domingo, 6 de março de 2022

Boletim nº 106 - Março 2022

 

CIMEIRAS EM FEVEREIRO: AFIRMAÇÃO DA DIPLOMACIA SAHARAUI

Enquanto decorre a guerra no Sahara Ocidental, há também esforços diplomáticos em curso no âmbito da ONU. No quadro internacional dos protagonistas, em Fevereiro a diplomacia saharaui afirmou-se em dois fora fundamentais: as Cimeiras da União Africana e da União Africana-União Europeia.

35ª Cimeira dos Chefes de Estado e de Governo da União Africana

A Cimeira reuniu-se em Adis Abeba, Etiópia, onde se situa a sede da União Africana (UA), nos dias 5 e 6 de Fevereiro, altura em que a organização continental assinala os seus 20 anos (antes, entre 1964 e 2002, a sua antecessora era a Organização de Unidade Africana). A RASD (República Árabe Saharaui Democrática) participou enquanto membro de pleno direito da UA, com o seu Presidente, Brahim Ghali, como chefe da delegação.
A agenda dos trabalhos incluía situações de conflito em África, a pandemia e a recuperação económica do continente, assim como o ponto de situação de diversos programas sectoriais em curso.
Fora da agenda ficou uma questão que acabou por marcar a Cimeira: a discussão do estatuto de observador reconhecido a Israel em Julho passado. Esta decisão foi tomada pelo Presidente da Comissão da União Africana Moussa Faki (ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros do Chade), sem consulta aos Estados-membro, pelo que foi logo posta em causa por um conjunto significativo de países — pelo menos 21 – que exigiram um debate sobre a matéria na Cimeira seguinte. A discussão foi liderada pela Argélia e pela África do Sul, que sublinharam a contradição de admitir na UA, ainda que com o estatuto de observador, o Estado ocupante da Palestina, que assim viola os próprios princípios da organização à qual quer associar-se. O resultado foi claro, a admissão de Israel foi suspensa por unanimidade, e foi criado um grupo de trabalho composto por sete membros para examinar o caso: os presidentes do Senegal, Macky Sall, da África do Sul, Cyril Ramaphosa, da Argélia, Abdelmajid Tebboune, da Nigéria, Mohamed Buhari, dos Camarões, Paul Biya, do Ruanda, Paul Kagame, e do Congo, Philippe Chikesidi. O primeiro, eleito nesta Cimeira Presidente em exercício da UA, deverá tomar a iniciativa de modo a poder apresentar uma proposta de solução à Cimeira de 2023.
Esta discussão e o seu desenvolvimento são importantes para o Sahara Ocidental, também porque Marrocos foi um dos Estados-membro que apoiaram abertamente a candidatura israelita, dadas as renovadas relações entre os dois países, ao abrigo dos “Acordos de Abraão” e que levaram ao reconhecimento, por parte de Trump, em fim de mandato, da soberania marroquina sobre o Sahara Ocidental (em Dezembro de 2020). Aliás, Ahmed Zain refere, em artigo para o ECSaharaui, um seminário promovido por Marrocos e Israel, na capital do Gana, Acra, em Agosto de 2021, que teria como objectivo político o aliciamento de países que se mobilizassem para conseguir expulsar a RASD da UA.
Recorda-se que a RASD foi acolhida como membro da OUA em 1984 e que Marrocos, como protesto, saiu da organização. Por isso, a RASD foi membro fundador, de pleno direito, da UA, em 2002. Marrocos, só muitos anos depois reviu a sua estratégia, tendo pedido a sua admissão na União Africana em 2017, na tentativa de criar uma situação que levasse ao afastamento do Estado saharaui.
Faz agora um ano, em Março de 2021, o Conselho de Paz e Segurança da União Africana realizou uma reunião só dedicada ao Sahara Ocidental, presidida pelo Quénia, na qual aprovou um conjunto de medidas visando «a urgente necessidade de redobrar os esforços para facilitar a resolução definitiva do conflito, de acordo com as disposições pertinentes do Acto Constitutivo da UA, nomeadamente o Artigo 4 (e) sobre a resolução pacífica dos conflitos entre Estados-membro e o Artigo 4 (f) sobre a proibição do recurso à força ou à ameaça do recurso à força entre Estados-membro da União [Africana].» Renovada agora a composição de parte dos seus 15 membros, Marrocos conseguiu ser eleito para o novo mandato. No entanto, a composição final do Conselho é favorável aos direitos do povo saharaui.
Foi anunciado que o Quénia, que preside ao Conselho durante o mês de Fevereiro, organizaria um encontro a nível de Chefes de Estado e de Governo durante o qual seria feito um ponto de situação das deliberações acordadas o ano passado sobre o conflito no Sahara Ocidental. O balanço de algumas das propostas aprovadas em 2021 é relativamente fácil de fazer: o apelo ao Secretário-geral da ONU para que nomeasse, finalmente, um novo Enviado Pessoal para o Sahara Ocidental, foi atendido em Outubro último (António Guterres nomeou o diplomata italo-sueco Steffan De Mistura); sobre o encorajamento para que o Enviado Especial da UA para o Sahara Ocidental, o ex-presidente de Moçambique Joaquim Chissano, retomasse urgentemente a sua ligação às duas partes do conflito, não há notícias concretas; um parecer sobre a legalidade da abertura de consulados de vários países no território ocupado foi pedido às Nações Unidas, mas não se sabe ainda o resultado; uma missão da UA ao Sahara Ocidental ocupado continua a ser obstruída por Marrocos (desde 2000).

6ª Cimeira UE-UA

Pela segunda vez consecutiva, o Presidente saharaui Brahim Ghali chefiou uma delegação da RASD a uma Cimeira entre os Chefes de Estado e de Governo da União Europeia e da União Africana. A primeira foi em Novembro de 2017, em Abidjan, na Costa do Marfim, aquando da 5ª Cimeira entre as duas organizações continentais. Nessa altura a França tentou, durante meses, impedir a participação saharaui, até que a UA decidiu, em Outubro, clarificar a situação e ameaçar cancelar unilateralmente a Cimeira se continuasse a haver resistência à presença de um dos seus Estados-membro.
Agora foi em Bruxelas, nos dias 17 e 18 de Fevereiro. Nas vésperas da reunião, Marrocos enviou uma carta às instituições europeias e aos deputados europeus tentando convencê-los de que haveria motivos para não aceitar a participação da RASD. O porta-voz da Comissão Europeia para os Negócios Estrangeiros, Peter Stano, teve de vir a público explicar que as Cimeiras são organizadas em conjunto pela UE e a UA e cada uma das entidades é responsável pelos convites que faz, não podendo haver interferências externas. Nessa declaração, recordou que a UE não reconhece a República Árabe Saharaui Democrática, e que continua a apoiar uma resolução do conflito no quadro das Nações Unidas.
Como resultado Marrocos baixou o nível da sua representação. Estava anunciado que seria o Primeiro Ministro a chefiar a respectiva delegação, acabou por ser o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Nasser Burita, por sinal o único na lista oficial de participantes que não tinha uma fotografia junto do nome e função!
Brahim Ghali encabeçou uma delegação composta por Oubi Bucharaya Bachir, membro do Secretariado Nacional da Frente POLISARIO e responsável pela representação saharaui na Europa e junto da UE, Lammin Baali, Representante Permanente da RASD na União Africana, Jadjtou Mujtar, Representante Adjunta da FPOLISARIO em Madrid, e Bassiri Mulay Hassán, Primeiro Secretário da Representação da FPOLISARIO na Europa e na UE.
Oubi Bucharaya resumiu assim a importância da participação do seu país nesta Cimeira: «É um grande avanço para o povo saharaui e para os seus amigos em todo o mundo, (…) reafirma uma vez mais que o Estado saharaui é uma realidade nacional, continental e internacional.»
Ao intervir na sessão sobre paz e segurança, o Presidente da RASD «apelou à Europa para desempenhar um papel positivo no processo de encontrar uma solução e para se afastar da sua posição como parte do problema, contribuindo para reforçar as condições de paz, segurança e estabilidade na região do Norte de África e Sahel».
Depois de sublinhar a importância desta cimeira e dos seus objectivos para unificar a visão e os propósitos das duas organizações, Ghali afirmou que «para que haja uma paz duradoura no Sahara Ocidental, é necessário evitar a escalada de tensões neste conflito que dura há mais de quarenta e cinco anos, especialmente dada a situação prevalecente desde 13 de Novembro de 2020, o que só será possível através da implementação de uma solução justa, baseada no respeito pela legalidade internacional e pelo princípio da descolonização».
Nos contactos bilaterais, foram assinalados os encontros do Primeiro Ministro espanhol, Pedro Sanchez, com o MNE marroquino, assim como com o Presidente saharaui, mas sobre esta última reunião não foi difundida nenhuma notícia. Numa entrevista ao canal televisivo de Espanha Antena Tres, Brahim Ghali falou do país que continua a ser, do ponto de vista do Direito Internacional, a potência administrante do Sahara Ocidental: «A relação com o governo espanhol... o que posso dizer, não é muito frouxa nem muito quente. Esperamos que seja mais próxima, mais estável e sólida, e que a chantagem marroquina não a influencie. (…). A Espanha tem uma responsabilidade plena e total neste conflito. Tem de o assumir de uma forma ou de outra, hoje, amanhã ou em X tempo. A Espanha tem de se envolver mais, porque é a causa do que estamos a sofrer. O povo saharaui atingirá os seus objectivos, sofrerá, terá de fazer mais sacrifícios, mas está muito apegado aos seus direitos, à autodeterminação e à independência, e está a abrir os seus braços à boa vizinhança, inclusive com Marrocos».
Nesta entrevista à televisão espanhola, o Presidente da RASD comentou ainda a missão de Staffan De Mistura, o Enviado Pessoal do Secretário-geral da ONU para o Sahara Ocidental: «É o primeiro enviado a chegar [no quadro de] uma situação de guerra, e isso condiciona-o. Se tiver o total apoio do Conselho de Segurança da ONU, incluindo o apoio da França, penso que será capaz de seguir em frente. Ele deve analisar as razões que levaram os seus antecessores ao fracasso. Ou se Marrocos continuar a obstruir os esforços da comunidade internacional. É um processo que não é complexo, a solução é fácil e simples. Um dia de liberdade, urnas eleitorais, votos e respeito pelos resultados que saem das urnas eleitorais. Porque fogem desta situação, porque se opõem a uma situação democrática, de que têm medo?»

SAHARA OCIDENTAL: DA GUERRA EM TEMPO DE GUERRA

Os olhos do mundo estão virados para o regresso à guerra na Europa. E com isso “esquecemo-nos” dos conflitos à nossa porta que já se arrastam há quase meio século e que as Nações Unidas já poderiam ter resolvido há muito, se quisessem.

No início de Fevereiro fomos surpreendidos pelas declarações do porta-voz das Nações Unidas, Farhan Haq, que ao ser questionado pelos jornalistas na conferência de imprensa diária afirmou ignorar a existência de guerra no Sahara Ocidental e que a MINURSO não tem recebido informações sobre a violação dos direitos humanos por parte das autoridades de ocupação marroquinas. «No que diz respeito à guerra e aos ataques contra civis saharauis, o ponto básico é que a MINURSO relata tudo o que constitui uma violação dentro da sua área de operações (...). Recebemos detalhes quando isso acontece», declarou. No entanto, o Conselho de Segurança, na sua resolução 2602 (2021) adoptada a 29 de Outubro de 2021, tinha registado «com profunda preocupação a ruptura do cessar-fogo» ocorrida em Novembro de 2020.
Não surpreende que Mah Iahdih Nan, jornalista saharaui, tenha escrito: «A MINURSO, uma missão que tem sido subjugada e manietada pela oligarquia marroquina nos últimos 30 anos, sem margem de manobra para levar a cabo uma missão neutral e responsável em linha com os objectivos para as quais foi criada e, sobretudo, em linha com o papel da organização internacional que representa.»
Mas a “ignorância” não impede a continuação da guerra. Como informa a Frente POLISARIO nos comunicados militares que publica diariamente dando conta das suas acções e reacções por parte do inimigo, e das perdas por parte da população. E como informam as redes sociais, que começam a expor o mal-estar que está a germinar no meio militar marroquino, particularmente entre as forças que garantem a segurança do muro defensivo e que se tornaram o alvo privilegiado do exército saharaui. «Para a oligarquia marroquina», escreve Mah Iahdih Nan, «perder num dia cem soldados e a destruição de um grande arsenal não significa nada; ninguém se lembrará daqueles infelizes soldados que perecem todos os dias no muro da vergonha. Em Marrocos, os indivíduos são apenas números sem valor, utilizados como carne para canhão, para a guerra ou para a pressão migratória ou para qualquer tipo de chantagem que sirva os interesses dos oligarcas feudais. (…).»
Um exemplo deste estado de espírito nas Forças Armadas de Marrocos é dado por Abdelaziz Abdi, escritor marroquino recentemente libertado, que publicou na sua página no Fb:
«A seca, a COVID-19 e o contexto global não são as únicas dificuldades de Marrocos; há também a guerra no Sahara. O custo do conflito tem sido sempre um obstáculo aos esforços de desenvolvimento de Marrocos e o fim do cessar-fogo aumentou o volume das despesas militares.
«A guerra de desgaste travada pela POLISARIO é dispendiosa e os ignorantes que acreditam que eles, a POLISARIO, são loucos que fazem discursos inócuos, perdem credibilidade junto dos seus aliados.
«A minha principal preocupação na prisão era fugir à vigilância dos guardas e tentar contactar os militares detidos trazidos da frente de batalha por deserção ou rebelião, bem como outros casos envolvendo pessoal militar....
«Todos eles... afirmam que há guerra e, além disso, são processados ao abrigo da lei penal militar relativa a operações militares, ou seja, por guerra...''.»
A guerra regressou, portanto, ao conflito do Sahara Ocidental em 13 de Novembro de 2020 sem que tal ruptura tenha provocado qualquer sobressalto ou incómodo na arena internacional, como bem o evidenciou o porta-voz das Nações Unidas. Num momento em que os olhos do mundo estão virados para os trágicos acontecimentos que se desenrolam na Ucrânia, a escritora Carmen Camacho partilhou connosco uma reflexão — com o sugestivo título «Ucrânia 1, Sahara Ocidental 0» – sobre esta diferença de olhares, de que seleccionámos alguns trechos:
«(...) imaginemos novamente que um país ataca ou pretende atacar a territorialidade, a autonomia e os direitos humanos de outro povo. Será que os Estados Unidos ameaçariam com duras sanções, ou reconheceriam unilateralmente a soberania do invasor sobre o território invadido? Mais uma vez, dependerá de que parte do mundo estamos a falar. Quanto tempo levaria a comunidade internacional a reagir para restabelecer a ordem na região e impor a vontade democrática do povo subjugado? Talvez dias... ou talvez quase meio século. Toleraríamos que o Chefe de Estado reforçasse "fortes laços de amizade" com aqueles que condenam ao exílio uma comunidade que sentimos ser nossa irmã, porque é nossa irmã? Toleraríamos que o invasor exigisse uma posição clara a seu favor? Os Estados Unidos engoliriam que Putin vai implementar uma "agenda de reformas" e promover os direitos humanos e as liberdades fundamentais na Ucrânia? Bem, Mohammed VI vendeu-lhes essa promessa sobre o Sahara Ocidental e a administração Biden comprou-a. Os EUA afirmam que o plano de autonomia apresentado por Marrocos para a antiga colónia espanhola é "sério, credível e realista", e que vai certamente ao encontro das aspirações dos saharauis. Seria motivo de riso, se não fosse um motivo de choro.
«Aqueles que querem censurar-me porque os casos ucraniano e saharaui não são os mesmos, podem fazê-lo. As diferenças entre os dois conflitos são a favor dos meus argumentos, incluindo o facto de os saharauis serem um povo em terra de ninguém, sem um Estado universalmente reconhecido. Sempre foi inaceitável que os Estados Unidos se apresentem nos conflitos em nome da liberdade quando a sua agenda oculta é bastante diferente. É intolerável que a Espanha e, em seu nome, o presidente espanhol em exercício, esteja a dois telejornais a colocar navios e caças a apontar para Moscovo, enquanto no caso do Sahara Ocidental tenhamos partido o pescoço por olhar para o outro lado. Não proponho, obviamente, desembarcar tanques em El Aaiún, nem mostrar os dentes aos nossos vizinhos, mas impulsionar, nem que seja por vergonha patriótica, a pressão diplomática da comunidade internacional para que o povo saharaui possa resolver a sua situação de uma vez por todas, regressar à sua terra por direito próprio e escolher o seu destino, que nunca chega. Face à questão saharaui, não podemos continuar a ensombrar os nossos rostos com a vergonha de pensar que não fomos fiéis àqueles que eram nossos compatriotas, que falam a nossa língua porque é também a deles, e que partilham a nossa história, memória e raízes. Rabat avisa-nos que não há lugar para "posições vagas ou ambivalentes" sobre o Sahara Ocidental. Têm razão: nem a Espanha nem a comunidade internacional dizem com suficiente clareza que a solução aceitável não é de forma alguma impor a soberania marroquina.
«Os conflitos que se tornam crónicos envenenam-se até à perversão e apenas realçam a hipocrisia internacional e o abandono de certos povos e partes do mundo. (…).
«Pergunto-me se o novo Enviado Especial da ONU para o Sahara Ocidental, Staffan de Mistura, planeia resolver o mesmo que resolveram os seus quatro antecessores: nada. Ou ainda pior, pois a sorte parece já ter sido lançada, uma vez que Trump reconheceu a soberania marroquina em troca do pleno estabelecimento de relações diplomáticas de Marrocos com Israel. Onde está a Espanha — com pressão diplomática, com uma presença institucional nos campos de refugiados, com uma atitude pró-activa na diplomacia... — a defender um povo que sentimos ser nosso irmão? Pedro Sánchez já falou com Staffan de Mistura para lhe dizer da nossa firme posição de defesa dos direitos humanos e civis do povo saharaui, e de promoção da preparação do referendo em conformidade com o que foi aprovado na altura pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas? Suspeito que não: estamos demasiado ocupados a gesticular na Ucrânia.»


 


 



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