quinta-feira, 5 de maio de 2022

Boletim nº 108 - Maio 2022

ONU: FALTA VONTADE POLÍTICA PARA DESCOLONIZAR O SAHARA OCIDENTAL

O Conselho de Segurança da ONU reuniu, à porta fechada, sob a presidência do Reino Unido para fazer um ponto de situação do processo de descolonização do Sahara Ocidental que se arrasta há meio século. E, contudo, os caminhos para a sua resolução estão claramente definidos. Falta só a vontade política.

Defender o direito à autodeterminação

A reunião realizou-se nos termos do parágrafo 10 da resolução 2602 (2021) adoptada pelo Conselho de Segurança a 29 de Outubro de 2021, em que se solicitava ao Secretário-geral que, no prazo de seis meses a contar da data de renovação do mandato da Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (MINURSO), realizasse sessões de informação regulares sobre a aplicação da resolução e sobre os desafios enfrentados pelas operações da missão da ONU e as medidas tomadas para os resolver. Foi a primeira reunião em que participaram o novo chefe da MINURSO, o russo Alexander Ivanko, nomeado em Agosto de 2021, e o novo Enviado Pessoal do Secretário-geral da ONU, o diplomata italo-sueco Staffan de Mistura, que assumiu funções em 1 de Novembro passado.
Uma semana antes desta reunião, em 13 de Abril, o Conselho tinha realizado uma reunião pública subordinada ao tema “Mulheres, paz e segurança” onde se desenrolou uma acessa discussão entre os representantes da Argélia e de Marrocos e na qual interveio também a delegação da África do Sul.
«(...), a delegação argelina apresentou os factos revelados por uma ampla coligação de ONG denunciando as violações maciças e repetidas pelas forças de ocupação marroquinas no Sahara Ocidental ocupado. Indicando que utilizam a violência sexual como meio para intimidar os defensores dos direitos humanos saharauis, tais como Sultana Jaya e Aminatou Haidar, para citar alguns exemplos. Salientou que estas violações foram também denunciadas e registadas pela Relatora Especial da ONU para a situação dos Defensores dos Direitos Humanos, Mary Lawlor, alertando para que estas violações sistemáticas exigem uma maior atenção da comunidade internacional e das agências especializadas, referindo-se especificamente ao gabinete da Representante Especial do Secretário-geral para a Violência Sexual em Conflitos, Pramila Patten, como parte do seu mandato. (…).
«No contexto do direito de resposta, a delegação marroquina não hesitou, como habitualmente, em sublinhar a alegada marroquinidade do Sahara Ocidental e em atacar as instituições estatais argelinas, a situação interna do país e a situação dos direitos humanos na Argélia. Além disso, o representante marroquino levantou as questões do alegado recrutamento de crianças saharauis nos campos de refugiados de Tindouf, dos demonizados defensores dos direitos humanos saharauis e dos dirigentes da Frente POLISARIO. (…).
«A este respeito, a delegação argelina salientou, a título de lembrança, as declarações feitas pelo porta-voz do Secretário-geral da ONU em 17 de Janeiro passado, refutando categoricamente as falsas alegações divulgadas pelos meios de comunicação social marroquinos sobre a alegada presença de crianças-soldados durante a visita do Enviado Pessoal aos campos de refugiados saharauis em Tindouf, (...).
«A delegação argelina explicou ao representante marroquino, em particular, que em vez de se entregar à propaganda e à falsificação de factos, teria sido melhor prestar mais atenção às condições das crianças marroquinas, esgotadas pela fome e pela pobreza, com elevadas taxas de abandono escolar e a disseminação indevida de drogas no ambiente escolar. (…).
«Por outro lado, o representante sul-africano denunciou a violência sexual sistemática praticada por Marrocos no Sahara Ocidental, o que provocou a reacção do representante marroquino que, na ausência de argumentos para responder a factos comprovados, se limitou a catalogar as declarações do diplomata sul-africano como "inapropriadas e politicamente motivadas".»
Na reunião de 20 de Abril Staffan de Mistura transmitiu ao Conselho de Segurança o resultado dos seus recentes contactos com as partes, directa e indirectamente envolvidas no conflito do Sahara Ocidental. De Mistura percorreu a região entre 12 e 19 de Janeiro de 2022, começando em Marrocos e visitando os campos de refugiados saharauis antes de ir à Mauritânia e à Argélia, conforme estipulado no plano de resolução da ONU.
No final da reunião Staffan de Mistura declarou que está a preparar um novo périplo pela região do Sahara para relançar o processo político que tem estado paralisado, sem contudo indicar nenhuma data para o mesmo, anotando apenas que será «em breve». Também não esclareceu se desta vez visitará o território ocupado do Sahara Ocidental. Considerou como «uma boa notícia» que todos os membros do Conselho tivessem apoiado os seus esforços e os do chefe da MINURSO para o relançamento do processo político.
A Frente POLISARIO publicou no dia 22 de Abril um comunicado a propósito desta reunião do Conselho de Segurança:
«(…). O forte apoio, expresso durante as consultas, à necessidade de alcançar uma solução pacífica, justa e duradoura que permita a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental com base nas resoluções relevantes da ONU, é uma resposta clara àqueles que procuram manter o status quo e promover soluções duvidosas baseadas no expansionismo e na violação das normas básicas do direito internacional.
«As preocupações expressas por alguns Estados membros relativamente à deterioração da situação dos direitos humanos no Sahara Ocidental ocupado atestam ainda mais a necessidade urgente de estabelecer um mecanismo independente e permanente da ONU para a protecção dos direitos humanos no Território.
«A Frente POLISARIO reafirma que nunca aceitará o facto consumado que o Estado ocupante de Marrocos pretende impor pela força aos Territórios Ocupados da República Saharaui (RASD), e que continuará a utilizar todos os meios legítimos para defender os direitos sagrados do povo saharaui e as suas aspirações nacionais de liberdade e independência.
«A Frente POLISARIO reafirma, uma vez mais, que a única via para se alcançar uma solução pacífica, justa e duradoura para a descolonização do Sahara Ocidental é permitir ao povo saharaui exercer livre e democraticamente o seu direito inalienável e não negociável à autodeterminação e à independência, em conformidade com os preceitos do direito internacional e as resoluções pertinentes das Nações Unidas e da União Africana.»

ESPANHA – MARROCOS: UM ACORDO INCONCLUDENTE

A reaproximação entre Madrid e o regime marroquino está no seu início, continua a ter muitas incógnitas, e já há evidências de que o caminho não será fácil. Uma coisa é certa: um país europeu desprezou o Direito Internacional e negou as suas responsabilidades no meio de uma grave crise mundial. As consequências não serão benéficas, nem benignas.

O braço de ferro continua

Relembrando os factos

Donald Trump reconheceu, a 10 de Dezembro de 2020, a soberania de Marrocos sobre o Sahara Ocidental a troco da formalização das relações diplomáticas entre o reino alauíta e Israel. Foi o primeiro país a fazê-lo. Em Maio de 2021 Rabat cortou oficialmente, sem aviso prévio, os laços de cooperação com a Alemanha. No seguimento da hospitalização em Espanha do Secretário-geral da Frente POLISARIO para tratamento de uma situação grave de COVID, chamou a sua embaixadora em Madrid e empurrou milhares de migrantes indocumentados, muitos deles menores, através da fronteira de Ceuta. Confrontado com uma forte reacção europeia, o governo marroquino retrocedeu. Mas as relações entre os dois países vizinhos mantiveram-se congeladas. Em ambos os casos (Alemanha e Espanha) altos responsáveis governamentais marroquinos afirmaram publicamente que o problema era a posição relativamente ao Sahara Ocidental – esperavam (queriam, exigiam), que os passos de Trump fossem seguidos.
O presidente do governo de Espanha demitiu a sua ministra dos Negócios Estrangeiros e substituiu-a em Julho de 2021 por um embaixador de carreira cuja principal missão, assumida, era a de restabelecer a boa vizinhança com Marrocos. O desfecho veio a conhecer-se no passado dia 18 de Março de 2022: através da casa real marroquina, foi divulgada parte de uma carta dirigida por Pedro Sanchez a Mohamed VI, na qual duas frases confirmavam implicitamente o reconhecimento da ocupação do Sahara Ocidental. A embaixadora marroquina voltou a Madrid de imediato. O governo nunca quis divulgar a carta na íntegra, acabou por ser o diário El País a fazê-lo, a partir de uma fuga de informação. A 7 de Abril, Sanchez foi a Rabat selar “uma nova época” nas relações entre os dois países.

Reacções políticas internas

A notícia caiu que nem uma bomba e gerou um dilúvio de posições contra, seja nos círculos partidários, no Senado e no Congresso, seja na comunicação social e na sociedade civil. Choveram artigos, muitos de opinião, a tentarem compreender o que se tinha passado e a condenarem o processo da tomada de decisão, o seu conteúdo e as consequências previsíveis. Houve manifestações na rua em muitas cidades do país, a maior em Madrid. Sanchez, e o seu PSOE (que nem todos os seus membros) ficaram completamente isolados. Mas nada o deteve.
O processo foi inusitado e cria um precedente perigoso: as negociações entre Madrid e Rabat decorreram em segredo. A dita carta é a única peça conhecida e nas circunstâncias anómalas acima mencionadas. O parceiro da coligação governamental, Unidas Podemos, não foi informado, nem a questão aflorada no próprio PSOE. O seu conteúdo contradiz claramente o programa de governo consensualizado pelos dois partidos. O assunto não foi discutido no Conselho de Ministros, nem no Congresso, nem no Senado. A nova posição de Espanha foi uma responsabilidade pessoal assumida pelo presidente do Governo, Pedro Sanchez, e pelo seu ministro, José Manuel Albares. E assim continuou, porque todos os partidos políticos a condenaram publicamente nas duas Câmaras, tendo aprovado uma moção (a 7 de Abril no Congresso, a 27 no Senado) a dizer isso mesmo e a exigir a aplicação das resoluções da ONU. Explicação oficial: a política externa é uma responsabilidade exclusiva do PSOE.

O que vale, num país democrático, uma decisão assim tomada?

O conteúdo é inequívoco. Ao assinar uma carta afirmando que o regime de autonomia para o Sahara Ocidental apresentado por Marrocos em 2007 é a proposta «mais séria, realista e credível» para a resolução do conflito, e que o acordo visa «garantir a estabilidade, soberania, integridade territorial e prosperidade dos nossos dois países», Sanchez não precisa de acrescentar mais nada. Assim se toma partido pela posição marroquina de vir a conceder uma autonomia (nunca detalhada) ao Sahara Ocidental no quadro do reino, pondo de lado a solução preconizada pelo Direito Internacional e pela ONU neste caso – um referendo de autodeterminação. Assim se reconhece a actual ocupação marroquina ao mencionar a «integridade territorial» do país, sabendo-se que para Marrocos ela inclui obrigatoriamente o território saharaui.
Aliás, se não fosse clara a mudança de posição da Espanha, o que justificaria o imediato regresso a Madrid da embaixadora marroquina que estava há meses em Rabat à espera desta capitulação?
A recusa em aceitar esta reviravolta política e os apelos para que seja revertida baseiam-se em vários argumentos, para além dos processuais, já referidos. Ela é contra o Direito Internacional e todas as resoluções da ONU sobre o Sahara Ocidental. Ela é indigna do papel de potência administrante atribuído a Espanha enquanto ex-potência colonial do “território não-autónomo” do Sahara Ocidental e representa uma segunda traição ao povo saharaui (depois da sua “venda” a Marrocos e à Mauritânia, em 1975). Ela omite que Marrocos ocupou o território pela força e “esquece” todas as violações de direitos humanos cometidas desde há 47 anos contra o povo saharaui, que têm sido confirmadas e denunciadas por várias organizações internacionais. Ela coloca-se do lado do agressor e despreza o agredido. Ela contradiz todas as declarações de política externa baseadas no respeito pelo Direito Internacional e pelos direitos humanos.
O ministro Albares teve de comparecer no Senado e no Congresso, Sanchez foi também obrigado a explicar-se perante os e as deputados/as e há pressões para que aí regresse. A sua defesa é simples: Marrocos é um vizinho fundamental, trata-se de garantir a sua cooperação e o seu respeito pela integridade do país (relativamente a Ceuta e Melilla). Há fluxos financeiros, comerciais, migratórios, que precisam de ser acautelados. São ganhos para Espanha. Quanto ao Sahara Ocidental, nada de especial, nada de novo: Madrid continua a apoiar o processo de negociações conduzido pela ONU…

O que não se sabe

Nas muitas reacções e comentários escritos desde o 18 de Março sobressaem interrogações importantes.
Por que razão foi a parte marroquina a tornar pública a carta de Sanchez e o que levou o PSOE a recusar dar conhecimento da missiva na íntegra? Rabat avançou sem conhecimento de Madrid, criando um embaraço inesperado ao chefe do governo espanhol, ou foi uma manobra planeada para distrair as forças políticas e o público do essencial?
O que foi, de facto, acordado entre Espanha e Marrocos? Só se conhece uma carta de compromissos espanhóis, não seria mais natural a elaboração de um documento conjunto? Nada transpareceu do lado marroquino, houve alguma contrapartida? Madrid deu outras garantias para além do que foi habilmente escrito?
Esta foi uma iniciativa nacional ou faz parte de um projecto mais largo, incluindo nomeadamente os EUA, talvez a França (até agora o principal apoio de Marrocos) e a Alemanha (com a qual Rabat está em fase de reconciliação), no sentido de dar peso às teses e pretensões marroquinas, enfraquecendo o lado saharaui, no quadro negocial?
Como entende o PSOE, senhor absoluto da política externa, posicionar-se face à região do norte de África, nomeadamente à Argélia, da qual a Espanha tem uma forte dependência energética (os números variam entre 30% e 43%)? Quais os cálculos que fez? Como pensa responder à forte instabilidade que gerou?

Consequências para a política externa

No mesmo dia (19 de Março) em que a embaixadora marroquina regressava a Madrid, deixava a capital de Espanha o embaixador argelino, chamado pelo seu governo com efeito imediato. Segundo Argel, ele voltará ao seu posto quando houver «esclarecimentos francos» por parte de Madrid que permitam «reconstruir uma confiança gravemente ferida». A grande preocupação com a abertura de um novo conflito quando se tentava fechar um outro na mesma região, era a continuidade do fornecimento de gás. As autoridades argelinas foram duras para com o governo Sanchez, o Presidente Tebboune afirmou que «o que a Espanha fez é inaceitável, ética e historicamente». Mas também garantiu: «Para tranquilizar os nossos amigos espanhóis, o povo espanhol: a Argélia nunca abandonará os seus compromissos de fornecimento de gás a Espanha, quaisquer que sejam as circunstâncias». No entanto, a empresa estatal de gás argelina avançou a possibilidade de aumentar o preço do combustível vendido a Espanha, ao mesmo tempo que passava a dar prioridade ao relacionamento com a Itália, garantindo-lhe um aumento do fornecimento e a estabilidade dos preços. Mais recentemente, ameaçou o governo espanhol de cortar imediatamente o fornecimento de gás se este fosse reencaminhado para Marrocos, que está com problemas por causa do fecho do gasoduto argelino que passava pelo seu território.
A FPOLISARIO reagiu rapidamente, primeiro através do seu Representante em Madrid, depois publicando um comunicado oficial, a 10 de Abril, no qual anuncia que «decide suspender os seus contactos com o actual governo espanhol (…) até que este apoie as resoluções do direito internacional que reconhecem o direito do povo saharaui à autodeterminação (...)». Ao mesmo tempo, faz questão de valorizar o «seu mais sincero agradecimento, tanto às forças democráticas do Congresso dos Deputados de Espanha, como ao amplo e transversal movimento de solidariedade com a nossa legítima causa (…)».
A nível internacional registaram-se reacções vagas, a reafirmação de que a solução do conflito está entregue à ONU e de que o novo Enviado Pessoal do Secretário-geral para o Sahara Ocidental merece todo o apoio para desempenhar com êxito a sua missão. Com uma excepção: a recém-nomeada embaixadora dos EUA em Madrid, Julissa Reynoso, afirmou: «Cremos que o plano de Marrocos é razoável» - mas não disse que era o melhor, ficando assim, diplomaticamente, um passo atrás de Sanchez.
É, no entanto, com o regime de Rabat que os problemas continuam a surgir e a avolumar-se. Três exemplos concretos: a questão da abertura das fronteiras entre Marrocos e Ceuta e Melilla, o caso das já chamadas “jazidas de petróleo fantasmas” e a política de repatriamento dos cerca de 23.000 migrantes marroquinos ilegais.
A abertura faseada das fronteiras, fechadas desde Março de 2020, foi anunciada por Madrid como um ponto crucial decorrente da “nova fase” de entendimento com o seu vizinho. Mas não aconteceu até agora porque Marrocos não aceita que se restabeleça a alfândega comercial de Melilla por ele fechada unilateralmente em 2018, recusa a criação de uma instituição semelhante em Ceuta, e não concorda com a proposta de incluir os trabalhadores transfronteiriços na primeira fase de “regresso à normalidade”. O braço de ferro continua e não se sabe quando e como terminará.
Na semana de 18 de Abril Rabat anunciou que havia descoberto novos poços de petróleo de profundidade ao largo das ilhas Canárias. O tema não é novo, mas volta a colocar em cima da mesa a sensível questão da soberania sobre as águas territoriais dos dois países, que Marrocos decretou alargada a seu favor, contando com o domínio da costa saharaui. Os eleitos políticos das Ilhas Canárias são claros na recusa da abertura de explorações de petróleo que representam riscos acrescidos para o arquipélago e a Associação de Geólogos e Geofísicos Espanhóis do Petróleo, entre outras entidades, duvidam da existência das jazidas anunciadas e destacam que elas não seriam economicamente rentáveis. Mais um obstáculo na negociação que Espanha queria abrir, nesta nova fase, sobre a delimitação das águas territoriais.
A questão do repatriamento dos migrantes marroquinos ilegais chegados a Espanha é um contencioso antigo entre os dois países e o seu desenlace constituía uma das expectativas proporcionadas pelo acordo alcançado. Agora Marrocos impôs o seu plano, baseado na oportunidade de reafirmar o seu domínio sobre o que chama as “províncias do sul”: a aceitação de até 20 pessoas por voo da Royal Air Maroc, ao ritmo de 4 voos por semana, a partir das Canárias e com destino a… El Aiun, a capital ocupada do Sahara Ocidental. Os migrantes, provenientes de diferentes lugares em Espanha, têm de concentrar-se em Madrid e irem depois até Las Palmas para serem “despejados” num único sítio, que do ponto de vista internacional não é considerado dentro das fronteiras marroquinas. O que lhes acontece depois não é importante. O que deve preocupar as autoridades espanholas é que neste quadro a operação demorará pelo menos três anos, e, entretanto, devem entrar no país outros tantos migrantes de forma ilegal.

AS IMPLICAÇÕES EM ÁFRICA DA GUERRA NA EUROPA

O sítio do CADTM (Comité para a Abolição das Dívidas Ilegítimas) publicou um artigo de Paul Martial, editor de Afriques en Lutte, intitulado “Guerra na Ucrânia: um desastre também para a África”, sobre as implicações da guerra na Europa para o continente africano e como ela expôs a perda de influência da França colonial em África. É esse artigo que aqui divulgamos.

Fartos do Ocidente?(foto CADTM)
«A invasão da Ucrânia pelo exército de Putin terá consequências para África. O risco mais óbvio é o de uma crise económica e alimentar que pode atingir duramente o continente. Esta invasão também realça as rupturas políticas, particularmente no quintal africano da França, que ilustram o seu enfraquecimento em África.
Como salienta o sítio do jornal Madagascar Tribune, tem havido um desfile interminável de diplomatas russos e ocidentais no palácio presidencial em Anosy. O objectivo? Tentar influenciar Madagáscar durante a votação na Assembleia Geral das Nações Unidas a 2 de Março sobre a condenação da invasão da Ucrânia. No final, a Grande Ilha juntou-se aos 17 países africanos que se abstiveram. Enquanto se esperava que o Mali e a República Centro-Africana se recusassem a condenar a Rússia, que é agora o seu principal parceiro militar, mais surpreendente foi a votação no mesmo sentido por parte do Senegal, Togo, Camarões e República do Congo, ou a não participação do Burkina Faso ou da Guiné [Conacri]. Tradicionalmente, estes países estavam em simbiose com a França, a antiga potência colonial. Quanto à Organização Internacional da Francofonia (OIF), que é considerada o “braço armado” da diplomacia francesa, recusou-se a tomar uma posição. Isto ilustra a crise específica do imperialismo tricolor em África.

Um estar farto do Ocidente

O facto de metade dos países do continente se recusarem a condenar a Rússia revela um certo ressentimento em relação ao Ocidente. Alguns falam mesmo de vingança contra a OTAN, que tinha atacado a Líbia para derrubar o regime de Kadhafi, que gozava de uma popularidade usurpada mas muito real. Uma certa irritação por ver uma grande mobilização pela Ucrânia, o que nunca foi o caso aquando de guerras tão mortíferas como as do Sudão, Etiópia ou Camarões. Para alguns, é uma espécie de satisfação ver um homem capaz de se opor ao poder da União Europeia e dos EUA. Além disso, o tratamento escandaloso dos refugiados africanos e asiáticos da Ucrânia e o acolhimento diferenciado de ucranianos e outros refugiados expuseram o racismo na Europa. Assim, alguns dos dirigentes africanos mantiveram-se fiéis aos sentimentos dos seus povos, especialmente porque muitos países têm agora, ou preparam-se para ter, relações comerciais e militares tanto com a Rússia como com o Ocidente.

Um grande risco económico

Uma prudência a saudar já que a crise económica é susceptível de atingir duramente o continente. As economias africanas já estão a lutar para sair da crise sanitária da COVID-19. A queda na procura global, que levou a um declínio da procura de matérias-primas, a paragem virtual do turismo, o enfraquecimento das cadeias de valor globais, e a redução de quase 40% no IDE [investimento directo estrangeiro] enfraqueceram a saúde económica dos países africanos.
A guerra provocada por Putin terá consequências para todos os países africanos, mesmo que sejam diferenciadas. Países produtores de petróleo e gás como a Nigéria, Angola e Argélia beneficiarão do aumento de preços, mas em breve poderão ser apanhados pela escassez de produtos agrícolas, uma vez que são grandes importadores de alimentos. Os países africanos virados para a agricultura serão afectados por aumentos extremamente elevados dos preços da energia. Em qualquer dos casos, dada a fraqueza das tesourarias do continente, os choques são susceptíveis de ser violentos para as populações.
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) assinalou que mais de uma trintena de países africanos estão já a sofrer de escassez alimentar. As causas são múltiplas. Pode haver conflitos, como na República Centro-Africana, Níger, Chade, República Democrática do Congo (RDC), Etiópia e Sul do Sudão. As alterações climáticas provocam secas, como no Quénia, Somália e sul de Madagáscar, ou chuvas torrenciais, como no Burundi, Djibuti e Congo, ou ciclones, como em Moçambique e no leste de Madagáscar.
O Programa Alimentar Mundial (PAM) lançou o alarme sobre a situação de carência alimentar em Abril para muitos países. O risco hoje em dia com a guerra iniciada por Putin é uma fome em grande escala em África.»
 



 


 


 


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