sábado, 4 de setembro de 2021

Boletim nº 100 - Setembro 2021

EDITORIAL

Cem números deste boletim representam 8 anos da solidariedade portuguesa para com o povo saharaui – desde Março de 2013 até este Setembro de 2021. A perseverança é para celebrar, mas o demasiado longo e injusto caminho que as e os saharauis se têm visto obrigados a percorrer na defesa dos seus direitos só nos pode indignar.

O esforço tem sido o de ir tentando compreender os acontecimentos, tanto do lado saharaui, como do lado do colonizador marroquino, assim como as suas repercussões regionais e as exigências políticas e éticas que colocam ao resto do mundo. Baseados na nossa própria experiência colonial, enquanto portugueses e no processo de Timor-Leste, em que nos empenhámos fortemente, vemos como um mesmo regime oprime dois povos vizinhos, que poderiam viver em paz e solidariamente. As aspirações expansionistas daqueles que detêm o poder político e económico nunca deram bons resultados. Provocam sofrimentos incontáveis e comprometem o futuro de gerações, a troco de efémeras conquistas.
A Europa, espaço geográfico onde nos inserimos, tem particulares responsabilidades, porque a Espanha colonizou o Sahara Ocidental e não assumiu a descolonização, porque a União Europeia escolheu dar força ao regime que governa Marrocos e ignorar o povo saharaui. A ONU, que em 1960 garantiu o fim do colonialismo e que desde 1991 mantém no terreno a Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental, criada no quadro de um acordo ratificado por todas as partes (incluindo Marrocos) de que o referendo deveria realizar-se a curto prazo, tem demonstrado, mais uma vez, como se submete à relação de forças mundial.
Nenhum destes obstáculos tem desmobilizado o povo saharaui. Num território ocupado e isolado do mundo pela força, as e os defensores dos direitos humanos – começando pelo direito à autodeterminação – não cessam de encontrar formas de demonstrar as suas convicções, sabendo que se expõem à repressão desproporcionada. Na frente de batalha, que se reacendeu em Novembro passado, a mensagem é de luta e persistência. Nos acampamentos de Tindouf, como reconheceu em Abril último Christopher Ross (ex-Enviado Pessoal do Secretário-geral da ONU para o Sahara Ocidental), «a Frente POLISARIO conseguiu organizar e prover as necessidades de um grande número de refugiados (...) nas últimas décadas». Na arena internacional e diplomática, a reivindicação dos princípios mantém-se firme.
É pela justiça que agimos. Enquanto cidadãs e cidadãos, fazendo parte de uma rede solidária com organizações activas em todos os continentes, não descansaremos enquanto o povo do Sahara Ocidental não puder exprimir a sua vontade, através de um referendo livre e justo.
Se é leitor/a do nosso boletim, faça-nos chegar a sua opinião sobre este meio de conhecer melhor o mundo em que vivemos, através da lente com que acompanhamos e nos solidarizamos com o processo de libertação saharaui (aapsaharao@gmail.com).

«EM MARROCOS A REPRESSÃO ESTÁ NO AUGE!»

As sinuosidades da política externa do regime marroquino levam-nos, por vezes, a ignorar a sua política interna, a sua relação com os seus próprios cidadãos e cidadãs. Myriam Bourgy e Pauline Imbach, duas activistas do CADTM (Comité para a Abolição das Dívidas Ilegítimas) têm-se empenhado no apoio aos presos políticos marroquinos Omar Radi e Soulaiman Raissouni, denunciando a situação política e social que se vive em Marrocos.

Solidariedade com Raissouni e Radi (foto CADTM)

«O mundo parece estar a descobrir através do Pegasus, o programa israelita no centro de um dos mais graves escândalos de espionagem da década, que as autoridades marroquinas violam alegremente os direitos humanos, a liberdade de expressão ou de imprensa.
«Hoje, porém, esses direitos já não existem em Marrocos. Se os jornalistas Omar Radi, vigiado pelo Pegasus, e Soulaiman Raissouni estão presos, é precisamente porque viram e denunciaram o endurecimento autoritário no seu país. Porque se recusaram, como muitos jornalistas marroquinos, a submeter-se e a calar. O processo Pegasus prova que Omar e Soulaiman são lançadores de alertas e que o seu combate se estende muito para além das fronteiras de Marrocos.
«Omar Radi é nosso amigo. Conhecemo-lo em 2007 e trabalhámos juntos na rede internacional do CADTM. Jornalista de investigação, voz crítica que o governo marroquino quer silenciar a todo o custo, foi condenado em 19 de Julho de 2021 a 6 anos de prisão, após um julgamento farsa. Não conhecemos pessoalmente Soulaiman Raissouni, o editor-chefe do diário Akhbar Al Yaoum. Preso desde Maio de 2020, (...), Soulaiman foi condenado a 5 anos de prisão após um julgamento injusto. Foi durante a sua detenção que se tornou, de certa forma, nosso amigo. Tal como com Omar, pensamos nele diariamente, preocupamo-nos com a sua saúde e tememos hoje pela sua vida. Após 11 meses de prisão preventiva, Soulaiman iniciou em 8 de Abril uma greve de fome por tempo indeterminado.
«Não estamos em Marrocos, estamos longe, mas há mais de um ano que compartilhamos diariamente com a família e amigos dos presos políticos uma raiva imensa, uma dor profunda e uma esperança. É difícil encontrar palavras para mostrar o nosso apoio e admiração, tanto por Omar e Soulaiman como pelas suas famílias e amigos que estão a lutar incansavelmente pela sua libertação. Desde a prisão arbitrária de Omar, há pouco mais de um ano, o seu pai Driss Radi escreve-lhe uma carta todos os dias, que coloca nas redes sociais. Essas cartas são ternas e comoventes, mas são também fortes apelos sobre a situação política em Marrocos e, como tal, constituem um poderoso inventário de deficiências. A mãe de Omar e a esposa de Soulaiman, pela sua coragem, tornaram-se as figuras da luta pela liberdade dos presos políticos. Acompanhadas por amigos conduzem uma luta exemplar todos os dias e que não é isenta de perigos. Em Marrocos, a repressão está no auge!
«Também nós os acompanhamos nas redes sociais e vemo-los, impotentes, através das imagens que nos chegam, a serem agredidos pela polícia que, sempre em excesso, proíbe as suas reuniões, os violentam, rasgam os seus estandartes ou, cúmulo da estupidez, cortam as árvores que lhes dão sombra nas concentrações de solidariedade. Sabemos que esta é a sua face visível. Adivinhamo-los sob escuta telefónica. Imaginamo-los a serem seguidos, perseguidos, humilhados, vigiados ... As famílias ficam sem notícias do ente querido, sem saber, no caso de Soulaiman Raissouni, se ainda está vivo. Nos últimos dias, a administração da penitenciária tem recusado sempre a sua transferência para o hospital e colocou-o junto de outros presos encarregados de o espiar e de comer à sua frente, uma verdadeira tortura depois de tantos dias de greve de fome... Recusou-lhe igualmente o acesso a uma cadeira de rodas, quanto Soulaiman já não consegue andar, obrigando-o a arrastar-se para se encontrar com os seus advogados
1
Testemunho de Kholoud Mokhtari, esposa de Soulaiman Raissouni, postado na sua conta do Facebook após uma entrevista por telefone com o seu marido em 28 de Julho de 2021.
.
«As autoridades marroquinas tudo fazem para quebrar os presos políticos, as suas famílias e os seus apoiantes. Mas, dia após dia, as famílias e os amigos permanecem firmes, determinados e poderosos. Dia após dia, as suas vozes erguem-se para exigir justiça e liberdade.
«Dia após dia, enfrentam o poder com coragem. Dia após dia, receamos por eles, nós que não temos a sua coragem. Eles são as vozes livres de Marrocos, os insubmissos.
«A sua luta é tão justa! Estamos ao seu lado.
«Sejamos muitos a exigir a liberdade para Omar e Soulaiman e para todos os presos políticos em Marrocos!»
Dois dias depois da publicação deste artigo, «Soulaiman Raissouni decidiu suspender a greve de fome na prisão de Casablanca após 118 dias, com o compromisso de ser transferido para o hospital para acompanhamento médico.»
Conforme relata Jesús Cabaleiro Larrán, «Durante o último fim-de-semana [31 Julho/1 Agosto] o seu estado de saúde (...) deteriorou-se seriamente, (...), informou a comissão de solidariedade com o jornalista, acrescentando que ele tinha uma febre de quase quarenta graus.
«Também perdeu mais de trinta quilos, sofre de hipertensão crónica e a sua perna direita está paralisada devido a uma patologia neurológica. Precisa de cuidados médicos e de apoio psicológico substancial.
«Os seus advogados de defesa enviaram uma carta ao Ministério Público e ao Conselho Geral da Magistratura para que esta acção fosse levada a cabo. Também expressaram a sua gratidão pela solidariedade que recebeu em Marrocos e noutros países durante a longa greve de fome.
«Além disso, os seus advogados esperam que esta medida seja executada imediatamente: "A direcção da prisão disse que assim se faria, mas não é a primeira vez que o prometido não é cumprido". Deve também recordar-se que a Direcção Geral da Administração Penitenciária (DGAP) divulgou algumas imagens dele, o que provocou a indignação geral. (…).»
Como escreveu Houda Chograni, uma escritora e activista tunisina, «Um Estado de direito equitativo e justo está condicionado à existência de um sistema judicial independente; contudo, o sistema jurídico marroquino está sob o controlo do monarca. Embora a Constituição de 2011 tenha reforçado a independência do poder judiciário como separado dos poderes legislativo e executivo, como consagrado no artigo 107, o rei preside, no entanto, ao Conselho Superior da Magistratura (artigo 56) e, por decreto, faz nomeações para o Conselho Superior do Poder Judiciário (artigo 57). O rei também designa seis dos 12 membros do Tribunal Constitucional e nomeia um deles como presidente do tribunal (artigo 130). Ironicamente, e numa flagrante contradição, a Constituição estipula no artigo 107 que o monarca garante a independência do poder judicial. Em 2014, o Ministério do Interior proibiu uma concentração do independente Clube dos Juízes, que exigia uma maior autonomia do poder judicial em relação aos poderes executivo e legislativo, e dos interesses sociais e políticos, como proclamou o presidente do clube, Yassine Mkhelli.»

 

MARROCOS-ARGÉLIA: À BEIRA DA GUERRA?

As relações entre Marrocos e a Argélia nunca foram fáceis desde os tempos da luta de libertação contra o colonizador. O primeiro, um protectorado franco-espanhol, viu ser-lhe concedida a independência em 1956. O segundo teve de travar uma sangrenta guerra até lhe ser reconhecido esse direito em 1962. Mas as independências não vieram facilitar o reencontro.

Lamamra-Bourita: relações a ”azedar”? (AFP)

Em 25 de Fevereiro o jornalista Jihâd Gillon da Jeune Afrique, uma publicação francófona pró-marroquina, perguntava – perguntava-nos - «Marrocos-Argélia: amanhã a guerra?» Sete meses depois a pergunta ganhou uma enorme actualidade.
Os analistas apontam para quatro possíveis razões para a actual crispação. A ocupação do Sahara Ocidental por Marrocos é unanimemente reconhecida como a principal, até porque incentivou a segunda: a aliança com o Estado de Israel. A terceira são as aspirações hegemónicas que os dois países têm sobre a região do Magrebe, em particular, e o continente africano, em geral. Finalmente, as crises sociais e económicas por que ambos passam.

Antecedentes próximos da ruptura

Em Julho a tensão agudizou-se. Primeiro com o embaixador de Marrocos nas Nações Unidas, Omar Hilale, a fazer circular uma nota oficial durante a tele-Cimeira do Movimento dos Não-Alinhados em 13 e 14 Julho, afirmando o apoio do seu país ao «corajoso povo de Cabília [que] merece, mais do que qualquer outro, usufruir plenamente do seu direito à autodeterminação». A Cabília é uma região no norte da Argélia. As autoridades argelinas reagiram violentamente a esta nota. «Esta comunicação diplomática marroquina é aventureira, irresponsável e manipuladora. É parte de uma tentativa míope, simplista e fútil de cultivar uma amálgama ultrajante entre uma questão de descolonização devidamente reconhecida como tal pela comunidade internacional e o que é apenas uma conspiração dirigida contra a unidade da nação argelina.» A iniciativa marroquina surgiu a seguir à alocução do novo MNE argelino, Ramtane Lamamra, em que este lembrou o apoio constante que o Movimento dos Países Não Alinhados tem dado desde a sua criação às justas causas da descolonização em todo o mundo, sublinhando a necessidade de manter a solidariedade com os povos palestiniano e saharaui. Alertou também que «o recomeço do conflito armado entre o Reino de Marrocos e a Frente POLISARIO merece a maior atenção por parte da comunidade internacional», apelando ao Secretário-geral da ONU para «acelerar a nomeação do seu Enviado Pessoal [para o Sahara Ocidental] e lançar um processo político credível entre as duas partes em conflito, com o objectivo de se chegar a uma solução política justa e duradoura que garanta a autodeterminação do povo da República Saharaui, membro fundador da União Africana».
No dia 18 Lamamra chamou o embaixador argelino em Rabat para consultas, ao mesmo tempo que abria a possibilidade de tomar «outras medidas».
No dia 22 de Julho a Argélia expressou a sua «profunda preocupação» com a utilização por Marrocos do programa de espionagem Pegasus, desenvolvido pela empresa israelita NSO Group, contra funcionários e cidadãos argelinos e condenou «veementemente este inadmissível ataque sistemático aos direitos humanos e às liberdades fundamentais. (…). Estando directamente preocupada com esses ataques, a Argélia reserva o direito de implementar a sua estratégia de resposta e está pronta para participar de qualquer esforço internacional destinado a apurar colectivamente os factos e a lançar luz sobre a materialidade e a escala desses crimes que ameaçam a paz e a segurança internacionais, bem como a segurança humana.» As notícias davam conta de que entre os altos responsáveis argelinos espiados encontravam-se Ramtane Lamamra e o Chefe do Estado-Maior do Exército Saïd Chengriha.
Segundo Abed Charef, um escritor e cronista argelino, «para além desta crise, a Argélia também se questiona sobre o real significado da atitude marroquina. Porquê esta incidência sobre Cabília, e porquê, para o benefício de quem, está Marrocos a investir massivamente na espionagem dos dirigentes argelinos? Que garantias tem Marrocos para agir com tanta arrogância?
«As primeiras respostas parecem óbvias. Marrocos quer explorar ao máximo a vantagem, que considera decisiva, obtida com Donald Trump: o reconhecimento, por parte dos Estados Unidos, da soberania marroquina sobre o Sahara Ocidental, reconhecimento de que Marrocos espera tirar dividendos.
«O preço a pagar é conhecido: o sacrifício da causa palestiniana, consequência da normalização com Israel.
«E é aqui que reside a principal preocupação da Argélia: a intrusão directa de Israel na configuração das relações inter-magrebinas. (…).
«Ao entrar nessa engrenagem, Marrocos acredita colocar-se sob uma protecção infalível. Com o apoio político dos Estados Unidos e da França, e o apoio tecnológico e militar de Israel, Rabat espera o jackpot
A diplomacia argelina ganhou um novo impulso com esta crise. Nos finais de Julho, Lamamra visitou a Etiópia, o Egipto, o Sudão e a Tunísia. E nos princípios de Agosto o responsável pelo Departamento de Estado dos EUA Antony Blinken teve uma conversa telefónica com o MNE argelino em que debateram as relações bilaterais e problemas do norte de África e do Médio Oriente. Esta conversa tinha sido precedida de uma visita de Joey Hood, Subsecretário de Estado para o Médio Oriente, numa viagem que o fez passar também por Marrocos e o Kuwait.
No dia 18 de Agosto a presidência argelina informou que iria rever as suas relações com Rabat e que intensificaria os «controlos de segurança nas fronteiras ocidentais». Durante uma reunião extraordinária do Conselho Supremo de Segurança argelino, dedicada aos incêndios florestais que assolaram o norte do país e presidida pelo Chefe de Estado, a Argélia decidiu "rever" as suas relações com o vizinho marroquino, justificando essa decisão com «os incessantes actos hostis perpetrados por Marrocos contra a Argélia. (…).»
«O presidente argelino, Abdelmadjid Tebboune, afirmou que a maioria dos incêndios era de origem criminosa. De acordo com a polícia, a investigação revelou que o Movimento para a Autodeterminação de Cabília (MAK), uma organização ilegal na Argélia e qualificada como uma ONG terrorista, estava envolvida (…). De acordo com a presidência argelina, a organização "recebe apoio e assistência de agentes estrangeiros, encabeçados por Marrocos (…)".»
No dia 24 de Agosto Lamamra anunciou a ruptura de relações diplomáticas com Marrocos.

As consequências mais imediatas

Adlène Meddi e Malek Bachir (dois jornalistas argelinos) dão-nos a sua análise da situação: «“Está histórica e objectivamente estabelecido que o Reino de Marrocos nunca deixou de realizar acções hostis e mal intencionadas contra o nosso país e isto desde a independência da Argélia”, declarou o chefe da diplomacia atribuindo aos dirigentes marroquinos “a responsabilidade das sucessivas crises que nos fizeram entrar num beco sem saída”.
«Além da contenciosa questão do Sahara Ocidental (...) foi acrescentado outro motivo de desacordo: a normalização das relações diplomáticas entre Marrocos e Israel. (…).
«Neste sentido, em Abril, uma instrução presidencial determinou que várias empresas argelinas rescindissem os seus contratos com empresas estrangeiras, em particular as marroquinas, susceptíveis de “comprometer” o país e “a sua segurança”.
«Um analista argelino (…) comentou para o Middle East Eye : “tem-se o sentimento de que enquanto o problema do Sahara Ocidental não for resolvido, ele continuará a ser um factor de instabilidade para a região. A Argélia e Marrocos, em particular, tudo farão para sabotar a segurança no Sahel, promovendo um novo Afeganistão às portas da Europa.
«“O Reino de Marrocos fez do seu território nacional uma (...) ponte para planear, organizar e apoiar uma série de acções hostis e definidas contra a Argélia. A mais recente diz respeito às acusações sem sentido e às ameaças veladas feitas pelo Ministro das Relações Exteriores de Israel em visita oficial a Marrocos e na presença do seu homólogo marroquino, que foi claramente o instigador de tais declarações injustificáveis ”, sublinhou Ramtane Lamamra.
«Aquando da sua visita a Marrocos em 11 e 12 de Agosto, Yaïr Lapid expressou a sua "preocupação com o papel desempenhado pela Argélia na região, a sua aproximação com o Irão e a campanha que empreendeu contra a admissão de Israel como membro observador da União Africana”.»
As autoridades marroquinas reagiram no mesmo dia ao rompimento das relações: «Marrocos lamenta esta decisão totalmente injustificada mas esperada, tendo em conta a lógica da escalada observada nas últimas semanas, bem como o seu impacto sobre o povo argelino. Rejeita categoricamente os pretextos falaciosos, até mesmo absurdos, que estão por trás dele.
«Pela sua parte, o Reino de Marrocos continuará a ser um parceiro credível e leal para o povo argelino e continuará a agir com sabedoria e responsabilidade para desenvolver relações inter-magrebinas saudáveis e frutíferas.»
Ali Lmrabet, um jornalista marroquino que trabalhou para o diário El Mundo e que está interdito de exercer a actividade no seu país, escreveu para o Middle East Eye: «(…). Agora que as relações diplomáticas foram rompidas não podemos deixar de pensar no que se seguirá.
«Qual será o destino dos argelinos que vivem em Marrocos e dos marroquinos, em particular do grande número de migrantes ilegais, presentes na Argélia?
«Se um cenário idêntico ao da década de 1970, que assistiu a expulsões maciças e recíprocas de populações na sequência do rompimento por Rabat das relações bilaterais em 1976, após o reconhecimento por Argel da República Árabe Saharauí Democrática (RASD), não estará na ordem do dia, nada nos diz que a situação não mudará se as coisas azedarem. E vão azedar.

«Outra vítima desta crise será, salvo um volte-face, o gasoduto Magrebe-Europa, que liga a Argélia à Espanha através do território marroquino, e cujo contrato termina em Outubro. (…).
«A este respeito, o recomeço das hostilidades com a Frente POLISARIO, simples escaramuças de momento, corre o risco, se o exército argelino der um forte impulso aos saharauís, de se transformar num conflito aberto e sangrento.
«E essas não são as únicas decepções para o regime alauita. A lenta e inexorável deterioração da situação social não é negada por ninguém e as perspectivas de o país sair rapidamente da crise económica vão-se esvaindo à medida que descobrimos os números alarmantes do aumento das infecções por COVID-19 e o seu corolário, a extensão infinita do confinamento. (…).»
Aquilo que alguns analistas previam aconteceu. «O gasoduto Maghreb - Europa, que abastece Espanha e Portugal via Marrocos a partir do gigantesco campo de gás argelino de Hassi R’mel, é a primeira vítima colateral do rompimento das relações entre Argel e Rabat.
«Após vários meses de incerteza sobre a renovação do contrato do gasoduto, a sentença argelina caiu na quinta-feira, 26 de Agosto, dois dias depois de a Argélia ter anunciado a sua decisão de romper as relações diplomáticas com Marrocos.»
Num encontro que o ministro argelino de Minas e Energia, Mohamed Arkab, teve com o embaixador de Espanha na Argélia, Fernando Moran Calvo Sotelo, aquele afirmou que a Argélia ia prescindir do gasoduto Magrebe-Europa que passa por Marrocos, passando os fornecimentos de gás a serem feitos directamente a Espanha através do gasoduto Medgas, que liga Almería a Hassi R'mel.
Em troca de permitir que o gás argelino passe pelo seu território, Marrocos recebe royalties no valor de 0,5 mil milhões de metros cúbicos de gás, que representam metade do consumo do país. Rabat será assim obrigado a importar gás a um custo maior.
Quanto à Frente POLISARIO, o seu representante para a Europa Oubi Bouchraya Bachir declarou: «O corte das relações diplomáticas entre a Argélia e Marrocos é uma questão bilateral entre os dois países, mas a nossa luta e o comportamento obstrutivo de Marrocos constituem uma das razões por detrás disso (…).
«Esperávamos que, após a erupção da guerra em Novembro do ano passado, esse desenvolvimento finalmente provasse ao Conselho de Segurança das Nações Unidas que os negócios já não são mais como de costume e que chegou a hora de resolver o conflito em vez de continuar apenas a administrá-lo, (…).»


 


 

 


 


 


 

Sem comentários:

Enviar um comentário