domingo, 6 de junho de 2021

Boletim nº 97 - Junho 2021

 

O SAHARA OCIDENTAL EM PEQUIM

Ao longo das várias décadas em que tem decorrido o processo de descolonização do Sahara Ocidental a China tem tido uma postura muito discreta. Apesar da sua participação na MINURSO e dos seus negócios com o ocupante.

Sahara Ocidental, uma questão secundária?

Mesmo quando começou a ser claro que competia com os Estados Unidos da América pela hegemonia global, nunca sobressaiu por tomar posições que, de alguma forma, se opunham ao discurso da potência cuja hegemonia desafiava.
Não que a sua política externa tivesse tido sempre este perfil. Nos anos sessenta, no auge da “Grande Revolução Cultural Proletária”, Pequim desencadeou campanhas “anti-imperialistas” e “anti-social-imperialistas” que envolviam o apoio aos movimentos de libertação, nomeadamente os africanos.
Como nos recorda
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«China’s Balancing Act in the Western Sahara Conflict», Africana Studia nº 29, 1º semestre 2018, pp 145-156.
Hang Zhou, no início da década de 1970 a política externa chinesa entrou num processo de mudança que levou à retirada do apoio a estes movimentos.
Particularmente os seus programas de ajuda passaram a centrar-se nos «benefícios mútuos» e na «cooperação económica». Isto contribuiu, na opinião de Zhou, para o distanciamento da China relativamente à Frente POLISARIO, que se mantém até hoje. E cita a ausência de convite à República Árabe Saharaui Democrática para participar no Fórum de Cooperação China-África realizado em Pequim em Setembro de 2018.
Este distanciamento, porém, não tem impedido Pequim de, no quadro das Nações Unidas, se envolver activamente na dinâmica da MINURSO. Zhou refere que a China é «actualmente, de entre os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, o maior contribuidor de pessoal militar e o segundo contribuidor financeiro» da Missão. Recorda que por duas vezes o seu comando militar esteve entregue a oficiais superiores do Exército chinês: em 2007 ao Major General Zhao Jingmin e em Dezembro de 2016 ao Major General Wang Xiaojun. E chama a atenção para o facto de a diplomacia chinesa tentar conciliar o direito internacional com a realpolitik. «Não é possível abordar a actual posição da China relativamente ao Sahara Ocidental sem ter em conta as suas relações com Marrocos e a Argélia. (…) uma região – particularmente a ocupada pela POLISARIO – que aparece como economicamente pouco atractiva para os interesses de Pequim» e apresenta as estatísticas, retiradas do China Statistical yearbook (2012-2017), das relações comerciais China-Sahara Ocidental entre 2010 e 2017. Não nos é dito, porém, que universo é abrangido por estes dados. Em compensação, as ligações comerciais com Marrocos — o primeiro país do Magrebe a aderir, em Novembro de 2017, à iniciativa da ”Nova Rota da Seda” (“Belt and Road Initiative”) – têm vindo a crescer nos últimos anos, embora de uma forma ainda incipiente. Zhou cita o caso do Investimento Directo chinês (318 milhões de U$ dólares, valor de 2017), muito aquém dos três principais investidores estrangeiros: a França (21,8 mil milhões), os Emiratos Árabes Unidos (13,2 mil milhões) e a Espanha (5,24 mil milhões). Números que também nos ajudam a compreender a política destes países no processo de descolonização do Sahara Ocidental.
Mas a China tem tido o cuidado de manter laços com a Argélia, tendo-se tornado em 2013 o maior fornecedor do país, ultrapassando a França, sendo o seu 5º parceiro comercial no continente africano e o seu maior mercado para as empresas de construção chinesas naquele continente (em finais de 2017 haviam 61.491 trabalhadores chineses na Argélia, contra 627 em Marrocos).
Para Zhou, «na sua perspectiva de realpolitik, orientada pelos interesses, a China não vê na sua actual posição na questão do Sahara Ocidental qualquer problema nas suas relações, quer com Marrocos, quer com a Argélia.»
O sítio El Confidencial Saharaui abordou recentemente esta temática, sob o título: «A competição entre as potências globais está agora a ocorrer no Norte da África», um texto de Lehbib Abdelhay:
«Durante o seu mandato, o governo Trump colocou o conceito de competição estratégica com a República Popular da China (RPC), bem como com a Rússia, a um nível central da sua política externa, inscrevendo-o em vários documentos estratégicos. Essa abordagem foi também adoptada pelo novo governo Biden que parece ter reconhecido a necessidade de uma estratégia de "longo prazo" contra Pequim.
«Esta instabilidade tem naturalmente enormes implicações para os aliados da América, os quais têm todos relações com ambos os países. Nos últimos anos muitos deles tentaram equilibrar as duas relações, com vários graus de sucesso. Ainda assim, para alguns, esse equilíbrio está a tornar-se cada vez mais difícil de manter.
«Marrocos é um bom exemplo. Apesar dos seus laços políticos com Washington, o Reino tem tentado evitar envolver-se no que considera uma disputa estratégica bilateral entre os Estados Unidos e a China. As autoridades marroquinas às vezes até brincam, dizendo que Marrocos deveria reactivar o Movimento dos Não-Alinhados da era da Guerra Fria como uma forma de evitar a difícil escolha entre Washington e Pequim. A ansiedade de Rabat é especialmente compreensível, dado o crescente activismo económico da China em África, em geral, e os seus continuados investimentos nos últimos anos em Marrocos, em particular.
«No entanto, a estratégia económica mais ampla de Rabat está claramente a empurrá-lo na direcção oposta.
«Durante aproximadamente duas décadas, Marrocos aplicou uma abordagem comercial ambiciosa projectada para se transformar num centro de transbordo logístico chave para mercadorias que entram e saem da Europa, bem como um mediador de comércio em todo o continente africano. O produto dessa visão, concretizada pela primeira vez em 2002, é o porto e a zona industrial de Tanger-Med no norte do país.
«Localizada a cerca de 30 quilómetros a leste de Tânger, ao longo do Estreito de Gibraltar, Tanger-Med foi inaugurada em 2007 e desde então tornou-se um centro de comércio mundial. Hoje, Tanger-Med é o principal porto da África e do Mediterrâneo e o 24º porto de contentores do mundo.
«Actualmente opera quatro terminais independentes com capacidade para 7.000.000 de contentores/ano. Além disso, a construção de uma instalação adjacente, projectada para armazenar hidrocarbonetos para transbordo para a Europa Central e Oriental, está agora em andamento a cerca de 100 quilómetros a leste. Em particular, quando esse complexo, oficialmente conhecido como porto de Nador West Med, entrar em operação aproximadamente daqui a dois anos, terá o potencial de posicionar Marrocos como um antídoto potente para a profunda dependência actual da Europa da Rússia no que diz respeito às suas necessidades de energia.
«No entanto, Tanger-Med é muito mais do que um simples porto. É parte de uma "plataforma industrial" que se estende por 16 milhões de milhas quadradas e está projectada para integrar a cadeia de produção para as principais empresas globais adjacentes às rotas de exportação.
«A iniciativa foi classificada em segundo lugar de importância a nível mundial pelo Financial Times e abrange seis zonas distintas de actividade, incluindo uma zona de livre comércio, uma "cidade do automóvel" (dedicada à fabricação de peças) e a maior fábrica de automóveis de África, propriedade do fabricante francês Renault.
«Este empreendimento económico avassalador promete trazer grandes quantidades de novos negócios e investimentos a Marrocos nos próximos anos. De facto, as autoridades portuárias prevêem um aumento de novas actividades à medida que a pandemia diminuir e o comércio mundial recuperar.
«No entanto, essa mesma dinâmica pode tornar-se uma faca de dois gumes para Rabat. Nos Estados Unidos, o governo federal, o Congresso e o público em geral estão a prestar cada vez mais atenção ao desafio económico, político e estratégico representado pela China. Essa abordagem, por sua vez, foi ampliada pelo curso da pandemia do coronavírus, que expôs a dependência profunda (e doentia) dos Estados Unidos relativamente à China no quadro do comércio global e de bens vitais. À medida que os EUA começam a considerar seriamente "desvincular" as suas cadeias de abastecimentos globais da China, instalações versáteis como o Tanger-Med serão um apelo inevitável. Tudo isso tornará cada vez mais difícil para o governo marroquino ficar fora nos próximos anos da crescente competição global entre os Estados Unidos e a República Popular da China. Os funcionários de Rabat têm de entender essa nova dinâmica e preparar-se para ela.
«Por sua vez a Argélia, o seu rival histórico desde a “guerra da areia” em 1966, já tem um ambicioso projecto em andamento para construir o maior porto do Mediterrâneo, El Hamdania, em Tipaza.
«A Argélia quer reconquistar o seu lugar no sector marítimo a nível do Mediterrâneo e da África. No entanto, até agora, a maioria dos seus portos está inserida em centros urbanos, o que limita qualquer possibilidade de expansão da infra-estrutura.
«O projecto portuário de El Hamdania Center, na cidade costeira de Cherchell, província de Tipaza, na Argélia, já está em andamento. Durante o Conselho de Ministros de 28 de Fevereiro, o presidente argelino, Abdelmadjid Tebboune, fixou um prazo máximo de dois meses para se tomarem todas as providências necessárias ao efectivo início das obras.
«O megaprojecto, cujas obras estão previstas para sete anos, será financiado pelo Fundo Nacional de Investimentos (FNI) e um empréstimo de longo prazo do Exim Bank of China. Inclui três fases: o porto de águas profundas, as áreas de logística e industrial, bem como os acessos por rodovia e ferrovia. O seu custo está estimado em 3.300 milhões de U$ dólares.
«Considerada uma das “infra-estruturas marítimas mais importantes da região do Mediterrâneo e do continente africano”, este projecto teve início sob o mandato do ex-Presidente Abdelaziz Bouteflika.
«Em virtude de um memorando de entendimento concluído em 17 de Janeiro de 2016, a sua implementação foi confiada a uma joint venture constituída sob a lei argelina composta pelo Public Port Services Group e duas empresas chinesas, CSCEC (China State Construction Engineering Corporation) e CHEC (China Harbor Engineering Company). Esta joint venture, regida pela regra 51/49%, é responsável pela realização dos estudos, construção, operação e gestão desta infra-estrutura portuária.
«Para navios com um calado de 20 metros, este porto de águas profundas será construído não só para o comércio marítimo nacional, mas também como centro de comércio regional. Terá 23 docas com capacidade de processamento de 6,5 milhões de contentores e 25,7 milhões de toneladas/ano de carga geral.»
Dias depois voltaram ao tema, agora sob o título «A China considera a questão do Sahara Ocidental como uma questão completamente secundária», de onde seleccionámos os seguintes excertos:
«(...). Na sequência da intervenção, a 13 de Novembro, das Forças Armadas Reais de Marrocos (FAR) para assumir o controlo da passagem fronteiriça de El Guerguerat, o presidente da República Árabe Sarauí Democrática, Brahim Ghali, assinou um decreto que pôs fim ao compromisso da RASD com o acordo de cessar-fogo assinado em 1991. Situação que corre o risco de provocar uma conflagração generalizada nesta região, extremamente sensível para a estabilidade e segurança do Norte de África e do Sahel.
«Neste contexto, pode a China, que reforça cada vez mais as suas relações económicas e estratégicas com a Argélia e Marrocos, nomeadamente através do seu projecto da ”Nova Rota da Seda”, desempenhar um papel na união destes dois países com o objectivo de encontrar uma solução viável e aceitável para todas as partes no conflito no Sahara Ocidental?
«Em duas entrevistas concedidas à agência Sputnik, o ex-ministro argelino da Indústria e Comércio, Noureddine Boukrouh, também analista político com obra publicada, juntamente com o ex-coronel dos serviços de informação argelinos, Abdelhamid Larbi Chérif, afirmam que “Pequim não pode desempenhar esse papel” por várias razões.
«“A famosa profecia atribuída a Napoleão I, que alguns historiadores localizaram em 1816 em Santa Helena: 'Que a China durma, porque quando ela acordar o mundo tremerá', está a cumprir-se diante dos nossos olhos", lembra Boukrouh, sublinhando que "A China acordou, aqui estamos nós!"
«“A China ocupou o seu lugar no mundo moderno. É uma civilização milenar que tem contribuído para a marcha da humanidade ao longo da história e que muito tem feito em termos de civilização, cultura e descobertas”, continua, argumentando que “hoje, está a competir pelo lugar de primeira superpotência do mundo, à frente dos Estados Unidos.”
«Na mesma linha, o ex-ministro lembra que no Norte de África há dois países com um potencial significativo em termos de riquezas naturais e demográficas: a Argélia e Marrocos. "Como na Ásia, a China, que está a expandir-se em África até militarmente, como mostra a sua base no Djibouti, vendeu nos últimos anos muitas armas do mesmo tipo a Marrocos e à Argélia, simultaneamente."
«Noureddine Boukrouh acrescenta que “a China não tem escrúpulos, não se preocupa com questões de direitos humanos ou o direito dos povos à autodeterminação”.
«”Segue a política dos seus interesses e não busca a defesa de ideais universais, que não integram a sua visão do mundo e que considera prejudiciais à sua cultura e ao seu modo de conceber a política e as relações internacionais”, salientando que “está numa postura que serve a sua posição de Império do Meio”.
«Como apoio à sua visão, Boukrouh cita a abordagem diplomática da China no conflito israelo-palestiniano. "Como parte da sua rivalidade com os Estados Unidos, quando este saiu da região do Médio-Oriente, a China entrou com todo o seu peso e ofereceu-se para acolher Israel e a Autoridade Palestiniana para negociações de paz."
«“Como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, a China nunca votou contra Israel. Pelo contrário, sempre teve boas relações com o país, vende-lhe armas como vende ao seu pior inimigo, o Irão”, afirma: "fará exactamente o mesmo no Magrebe no que diz respeito à questão do conflito no Sahara Ocidental." Segundo ele, “os chineses consideram este conflito uma questão completamente secundária”.
«Por fim, Noureddine Boukrouh diz que “os chineses instalar-se-ão em Marrocos e na Argélia, mesmo no Sahara Ocidental, se a Frente POLISARIO os convidar, como parte de uma estratégia para conquistar novos espaços económicos e estratégicos vitais, sem que a questão da resolução do conflito figure na sua agenda.''
«“No contexto da grave crise económica e social que assola o mundo, agravada pelo impacto da pandemia de Covid-19, a Argélia e Marrocos precisam da China, que está disposta a emprestar dinheiro e a investir em muitos projectos estruturais [...]. É a sua forma de ver as coisas que se vai impor a estes países”, conclui. (...).»

MARROCOS: PRESSÃO CRESCENTE SOBRE A EUROPA

A crise que Marrocos abriu com a União Europeia no início deste ano tem tido a virtude de mostrar à opinião pública a verdadeira natureza do seu regime. Saibam agora os governos europeus tirar as devidas consequências do que se tem passado.

Relações em crise
O cálculo da diplomacia marroquina talvez tenha sido o de que, entre o tweet de Donald Trump (Dezembro de 2020) e o acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia relativo aos acordos comerciais entre a UE e Marrocos (esperado para fim de Junho / início de Julho próximos), com o reinício da guerra (Novembro passado) em pano de fundo, haveria uma janela única de oportunidade para fazer avançar o reconhecimento das pretensões de Rabat sobre o Sahara Ocidental, de modo a condicionar ainda mais o papel da ONU e do Direito Internacional na resolução do conflito. Uma espécie de “agora ou nunca” levado à letra.

O parceiro fiável que desfere golpes baixos

Ao longo de décadas, de forma renovada depois da coroação de Mohamed VI (1999) e outra vez há pouco mais de 10 anos por ocasião do movimento conhecido como “primavera Árabe” (que se iniciou com o “Acampamento da Dignidade” em Gdeim Izik, Sahara Ocidental ocupado, Outubro 2010), o Reino de Marrocos tem sido apresentado como o fiel amigo das potências ocidentais. É o compromisso que o impede de cair em extremismos, dizia-se, e que impulsiona uma tendência para a moderação religiosa e para os pequenos progressos sociais, ao mesmo tempo que protege a Europa de grandes flagelos, como a migração ilegal, a expansão do terrorismo e o afluxo de drogas. Uma preciosidade.
Em cinco meses a diplomacia marroquina desencadeou processos de enorme agressividade e arrogância para com os seus protectores europeus, demonstrando uma total indiferença para com as vidas dos cidadãos e cidadãs do seu próprio país. O resultado ficou à vista em Espanha: nove em cada dez espanhóis consideram que Marrocos não é um "parceiro leal e fiável" para Espanha, de acordo com o Inquérito DYM para o periódico 20 minutos. Apenas 3,1% dos inquiridos vêem Marrocos como um parceiro de confiança e os restantes 7,9% não sabem ou não respondem.
No campo das migrações, Marrocos recebeu, desde 2019, 242 milhões de euros da UE para conter as pessoas que desejam ardentemente emigrar, sejam marroquinas ou da África sub-sahariana. Só a Espanha contribuiu no mesmo período com 72 milhões de euros para o mesmo fim. Na senda de experiências anteriores em momentos precisos de “irritação” com Madrid, as polícias de fronteira empurraram para Ceuta cerca de 10.000 migrantes entre 17 e 19 de Maio, em grande parte marroquinos, em grande parte menores de idade, tendo muitos deles corrido perigo de vida para conseguir alcançar solo sob administração europeia. Um movimento sem precedentes, que apanhou a Espanha de surpresa e originou uma enorme pressão interna, social e política. O pretexto foi o acolhimento num hospital espanhol, enquanto gesto de natureza humanitária, do Secretário-geral da Frente POLISARIO e Presidente da RASD, Brahim Ghali, gravemente doente com COVID-19. A acção foi de tal modo desproporcionada que o governo de Espanha e a União Europeia reagiram com mais firmeza e dureza do que o habitual e o lado marroquino acabou por repor o controlo da fronteira ao fim de 48 horas. Mas as ondas de choque prosseguem, a política migratória da UE ficou mais uma vez em cheque, milhares de migrantes estão a ser “devolvidos à procedência”, crianças e jovens não acompanhados a serem distribuídos por várias partes do país (enquanto muitas famílias em Marrocos os procuram) e a acrimónia entre Madrid e Rabat não pára.
No dia 31 de Maio o MNE marroquino emitiu um comunicado no qual reconhece que «A crise não se limita a um homem. Não começa com a sua chegada nem terminará com a sua partida.» E requer «um esclarecimento, sem ambiguidades, por parte de Espanha sobre as suas escolhas, as suas decisões e as suas posições [relativamente ao Sahara Ocidental]». Acrescenta, no entanto, referindo-se ao problema catalão e esquecendo que as duas reivindicações referendárias não se podem de modo nenhum comparar no contexto internacional: «Não podemos lutar contra o separatismo em casa e fomentá-lo em casa do vizinho». Um argumento que já tinha sido utilizado quando Rabat anunciou, no final de Abril, que decidira conceder asilo político a Carles Puigdemont (exilado em Bruxelas), com base num «princípio de reciprocidade» relativamente ao acolhimento de um «líder independentista». Pedro Sánchez, reiterando a importância das relações bilaterais entre os dois países, reage horas depois: «Não é admissível que haja um governo que diga que se atacaram as fronteiras (…), que se abriram as fronteiras para que entrassem 10.000 imigrantes em menos de 48 horas numa cidade espanhola como Ceuta por desavenças, diferenças e discrepâncias de política externa.» O MNE marroquino não desarma e emite um segundo comunicado no mesmo dia: «Marrocos insistiu repetidamente que a crise bilateral não está vinculada à questão migratória. (…). A questão migratória não deve utilizar-se como pretexto para desviar a atenção das verdadeiras causas da crise bilateral». Esperam-se os episódios seguintes...
Numa entrevista dada pelo director do Escritório Central de Investigação Judicial de Marrocos, Habboub Cherkaoui, a 26 de Maio, este anunciou o encerramento de toda a cooperação policial em matéria de segurança e informação antiterrorista com a Alemanha. O que aconteceu seis dias depois de a revista alemã Stern ter publicado a seguinte notícia: «O facto de o governo alemão ter uma avaliação diametralmente diferente da de Trump sobre a reivindicação da soberania de Marrocos [sobre o Sahara Ocidental] já levou a uma crise diplomática entre Rabat e Berlim em Março. Na altura, a contra-informação alemã decifrou actividades dos serviços secretos marroquinos que poderiam estar ligadas a assassinatos planeados». Esta ameaça, que mais uma vez apanhou Berlim desprevenida, seguiu-se à cessação unilateral, desde 1 de Março, das relações de todos os organismos governamentais marroquinos com a embaixada alemã em Rabat e com as fundações alemãs que operam no país e a chamada a Marrocos da sua embaixadora na Alemanha para consultas, no início de Maio. Tudo apesar de, em Dezembro último, Berlim ter desbloqueado 1.387 milhões de euros em apoio financeiro a Marrocos e de o ministro marroquino dos Negócios Estrangeiros, Nasser Bourita, ao encontrar-se com o ministro alemão da Cooperação Económica, Gerd Müller, ter elogiado «a excelência da cooperação entre os dois países».
Na entrevista com Cherkaoui, o dirigente marroquino fez questão de dizer que a cooperação no domínio da segurança com Espanha estava «ameaçada». Não foi a primeira vez que Rabat utilizou esta arma. Como lembra Ignacio Cembrero num artigo de 30 de Maio, «Rabat cortou a cooperação antiterrorista com Paris e a espionagem francesa vingou-se recorrendo ao twitter para desvendar centenas de documentos confidenciais marroquinos». Foi em 2014 e a reacção de Rabat seguiu-se à interpelação, na residência do embaixador marroquino, de Abdellatif Hammouchi, chefe da Direcção Geral de Supervisão Territorial, acusado de tortura por dois marroquinos residentes em França e um saharaui preso em Salé. «Uma juiza queria ouvir as suas declarações. Ele recusou e fugiu rapidamente antes que a magistrada ordenasse a sua detenção.» No mesmo dia, um comunicado anunciou que Mohamed VI tinha decidido cortar a cooperação judicial com Paris. «Também suspenderam a cooperação anti-terrorista, embora Rabat não tenha tornado pública esta segunda decisão. Nessa altura, a França estava a ser atingida pelo terrorismo e muitos dos ataques foram perpetrados por europeus de origem marroquina.»
A pressão sobre a França é hoje mais discreta, como se subentende de um episódio recente. Quando o partido de Emmanuel Macron, La République em Marche, anunciou que abriria uma representação em Dakhla, no Sahara Ocidental ocupado, numa pálida réplica do movimento de abertura de consulados de vários países promovido por Marrocos nos últimos dois anos como forma de demonstração do “reconhecimento” de que se trata de um território marroquino. A situação gerou em Paris uma discussão parlamentar acesa na qual o Secretário de Estado da Cooperação francês teve de reafirmar que o seu governo não tinha mudado de posição e continuava a considerar o Sahara Ocidental como um território não-autónomo, pendente de um processo negocial liderado pela ONU. Acrescentando a seguir: no âmbito do qual a solução mais realista é a da proposta de autonomia avançada por Marrocos. Alguns dias depois, a embaixadora francesa em Rabat, Helène le Gal, veio esclarecer o ponto de vista oficial: «Os consulados estão extremamente ligados à questão do número de Franceses e muito poucos vivem no Sahara. É verdade que há algumas centenas que trabalham no sector do turismo, mas isso não justifica a criação de um consulado.»

A crise que visibiliza

O inédito da situação está em que a política externa agressiva de Marrocos se dirige agora a mais de um país em simultâneo, e utiliza vários instrumentos ao mesmo tempo. O que leva a um maior escrutínio, na tentativa de compreender o que produz este surpreendente efeito.
Dois títulos de artigos mais recentes na imprensa espanhola são sugestivos. Em «Mohamed VI: da grande esperança à grande decepção de Marrocos» o jornal digital El Independiente destaca o carácter pessoal do rei, amigo de luxos e festas e enfadado com a governação, que passa a maior parte do tempo no estrangeiro e ousa ausentar-se sem explicações de compromissos protocolares com governantes de países de primeira importância; detalha a enorme riqueza do monarca, que a revista Forbes tem considerado como um dos 10 mais ricos do mundo; e chama a atenção para «a modernidade que nunca chega», numa alusão às expectativas geradas aquando da sua subida ao trono. Diz um artigo de opinião no jornal ABC, «Marrocos, desmascarado»: «o regime marroquino uniu-se ao grupo, nada honroso, de déspotas para quem a vida humana é indiferente e cujos compromissos internacionais não valem nada.»
Mas o mais significativo do ponto de vista político é o editorial do Le Monde, diário do país que protege sistematicamente Marrocos: «Crise dos migrantes em Ceuta: é tempo de abandonar uma certa ingenuidade no olhar com o qual vemos Marrocos». «O episódio [de Ceuta] projectou uma luz crua sobre a verdadeira natureza do regime marroquino», conclui a introdução ao texto. E segue: «Marrocos não tinha habituado os Europeus, em geral mais benevolentes a seu respeito, a comportar-se como o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, ou o ex-guia líbio Mouammar Kadhafi que, em épocas diferentes, não hesitaram em utilizar a arma migratória no Mediterrâneo para pressionar a Europa. (…). A reputação internacional de Marrocos sai fortemente degradada». O editorial lembra que o capital diplomático de Rabat «ocultou por demasiado tempo nas chancelarias a realidade de um poder que [demonstra] uma inquietante regressão autoritária, como o testemunham as prisões de jornalistas e intelectuais críticos. Um deles, Soulaiman Raissouni, está actualmente em perigo de vida, em greve de fome». À mesma conclusão tinha chegado o Conselho Editorial do The Washington Post quando titulou a 30 de Abril: «Os jornalistas detidos em Marrocos merecem a atenção da administração Biden».

O NERVOSISMO MARROQUINO FACE À AMBIGUIDADE NORTE-AMERICANA

No rescaldo da administração cessante, face à cautela para não dar passos em falso no dossier Marrocos-Sahara Ocidental, urge que o presidente Joe Biden ultrapasse o clima de pré-caos deixado na agenda politico-diplomática por parte de Trump.

Da dificuldade de voltar atrás
Em diplomacia, “meias-medidas” desagradam a muitos e esta situação aplica-se certamente à recusa da administração Biden em assumir uma posição clara sobre a soberania marroquina no Sahara Ocidental.
Em Dezembro passado, o ex-presidente Trump anunciou o fim de meio século de oposição norte-americana ao reconhecimento da reivindicação de Rabat sobre o território saharaui. O anúncio, no entanto, foi recebido com cautela por parte de Marrocos, uma vez que havia incerteza sobre a posição do próximo ocupante da Casa Branca face a este assunto diplomático candente. Até agora Biden tem recusado tomar uma decisão, não endossando a prévia nem a contrariando. Na verdade, a empurrar com a “barriga para a frente” a sua decisão.
Se por um lado Marrocos se encontra aliviado pelo facto da controversa decisão da administração Trump não ter sido revogada, por outro inquieta-se com declarações do Secretário de Estado Antony Blinken, nomeadamente a de 27 de Janeiro último, através das quais o governo norte-americano não se comprometeu em definitivo com a “moeda de troca do Sahara”, face ao restabelecimento de relações diplomáticas entre Marrocos e Israel. Após a conversação bilateral ocorrida no início de Maio, entre o referido Secretário de Estado e o Ministro dos Negócios Estrangeiros marroquino, Nasser Bourita, mantém-se este status quo.
Estas declarações têm sido acompanhadas, aparentemente, por manifestações e actos contraditórios. Por um lado, o relatório anual de direitos humanos do Departamento de Estado, de Março último, não considerava o Sahara Ocidental num capítulo separado, como era usual, mas colocava-o como parte do capítulo dedicado a Marrocos, com os mapas a mostrarem o território como parte de um “grande Marrocos“. Por outro, em Abril passado, Blinken instou as Nações Unidas a nomear um novo Enviado Pessoal do Secretário-geral para o Sahara Ocidental e pediu o retomar das negociações entre o governo marroquino e a Frente POLISARIO, sugerindo assim que considera o assunto não resolvido e sob a alçada da ONU.
Igualmente em sentido contrário aos esforços e às declarações do governo de Rabat (ou ausência delas…), no passado dia 1 de Maio Washington confirmou o clima que paira no Sahara Ocidental como “de guerra” e afirmou estar a realizar contactos com as partes em conflito, a fim de ultrapassar o impasse existente.
Nesta teia de declarações e actos aparentemente contraditórios, Marrocos tem procurado pressionar os EUA e confundir a opinião pública anunciando como efectivas situações que são a seguir desmentidas. Aconteceu por mais de uma vez com o suposto endosso por parte da administração Biden da decisão de Trump, que o Departamento de Estado teve de relembrar que não correspondia à verdade, visto que o assunto se mantinha em estudo. Voltou a suceder a propósito dos exercícios militares conjuntos do Comando dos Estados Unidos para África (AFRICOM) e de Marrocos, Tunísia e Senegal (denominados “Leão Africano 2021”), que decorrerão de 7 a 18 de Junho, envolvendo mais de 5.000 militares de nove nações: o próprio Primeiro-ministro marroquino insistiu até ser claramente desmentido de que se desenrolariam em parte no território do Sahara Ocidental.
Subsequente a este processo, é improvável que Rabat aceite a “normalização completa” de relações diplomáticas com Israel até obter confirmação da não reversão da posição de Trump por parte de Washington. A ambivalência que se vive na política externa norte-americana não encoraja igualmente esta consolidação: por um lado, a maioria dos representantes democratas apoia a aproximação diplomática entre Israel e Marrocos e, por outro, o presidente Biden defende um retorno à “ordem internacional baseada em regras” que a administração Trump abandonou.
É neste contexto que se torna significativo o facto de em Fevereiro passado 27 senadores americanos (democratas e republicanos) terem instado o presidente Biden a reverter a decisão de Trump de Dezembro de 2020. Numa missiva liderada pelo republicano Jim Inhofe e pelo democrata Patrick Leahy, esses representantes qualificaram a reivindicação de Marrocos face ao Sahara Ocidental de "ilegítima", afirmando que a mesma minou décadas de «política americana coerente e que deteriorou o relacionamento com um número significativo de nações africanas».
Também no seio do lobby pró-israelita americano, bem como em Israel, este desenrolar é atentamente seguido face à expectativa deste último em reforçar o diálogo com o Estado do Norte de África. Fontes israelitas receiam que a reversão da decisão de Trump leve Marrocos a abster-se de os fortalecer.

 


 

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