quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Boletim nº 99 - Agosto 2021

SAHARA OCIDENTAL PRESENTE NA XIII CIMEIRA DA CPLP

Até agora, o Sahara Ocidental tinha estado ausente na Cimeira de Países de Língua Portuguesa (CPLP). Na Cimeira de Chefes de Estado e de Governo que celebrou em Luanda (16-17 de Julho) os 25 anos da Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa, os direitos do povo saharaui irromperam.

Colonização em causa

Os nove Estados que compõem a CPLP são muito diferentes e a trajectória da sua relação com a questão saharaui espelha as suas forças e fraquezas.
Portugal nunca reconheceu a RASD, mas não ousa desafiar abertamente o Direito Internacional. Como foi expresso pelo Gabinete do Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros de Portugal, em 16 de Fevereiro de 2021, em resposta a uma questão escrita entregue pelo PAN na Assembleia da República: «A posição portuguesa sobre o Sahara Ocidental assenta na defesa de uma solução justa, duradoura e mutuamente aceitável, que permita a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental, no quadro das negociações lideradas pela ONU, das resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas e dos princípios da Carta das Nações Unidas». É esta a retórica da Europa, e até dos Estados Unidos, cujo Sub-secretário de Estado para os Assuntos do Médio Oriente, Joey Hood, afirmou no comunicado final da sua recente visita oficial a Rabat (28 de Julho), depois de ter passado pela capital argelina: «No que diz respeito ao Sahara Ocidental, apoiamos um processo político credível liderado pelas Nações Unidas para estabilizar a situação e assegurar a cessação das hostilidades. Mantemos consultas com as partes sobre como melhor poderemos acabar com a violência e por fim chegar a um acordo duradouro». Nem mais uma palavra, nem uma alusão à decisão de Trump de reconhecer a soberania de Marrocos sobre o Sahara Ocidental, nos últimos dias do seu mandato.
O Brasil segue o padrão “ocidental”, mas a América Latina está dividida. Em 27 países que reconheceram a RASD, maioritariamente na década de 1980, 11 mantêm a mesma posição, sete dos quais acolhem embaixadas saharauis: Costa Rica, Cuba, Equador, México, Nicarágua, Panamá, Uruguai e Venezuela.
Todos os Estados africanos membros da CPLP reconheceram a RASD, entre 1976 e 1979. Mas os mais frágeis, a troco de contrapartidas significativas por parte de Marrocos, suspenderam ou cancelaram essa posição. No entanto, Angola e Moçambique estão entre os países africanos que continuam a reconhecer a RASD e, tal como a África do Sul, a Argélia, o Chade, a Etiópia, o Gana, o Quénia, a Nigéria, a Tanzânia, e o Uganda, acreditam embaixadores saharauis.
Timor Leste é um caso único, porque acompanhou a par e passo a luta saharaui: ambas as colónias inscritas na lista das Nações Unidas de “territórios não-autónomos” pendentes de descolonização na década de 1960, foram invadidas pelo respectivo recém-descolonizado vizinho no final de 1975, proclamaram unilateralmente o seu Estado independente e ambas lutaram pelo direito à autodeterminação. Em 1991, aquando da assinatura do cessar-fogo entre a Frente POLISARIO e Marrocos, que incluía o compromisso de realização de um referendo, pensou-se que o Sahara Ocidental daria o primeiro passo. Afinal, foi em Timor Leste que se concretizou a “consulta popular” que abriu as portas à afirmação da opção pela independência (1999), formalmente celebrada em 2002. Foi logo nessa altura que Díli reconheceu a RASD e se prontificou a receber uma embaixada saharaui, que se mantém até agora.
Enquanto estes três países – Timor Leste, Angola e Moçambique – apoiavam no interior da Cimeira os direitos do povo saharaui, 22 organizações da sociedade civil de seis Estados membros da CPLP, entre as quais três plataformas nacionais, exigiam o referendo de autodeterminação para a última colónia de África. «Que sejam os e as saharauis a escolher o seu futuro», terminava a Declaração subscrita por organizações de Angola, Brasil, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e Timor Leste.
«Com enorme respeito pela forma determinada e corajosa como o povo saharaui tem sobrevivido e tem continuado a lutar durante estas mais de quatro décadas, em condições extremas», as organizações afirmavam não aceitar «a contemporização de uma parte da comunidade internacional, e das Nações Unidas, com as práticas políticas, diplomáticas, económicas e de segurança da potência ocupante, o Reino de Marrocos», ao mesmo tempo que reconheciam «os governos que, mantendo-se fiéis ao princípio de autodeterminação de todos os países e povos coloniais, de acordo com a Resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral da ONU, de 1960, têm demonstrado o seu apoio político, diplomático e económico às exigências da luta do povo do Sahara Ocidental e do seu legítimo representante, a Frente POLISARIO» e se regozijavam «com a progressiva tomada de consciência de organismos internacionais, empresas, instituições académicas e de cidadania que recusam a realpolitik de curto prazo e dão prioridade aos direitos dos povos saharaui e marroquino».
Por fim, reiteravam que «querem ser uma parte cada vez mais activa do movimento de solidariedade para com o povo do Sahara Ocidental e exigem justiça nas relações internacionais, porque ela é a base da paz e do desenvolvimento, acreditando que terminar o processo de descolonização inacabado do Sahara Ocidental é vital, e que o Direito Internacional aponta um caminho claro: como no caso de Timor-Leste, realize-se um referendo livre e justo, sob supervisão da ONU.»
Em 2012, o então embaixador de Marrocos junto das instituições da ONU em Genebra expressava uma grande preocupação, numa carta enviada ao seu governo, relativamente à pró-actividade do novo embaixador da República Árabe Saharaui Democrática (RASD) na União Africana, em Adis Abeba. Isto ocorreu no período que mediou entre a saída voluntária de Marrocos da OUA, em 1984 (em protesto pela admissão da RASD como membro de pleno direito da organização continental) e a sua admissão na União Africana (UA), a seu pedido, em 2017. Talvez neste Julho Rabat tenha tido um novo sobressalto, no contexto das múltiplas variáveis que explodem hoje no âmbito da sua política externa.

ESPANHA-MARROCOS: O CRIME COMPENSA?

No passado dia 12 de Julho tomaram posse os novos ministros do governo de Pedro Sánchez. Um dos ministérios objecto de mudança foi o dos Negócios Estrangeiros, onde a ministra Arancha Gonzáles Laya foi substituída o que muitos órgãos da comunicação social de Espanha consideraram como uma cedência a Marrocos.

O novo MNE Albares Bueno (foto El Pais)

No discurso de passagem de testemunho Laya reconheceu que deixa pendente a questão de «restabelecer relações plenas com o nosso vizinho e parceiro Marrocos com base no respeito e na co-responsabilidade». Segundo o jornal El Mundo, «A ministra lamentou "a pobreza e o vazio do debate político" e defendeu a sua trajectória de "serviço público". No final do seu discurso destacou que “tenho a certeza de que os nossos caminhos se cruzarão em breve”. É possível que a sua saída agora, depois de ter sido sacrificada pelo rompimento das relações diplomáticas com Rabat após a recepção em Espanha do líder da Frente POLISARIO, Brahim Ghali [em 18 de Abril passado], seja um posto internacional na Comissão Europeia ou na ONU.» Segundo o jornal, Sánchez recorreu agora «a um diplomata de carreira (...), que foi embaixador em Paris e também um homem muito próximo dele, que o acompanhou desde o início no PSOE e no Governo.»
Na verdade, o mal-estar nas relações hispano-marroquinas é anterior ao “caso Ghali”. O regime de Rabat tinha ficado incomodado com o pouco eco que a decisão do ex-presidente Trump de reconhecer a soberania marroquina sobre o Sahara Ocidental teve nos países da União Europeia, e particularmente na Alemanha, Espanha e França. Neste quadro, o acolhimento por razões de saúde do dirigente saharaui foi um mero pretexto, como o governo marroquino reconheceu publicamente.
O El Confidencial Saharaui dá conta de uma entrevista de Gonzáles Laya ao jornal El Correo pouco tempo antes da sua substituição, onde esta lembra que «Pouquíssimas pessoas sabem que a Espanha continua a ter responsabilidades na antiga colónia. É uma situação curiosa, saímos mas não cedemos a soberania», acrescentando que «A nossa responsabilidade no Sahara é trabalhar de forma construtiva com as Nações Unidas com vista a chegar a uma solução definitiva para uma disputa que requer uma resposta da comunidade internacional.» E reconheceu: «Estas relações passam às vezes por momentos difíceis, e esta não é a primeira vez, mas devemos tentar superar a crise com diálogo e respeito mútuo. O século XXI não é um século de independências ou dependências, é um século de interdependências, e esta é uma questão complicada, que tem de ser superada.»
Mah Iahdih, delegado na Catalunha da Frente POLISARIO, faz um balanço positivo da acção da ex-ministra Laya: «Em qualquer caso, e apesar do seu início submisso e das suas repetidas tentativas de agradar e agraciar o poder marroquino, não há dúvida de que a Sra. Arancha González Laya pode ser descrita como a diplomata que mais defendeu a soberania, a honra, a dignidade e a integridade de Espanha desde Jaime de Piniés, o antigo representante nas Nações Unidas.» Recorde-se que Piniés, além de representante de Espanha na ONU durante muitos anos, escreveu um livro – La descolonización del Sáhara, un tema sin concluir – no lançamento do qual «declarou que a Espanha tem uma dívida contraída com os saharauis e com a Frente POLISARIO.»
O novo MNE, José Manuel Albares Bueno, nasceu em Madrid em 1972, licenciou-se em Direito na Universidade de Deusto, uma escola jesuíta que se apresenta como «a mais antiga universidade privada de Espanha», e diplomou-se em Ciências Empresariais pela mesma universidade, após o que entrou na carreira diplomática. Do seu currículo constam ainda estudos em Boston (EUA), graças a uma bolsa que lhe deu depois acesso à escola norte-americana de Tânger (Marrocos). É casado com Hélène Davos, presentemente assessora jurídica do presidente francês Emmanuel Macron. Considerado um “homem de confiança” de Pedro Sánchez, foi nomeado em Fevereiro de 2020 embaixador de Espanha em Paris. Agora, na tomada de posse, ao enumerar as prioridades do seu ministério, sublinhou a necessidade de estreitar as relações com os países da margem sul do Mediterrâneo, «em particular, com o nosso grande amigo e vizinho Marrocos». Nesse dia o novo ministro recebeu da Coordinadora Estatal de Asociaciones Solidarias con el Sáhara, CEAS-Sahara, uma carta aberta onde lhe é lembrado:
«É bem sabido dos últimos governos de Espanha que Marrocos tem obstruído os esforços da ONU e do Conselho de Segurança para realizar o referendo acordado em 1991 – por falta de vontade, intransigência e inúmeros actos de provocação – para chegar a uma solução justa para um conflito que data de há mais de 46 anos e que não afecta apenas o povo saharaui e Marrocos, mas cujas terríveis consequências afectam também toda a região do Norte de África e o Magrebe, Espanha e, por conseguinte, a Europa.
«Os cidadãos do Estado espanhol exigem que peça a Marrocos o fim da brutal repressão contra a população saharaui nos Territórios Ocupados do Sahara Ocidental, permitindo o acesso dos meios de comunicação e de observadores internacionais.
«Pedimos também que exija a Marrocos que cumpra os compromissos assumidos com a Comunidade Internacional de descolonizar a antiga província espanhola, que respeite o direito à autodeterminação do povo saharaui reconhecido pelo direito internacional. É a única forma de tornar sustentáveis as nossas maltratadas e incómodas relações de vizinhança, face à contínua chantagem a que é submetido o Governo espanhol pelo seu homólogo marroquino. Os direitos humanos e a legalidade internacional não são moeda de troca.
«Como um primeiro passo para alcançar os direitos do povo saharaui, exigimos que sejam travadas as exportações de qualquer recurso natural do Sahara Ocidental, respeitando a decisão do Tribunal de Justiça Europeu que distingue claramente o território de Marrocos do Sahara Ocidental, que não está sob soberania marroquina, nunca esteve e nunca estará. Qualquer transacção comercial de recursos do Sahara Ocidental é ilegal de acordo com a jurisprudência europeia e os tratados internacionais assinados por Espanha. E, claro, pare de vender armas e material de guerra para possível uso contra os saharauís na guerra actual.»

PEGASUS: O FEITIÇO CONTRA O FEITICEIRO

O caso Pegasus transformou-se num escândalo internacional que ainda vai dar muito que falar, face à profusa quantidade de desenvolvimentos a diversos níveis relativamente a um conjunto considerável de países.

Vigiar a quem? (fonte: Amnesty/Howie Shia)

Ficou claro que Israel, centrado nos seus interesses geoestratégicos, exporta para países escrutinados serviços sofisticados da sua tecnologia de espionagem (spyware), já muito testada no seu território, na faixa de Gaza e na Cisjordânia.
Marrocos tornou-se num cliente privilegiado do Pegasus, um país que ambiciona há muito controlar, dentro e fora das suas fronteiras, cidadãs e cidadãos marroquinos, saharuis e todos aqueles que de alguma forma possam pôr em causa a estratégia do regime para se perpetuar no poder e conservar a ocupação do território saharaui.

A investigação realizada

De acordo com uma investigação realizada por Forbidden Stories – um consórcio internacional de 17 órgãos de comunicação social
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O Le Monde refere o seguinte conjunto de media como parte do consórcio: Aristegui Noticias, Daraj, Die Zeit, Direkt 36, Knack, Forbidden Stories, Haaretz, OCCRP, Proceso, PBS Frontline, Radio France, Le Soir, Süddeutsche Zeitung, The Guardian, The Washington Post, e The Wire, além do próprio.
– e a Amnistia Internacional (AI), a empresa israelita NSO Group desenvolveu o programa Pegasus que vendeu a serviços de segurança de diversos países para alegadamente “rastrear terroristas e criminosos”, tendo-se confirmado, porém, que o mesmo foi utilizado para espiar telemóveis pertencentes a jornalistas, activistas de direitos humanos, advogados, parlamentares, entre outras pessoas.
A investigação permitiu chegar a uma lista de mais de 50.000 números de telefone. O modus operandi do Pegasus é bastante sofisticado pois a sua instalação e activação não necessita de qualquer acção por parte do utilizador/a do telemóvel visado. A partir daí o programa captura/copia a informação residente no telemóvel: imagens da câmara e sons do microfone (esta aplicação tem até a capacidade de activar as câmaras e os microfones em tempo real), contactos, mensagens, dados de localização e hora associada, etc., sendo a informação automaticamente enviada a um operador do spyware.
Não se conhece a quem se encontram atribuídos todos os números da lista. No entanto, os investigadores conseguiram identificar mais de 1.000 pessoas de cerca de 50 países
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Entre os quais Azerbeijão, Arábia Saudita, Bahrain, Emiratos Árabes Unidos, Hungria, Índia, Cazaquistão, México, Ruanda, para além de Marrocos.
, através de pesquisas e entrevistas efectuadas em quatro continentes. Os visados são «membros de famílias reais árabes, pelo menos 65 executivos, 85 activistas de direitos humanos, 189 jornalistas
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Dos seguintes órgãos de comunicação social: CNN, Associated Press, Voice of America, The New York Times, The Wall Street Journal, Bloomberg News, Le Monde, The Financial Times e Al Jazeera.
e mais de 600 políticos e funcionários de governos - incluindo ministros, diplomatas e funcionários militares e de segurança.»
O Le Monde classifica a listagem como «um conjunto impressionante, no qual se encontra um chefe de Estado europeu [Emmanuel Macron] e dois chefes de governo; altos dignitários de uma antiga República Soviética; dezenas de deputados da oposição de um país africano; príncipes e princesas, dirigentes empresariais, alguns milionários, embaixadores, generais. E acima de tudo, centenas de jornalistas, advogados, activistas de direitos humanos».
É evidente a contradição entre o licenciamento que a NSO afirma a que se destina o software e o que na realidade se apurou. Até à actualidade, o uso do Pegasus por Estados-cliente aparentava ser um segredo bem guardado, já que desde a sua criação em 2011, a empresa israelita vendia-o associado à retórica do seu uso “legítimo”. As informações publicadas pela investigação comprovam que os abusos são a norma. Violações dos direitos humanos são frequentemente cometidas por Estados para os quais a venda do Pegasus foi obrigatoriamente validada pelo Ministério da Defesa de Israel.
A Amnistia Internacional (AI) já tinha criticado abertamente o negócio da NSO e intentou em Israel uma acção judicial (mal sucedida) contra a empresa, procurando revogar a sua licença de exportação. Nem a NSO nem o governo israelita podem ignorar que parte significativa dos clientes do Pegasus o utiliza especificamente para espiar opositores políticos e até para espionagem industrial de parceiros de negócios e de governos vizinhos.
O uso generalizado deste spyware configura uma ameaça às democracias em todo o mundo, já que jornalistas, políticos e defensores de direitos humanos, ficando sob vigilância, não podem actuar com confidencialidade e em segurança, sem colocarem em perigo as suas fontes de informação, para além deles próprios. Por exemplo, a perícia forense da AI encontrou evidências de que o Pegasus foi utilizado para espiar duas mulheres próximas do colunista saudita Jamal Khashoggi que escrevia para o The Washington Post. O telefone da sua noiva, Hatice Cengiz, foi “infectado” com sucesso após o assassinato de Khashoggi na Turquia em 2 de Outubro de 2018. Também constavam da lista os números de dois funcionários turcos envolvidos na investigação do desmembramento do cadáver por uma equipa saudita. Hanan Elatr, esposa de Khashoggi, também tinha o telefone sob escuta.

O Pegasus em Marrocos

A investigação detectou múltiplos elementos que mostram que Marrocos é cliente da NSO e recorre ao Pegasus. O Citizen Lab da Universidade de Toronto, um dos principais centros mundiais de pesquisa sobre spyware, havia já identificado Marrocos, em 2018, como um cliente muito provável da NSO e confirmou agora que a “cobertura” do espaço francês, por parte de Marrocos, data desse ano.
Desde que a AI revelou em 2020 que o telefone do jornalista marroquino Omar Radi estava “infectado” com o Pegasus, diversos jornalistas marroquinos independentes suspeitaram que também poderiam ser alvo do programa, como Taoufik Bouachrine, director do jornal Akhbar Al-Yaoum, que actualmente cumpre pena de quinze anos de prisão por violação, após um julgamento denunciado como inteiramente político.
Também o jornalista marroquino, membro do conselho editorial do Orient XXI, Hicham Mansouri, que trabalha na Maison des Journalistes em Paris, está entre centenas de jornalistas espiados. A análise do seu telefone revelou que havia sido “infectado” repetidamente entre Fevereiro e Abril de 2021. Hicham Mansouri deixou o seu país em 2016 depois de passar quase um ano na prisão, sob falsas acusações de adultério. Foi condenado à revelia a um ano de prisão.
A estreita cooperação entre Israel e o regime marroquino, em termos de espionagem, promete fortalecer-se. No decorrer deste mês de Julho, a Direcção Nacional de Segurança Cibernética de Israel anunciou a assinatura de um acordo de cooperação com Marrocos, tornando-se o primeiro acordo de defesa electrónica entre os dois países desde o estabelecimento de relações diplomáticas no ano passado. Este inclui «cooperação prática, pesquisa e desenvolvimento e intercâmbio de informação e conhecimento». O acordo foi assinado em Rabat na presença do Director Geral de Internet de Israel, Yigal Una, e o seu homólogo marroquino, General Mustafa Al-Rabie, Director da Segurança Cibernética da Administração de Defesa Nacional, na presença do Ministro Delegado da Presidência do Governo responsável pelo Departamento de Defesa de Marrocos, Abdellatif El Ouedi.

Marrocos versus França, com o Sahara de permeio

A discrição e facilidade de uso tornaram o Pegasus também numa ferramenta de espionagem entre Estados. O Le Monde afirma que «a França pagou um preço elevado; foram visados vários milhares de números de telefone com "+33" [o indicativo telefónico de França], a maioria em nome de um país aliado da França, Marrocos. (…) O spyware permitiu que Marrocos, por baixo preço, visasse, com apenas alguns cliques, secções inteiras do aparelho governamental francês. Os mais cínicos verão nele o curso normal das relações entre os países. Mas as investigações do Le Monde e seus parceiros mostram que esse vasto sistema de vigilância vai muito além do jogo normal de espionagem.» Embora vários Estados estejam envolvidos nesta denúncia, a comunicação social francesa está a destacar o comportamento das autoridades marroquinas.
O caso Pegasus não é, contudo, (ainda) uma situação de vigilância em massa, como as revelações de Edward Snowden sobre as operações da NSA nos Estados Unidos em 2013. As vítimas do Pegasus foram alvos individuais de governos. No entanto, estes dois escândalos têm uma coisa em comum: mostram como os espiões que usam as ferramentas mais sofisticadas controlam minuciosamente a vida dos seus alvos sem serem responsabilizados.
Mais concretamente, no município de Ile-de-France, onde vive Claude Mangin, esposa do activista saharuí preso, Naâma Asfari, concluiu-se que esta foi objecto de «especial interesse» para as autoridades marroquinas. De acordo com a investigação, Rabat espia-a regularmente desde Outubro de 2020. Relembre-se que Naâma Asfari foi detido em Novembro de 2010, em El Aiun, no Sahara Ocidental, na véspera do desmantelamento do campo de Gdeim Izik, e foi condenado em 2013 a trinta anos de prisão por um tribunal militar marroquino, sentença confirmada em 2017 por um tribunal civil.
Os serviços de espionagem marroquinos seleccionaram, aliás, muitos membros da Frente POLISARIO entre 2017 e 2019. A começar por Brahim Ghali, o Presidente da RASD, que está no centro de uma crise diplomática entre Rabat e Madrid, depois dos serviços de informação marroquinos descobrirem a sua presença num hospital em Espanha, em Abril de 2021.
Esta pulsão de espionagem também levou Marrocos a interessar-se pelo presidente da Câmara de Ivry-sur-Seine (arredores de Paris), Philippe Bouyssou. Na ordem de trabalhos da reunião camarária de 30 de Junho constava a aprovação de um subsídio de 5 mil euros a favor de acções educativas para crianças saharuis. Um membro do executivo municipal opôs-se à ajuda. Em frente à sala onde decorria a reunião manifestaram-se várias pessoas afectas ao regime marroquino, tendo algumas entrado à força na sala. O presidente da Câmara deu ordem de evacuação e retomou a sessão à porta fechada. Menos de uma hora depois, o discurso do opositor da ajuda já estava na posse da imprensa marroquina. Em 6 de Julho corrente, uma semana após o incidente, a AI detectou uma tentativa de espionagem do telefone de Bouyssou.
Podem as revelações do Forbidden Stories sobre a espionagem via Pegasus de personalidades francesas, em particular do Presidente da República Emmanuel Macron, colocar em cheque as relações entre Paris e Rabat?
Assunto delicado. Do lado do Eliseu explica-se que se deve primeiro investigar para ver se Marrocos está envolvido no ataque aos telemóveis de vários políticos franceses. A 19 de Julho último, o porta-voz do governo francês Gabriel Attal, reagiu duramente às denúncias de espionagem, descrevendo os factos como «extremamente chocantes que, se provados, são extremamente graves». Marrocos nega obviamente qualquer envolvimento neste caso. Na realidade, Paris tem pouco interesse em provocar uma disputa diplomática com um país “amigo” como Marrocos, com o qual as relações bilaterais são muito fortes, nomeadamente no intercâmbio entre os serviços de espionagem.
Entretanto, enquanto avança o inquérito aberto pelo governo francês, alguns cidadãos espiados apresentaram formalmente queixa às autoridades.


 


 


 


 


 

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