indignação mundial e deitou por terra um plano negociado durante anos entre Portugal e a Indonésia no sentido da aceitação da soberania indonésia contra promessas, por parte de Jacarta, de respeito pela cultura portuguesa e pela religião católica na sua “27ª província”. Seguiram-se a prisão de Xanana Gusmão e o seu mediático julgamento, o reforço dos protestos da juventude timorense, a expansão da solidariedade internacional a todos os continentes e, em 1996, o Prémio Nobel da Paz atribuído a Mons. Ximenes Belo e a José Ramos Horta. Foi nesse dia, no seu discurso de aceitação, que o bispo timorense afirmou: «quando um povo escolhe a via não-violenta é frequente ninguém o ouvir».
Fiel à palavra dada e à confiança na luta política por meios pacíficos, o povo do Sahara Ocidental esperou até que a ONU, em 2000, desse por terminado o recenseamento eleitoral. Ao conhecer o resultado, prevendo uma derrota, Marrocos recusou-se a aceitar a realização do referendo. A lógica de Rabat foi então a mesma de Jacarta: em 2007 ofereceu aos saharauis a possibilidade de uma autonomia no quadro do Reino.
O povo timorense teve a oportunidade de escolher, a 30 de Agosto de 1999, entre aceitar ou rejeitar a “autonomia especial integrada na Indonésia”. Sabe-se como apesar das ameaças, 95% dos eleitores inscritos foram votar, e 78,5% recusaram a autonomia, optando pela independência. Foi precisa clarividência e coragem política de todas as partes e apoio internacional a uma resolução pacífica de um conflito sem saída. As Nações Unidas ganharam credibilidade, Portugal, potência administrante, viveu um momento de unidade nacional lembrado com orgulho e saudade, a Indonésia libertou-se de uma guerra, e a região criou laços de cooperação entre os países que a compõem, a todos os níveis.
No caso do Sahara Ocidental, as negociações conduzidas pela ONU não chegaram até hoje ao desfecho que, de acordo com o Direito Internacional, só pode ser um: dar a palavra ao povo saharaui para que ninguém escolha por ele o seu futuro. Consequência de 45 anos de impasse, a guerra entre a FPOLISARIO e Marrocos recomeçou em Novembro de 2020, e continua. A procura de uma solução política também.
Ao mesmo tempo, a espiral de violação dos direitos humanos não cessa, porque uma ocupação pela força de um território é isso mesmo que provoca: humilhação e discriminação da população, reacção desta, repressão mais violenta, reforço das convicções e da luta. Um regime que oprime outros povos não aceita liberdades nem críticas em casa. Coerentemente, Marrocos é um regime autocrático, que castiga duramente todas as pessoas, incluindo intelectuais e jornalistas, que ousam pedir justiça.
A inaceitável invasão da Ucrânia levou à condenação generalizada, veemente, e com razão, da Rússia de Putin. O Secretário-geral das Nações Unidas disse: «As fronteiras não devem ser redesenhadas a bel-prazer das grandes potências... A Carta das Nações Unidas baseia-se na igualdade soberana de todos os seus membros. Exige ‘o respeito do princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos’. Não podemos permitir que se minem estas normas» (13 de Março de 2022).
Estas e outras afirmações semelhantes, assim como o processo de autodeterminação de Timor-Leste, expõem um problema que se tenta muitas vezes esconder: a prática da política de “dois pesos e duas medidas”, de acordo com interesses circunstanciais.
Saibamos renunciar a ela, é o nosso futuro comum que está em jogo.»

MARROCOS: AUTORIDADES INTENSIFICAM ASSÉDIO

A violação dos Direitos Humanos por parte do regime marroquino tem sido uma constante desde a independência em 1956. A partir do momento em que invadiu e ocupou o Sahara Ocidental, estendeu a este território essas mesmas práticas. Falar de Direitos Humanos é, assim, falar do que sofre a população marroquina e a população saharaui.

«Um dia seremos livres!»

No passado dia 25 de Abril o cidadão Rabie Al-Ablaq, um jornalista natural da região do Rife no norte de Marrocos, foi condenado a quatro anos de prisão e a pagar uma multa de 20.000 dirhams (cerca de 1.900 euros) por alegadamente "insultar" o rei Mohamed VI nas redes sociais.
Segundo a Human Rights Watch (HRW), a acusação surgiu a partir de dois vídeos, publicados no Facebook e no YouTube em Setembro e Novembro de 2021, nos quais Al-Ablaq «se dirigiu ao rei num tom familiar e salientou o contraste entre a sua fortuna e a pobreza generalizada em Marrocos. (…). Punir as críticas aos detentores do poder é uma clara violação do direito à liberdade de expressão», salientou aquela ONG num comunicado de imprensa, apelando a que o activista condenado fosse ilibado das acusações.
Em 29 de Abril a advogada Saida Al-Alami, activista da organização Mulheres Marroquinas Contra a Detenção Política, foi condenada por um tribunal de Casablanca a dois anos de prisão e uma multa de 5.000 dirhams (470€) pelos seus comentários nas redes sociais denunciando a corrupção e a repressão contra jornalistas e activistas. Segundo a Amnistia Internacional (AI), «As autoridades marroquinas intensificaram o seu assédio aos defensores e activistas dos direitos humanos nos últimos dois meses, tendo pelo menos quatro deles enfrentado investigações criminais e processos judiciais por mensagens nas redes sociais críticas para as autoridades. (...) as forças policiais também prenderam, a 26 de Março, o bloguista Mohamed Bouzlouf que tinha manifestado solidariedade para com El-Alami no Facebook. Um tribunal de Ouarzazate condenou-o a dois meses de prisão no dia 4 de Abril. Dois outros activistas, Abderrazak Boughanbour e Brahim Nafai, estão a ser investigados e foram convocados para interrogatório por mensagens naquela rede, nas quais apelaram a protestos e a um boicote de combustível, respectivamente.» Abderrazak Boughanbour é ex-presidente da Liga Marroquina para a Defesa dos Direitos Humanos (LMDDH) e Brahim Nafai é professor de filosofia e secretário nacional da juventude do partido político Annahj Addimocraty (A Via Democrática).
Com os presos políticos saharauis as autoridades marroquinas não têm preocupações “jurídicas”.
A 15 de Março de 2022 foi tornado público que Mohammed Lamin Haddi, jornalista saharaui encarcerado, tinha sido sujeito a tortura. O incidente foi relatado pela ACAT France e pela AI informando que em resposta à sua intenção de fazer uma greve de fome por tempo indefinido, o preso foi severamente espancado enquanto estava algemado. Após quase cinco anos de isolamento e violência arbitrária, o jornalista preso disse ao irmão que a sua única arma de resistência continua a ser a greve de fome. De notar que Mohammed Lamin já recorreu a este meio por várias vezes nos últimos anos, sem ter obtido qualquer melhoria.
É também o caso dos 19 prisioneiros de Gdeim Izik que foram arbitrariamente detidos em 2010 e condenados a longas penas de prisão na sequência de dois julgamentos marcados por alegações de tortura e muitas outras irregularidades. Estão actualmente detidos em condições degradantes em seis prisões diferentes em solo marroquino e privados de assistência médica e jurídica, bem como de visitas de familiares. Segundo a Liga para a Protecção dos Presos Saharauis, durante o período entre 6 e 11 de Maio de 2022 várias famílias deslocaram-se a Rabat mas foram impedidas de visitar os seus familiares, após uma ausência de três anos, alegadamente em consequência das medidas preventivas que acompanharam a pandemia de COVID-19.
Entre 7 e 10 de Maio uma delegação internacional de peritos em direitos humanos, juristas e advogados reuniu-se com famílias de presos do Grupo de Gdeim Izik em Rabat. A delegação manteve reuniões com as embaixadas, transmitindo o pedido das famílias de libertação imediata dos presos, ou a sua transferência para uma prisão mais próxima das suas famílias, e exigindo a visita de uma delegação internacional. Um dos casos transmitidos à delegação foi a de dois destes presos, Hassan Eddah e Hussein Ezzaoui, que em 1 de Abril iniciaram uma greve de fome para protestar contra as condições deploráveis em que vivem. A greve durou 30 dias. A saúde de ambos os homens estava a deteriorar-se rapidamente devido ao já grave estado de saúde após quase 12 anos de negligência médica e condições de vida desumanas, bem como aos efeitos da tortura e às consequências de greves de fome anteriores. A tia de Hassan Eddah, Fatimato Dahwara, queixou-se nas reuniões com os peritos que a distância excessiva tem impedido visitas de familiares durante mais de dois anos e aos prisioneiros são permitidos apenas alguns minutos ao telefone todas as semanas. Fatimato explicou que a sua família tem de viajar mais de 1.300 km para visitar os familiares presos.
Outro caso de violência é o de Sultana Khaya e da sua família, que continuam a ser alvo da perseguição das autoridades. Numa entrevista divulgada em Maio passado, Sultana lembra que aquele era «o 487º dia que me impedem de abandonar a casa que partilho com a minha mãe e a minha irmã. O governo marroquino disse a organizações de direitos humanos que eu não estou em prisão domiciliária. Mas se eu tentar sair, sou espancada.(…). Quando as pessoas nos queriam visitar, eram impedidas de entrar na nossa casa. Isto só mudou a 16 de Março de 2022, quando um grupo de activistas americanos dos direitos humanos o conseguiu.»
Questionada sobre o que lhe dava força e esperança para continuar, disse: «A geração seguinte não deveria ter de viver como eu, enfrentando a tortura, o racismo, o tratamento injusto. Tem de parar. É por isso que estou a lutar - todos os dias. E as mulheres saharauis são muito pacientes e tenazes. Está no nosso sangue. Até a minha mãe de 86 anos ainda está a lutar. Defendemos o que está certo. Oprimir-nos é errado. Tenho a certeza de que um dia o Sahara Ocidental será livre. Hoje, amanhã ou daqui a 100 anos, a justiça prevalecerá. Não sei se estarei cá para viver essa experiência, mas um dia isso irá acontecer e esse pensamento enche-me de alegria.»
Referindo-se ao que tem vivido, Sultana Khaya partilhou: «Não sou a primeira mulher saharaui a ser violada pelos ocupantes. Sou simplesmente a primeira mulher a falar publicamente sobre o assunto. Tenho de expor a realidade da ocupação. E tenho de preparar o caminho para a próxima geração de mulheres saharauis».
Em 16 de Março um grupo de activistas norte-americanos, entre os quais Tim Pluta e Ruth McDonough, conseguiram entrar na casa de Sultana com o objectivo de romper o assédio imposto à família. Ruth esteve em greve da fome entre os dias 4 e 13 de Maio, apelando depois a que outras pessoas o fizessem também. «"Há muitas formas de expressar solidariedade com a família de Sultana Khaya e o povo saharaui em geral. Sou solidária com eles (...) e encontraremos formas de expressar as nossas posições", disse McDonough à APS, observando que a sua greve de fome "é apenas um dos muitos métodos utilizados para levar a mensagem da família Khaya ao mundo".»
Na noite de 15 para 16 de Maio as autoridades lançaram um camião contra a casa da família Khaya. «À meia-noite um camião embateu repetidamente na casa das Irmãs Khaya. Esmagou a casa e as portas da garagem 3 vezes. A população local impediu o camião de esmagar a porta da frente e travou o ataque. Testemunhas partilharam que o camião tentou primeiro atingir o lado leste da casa, mas a rua era demasiado estreita, pelo que foi para o outro lado. O camião parecia estar vazio. (…). Não se realizou qualquer investigação. Ninguém interrogou qualquer testemunha. O condutor do camião é desconhecido. A "polícia" escoltou o camião para longe.»
Três norte-americanas - Laksana Peters, Wynd Kaufmyn e Adrienne Kinne - que tentaram juntar-se ao colectivo em casa de Sultana foram impedidas de desembarcar em El Aaiún e recambiadas para Casablanca, tendo regressado no dia 27 de Maio a Washington.
Precisamente nessa data a AI tornava público um apelo a uma investigação urgente sobre os violentos ataques da polícia e das forças de segurança marroquinas contra cinco mulheres saharauis nos dias 15 e 16 de Abril na cidade de Bojador no Sahara Ocidental.
«Zeinab Babi, Embarka Al Hafidhi, Fatima al Hafidhi, Oum Al Moumin Al Kharashi y Nasrathum (Hajatna) Babi foram visadas após a sua participação em protestos pacíficos pela autodeterminação saharaui, e após terem manifestado o apoio público a Sultana Khaya, uma destacada activista saharaui. Agentes da polícia marroquinos e agentes de segurança à paisana espancaram as mulheres com paus e deram-lhes socos e pontapés. Uma mulher perdeu a consciência e precisou de uma cirurgia reconstrutiva na mão. Duas das mulheres relataram que tinham sido agredidas sexualmente.
«"Cinco semanas após estes terríveis ataques, as autoridades marroquinas ainda não mexeram um dedo para os investigar. Estas mulheres exerceram pacificamente o seu direito à liberdade de expressão e reunião e, no entanto, foram brutalmente agredidas, deixando-as com cortes, contusões e, em pelo menos um caso, ossos partidos", disse Amna Guellai, Directora Adjunta da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África.
«"Até agora, os perpetradores têm gozado de total impunidade. Em vez de procurarem justiça para estas mulheres, as autoridades marroquinas colocaram agentes de segurança à porta das suas casas, deixando-as com medo de sair para o exterior. Instamos as autoridades marroquinas a porem termo ao assédio e violência contra activistas saharauis e a lançarem investigações imediatas e imparciais sobre todas as alegações de tortura e outros maus-tratos por parte da polícia e agentes de segurança marroquinos". (…).
«As autoridades marroquinas continuam a restringir o acesso a Marrocos e ao Sahara Ocidental a jornalistas, activistas pacíficos e defensores dos direitos humanos, e a impedir o controlo imparcial e independente dos direitos humanos e a elaboração de relatórios por parte da ONU.»


 


 


 


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