quinta-feira, 8 de abril de 2021

Boletim nº 95 - Abril 2021

A CORAGEM DE AFRONTAR A REPRESSÃO SILENCIADA

A repressão exercida pelo regime marroquino sobre a população saharaui extremou-se desde Novembro do ano passado. As denúncias desta situação e os apelos à intervenção, quer das Nações Unidas, quer de organismos internacionais como a Cruz Vermelha, têm-se multiplicado. Com pouco eco.

Sultana Jaya sob ameaça (espacioseuropeos.com)

A AAPSO foi uma das organizações que chamou a atenção para a situação que se vive nos territórios ocupados do Sahara Ocidental. Preocupação que, neste momento, não se restringe às organizações da sociedade civil. O Ministério dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido deu conta que o governo britânico acompanha a situação, «especificamente a relacionada com a defensora dos direitos humanos saharauí, Sultana Sid Ibrahim Jaya».
O diário El Pais publicou um artigo do seu correspondente em Rabat, Francisco Peregil, onde é abordada a situação dos que enfrentam o regime marroquino e as consequências dessa coragem. E nesse combate contra este regime retrógrado estão unidos marroquinos e saharauis. Traduzimo-lo a seguir na íntegra.
«Activistas saharauis denunciam um aumento da "repressão" por parte das autoridades marroquinas no Sahara Ocidental desde 13 de Novembro. Nesse dia houve uma troca de tiros entre o exército marroquino e membros da Frente POLISARIO na zona saharaui de El Guerguerat que quebrou o cessar-fogo estabelecido por ambas as partes desde 1991. A Frente POLISARIO decretou o estado de guerra e, desde então, vários activistas alertam para a vigilância de agentes marroquinos sobre as suas casas e a limitação dos seus movimentos no Sahara Ocidental.
A organização internacional Human Rights Watch (HRW) investigou o caso de Sultana Jaya, uma activista de 40 anos cuja casa na cidade de Bojador, no Sahara Ocidental, está sob vigilância pelas autoridades marroquinas há mais de três meses, de acordo com um comunicado da ONG divulgado no último dia 5. Isso indica que as forças da ordem impediram “sem qualquer justificação” que várias pessoas a visitassem na sua casa. Esta vigilância e a “violação do direito de associação na própria casa”, segundo a HRW, são “emblemáticas da intolerância” das autoridades de Rabat aos apelos à autodeterminação no Sahara Ocidental. A HRW solicitou informações sobre o caso à Delegação Interministerial de Direitos Humanos (DIDH) e este órgão respondeu por carta que "nem ela nem a sua família estão a ser submetidas a qualquer tipo de assédio ou vigilância".
Jaya disse a este jornal numa conversa telefónica no dia 5 que a sua casa, onde mora com a irmã, a mãe e outro activista, está sob vigilância desde 19 de Novembro de 2020. “Tornou-se numa prisão onde ninguém pode entrar ou sair”. Garante que mais de 20 pessoas a vigiam regularmente, com e sem uniforme. "Estamos em prisão domiciliária há 108 dias", disse ela. “Cada vez que tentamos sair ou documentar o que estamos a sofrer, somos vítimas de agressões físicas, humilhações e insultos”. Jaya afirma também sofrer uma “feroz campanha de difamação” nas redes sociais e nos meios de comunicação do Estado marroquino.
A HRW indica que, desde 19 de Novembro, Jaya deixou a sua casa "menos de uma dezena de vezes", para andar alguns metros, filmar membros das forças de segurança com o seu telemóvel e depois voltar para casa. Especifica que apenas uma vez se aventurou a caminhar 150 metros além de sua casa. Segundo contou a activista à organização, vários agentes cercaram-na naquele momento. “Não me prenderam nem me tocaram, mas senti-me ameaçada, temi pela minha vida e voltei para casa”, disse ela.
“PRESSIONAR” OS OPOSITORES
Eric Goldstein, responsável da HRW para o Médio Oriente e o Norte de África, destacou no referido comunicado que nada justifica o bloqueio de uma casa sem base legal. Para Goldstein, a vigilância sobre Jaya visa pressionar, "psicologicamente também", aqueles que se opõem à soberania marroquina sobre o Sahara Ocidental.
O activista saharaui El Mami Amar Salem, de 42 anos, contou-nos numa conversa telefónica a partir da cidade de Dakhla, no sul do Sahara Ocidental, que no dia 18 de Fevereiro foi impedido de viajar para o Bojador, a três horas e meia de carro, por causa da polícia que o deteve com outro amigo. “Queríamos visitar Sultana [Jaya] para lhe mostrar a nossa solidariedade. A polícia já nos esperava no primeiro controle da cidade, acompanhada por agentes dos serviços de segurança. Pediram-nos a documentação do carro. E depois de duas horas e meia de espera, devolveram a documentação e impediram-nos de seguir”.
Um dos porta-vozes do grupo de jornalistas saharauis Equipe Media, que pede o anonimato, indica de El Aaiún que desde 13 de Novembro passado, "quando Marrocos quebrou o cessar-fogo", uma vintena de saharauis viram as suas casas serem colocadas sob vigilância durante dois meses. Todos eles residem em El Aaiún, a capital administrativa do Sahara Ocidental. “Entre eles encontrava-se a activista Aminatu Haidar. Agora, esses activistas continuam a ser vigiados, mas não por 24 horas; não como a Sultana”, diz a fonte citada.
A activista El Ghalia Djimi, de 60 anos, tem uma mensagem em espanhol no seu perfil no WhatsApp que diz: “Somos todos Sultana Jaya”. De El Aaiún, garante por telefone que várias viaturas policiais rodearam a sua casa no dia 6. Refere ainda que na passada segunda-feira, Dia Internacional da Mulher, em que várias mulheres saharauis se manifestaram em El Aaiún, foi seguida por uma motocicleta das oito da manhã até às duas da tarde.
Djimi afirma ter estado debaixo de "vigilância e perseguição policial" durante três meses, desde que a 20 de Setembro participou na criação da Instância Saharaui contra a Ocupação Marroquina [ISACOM]. “Tenho vídeos e matrículas dos carros que me seguiram. Deixaram de me perseguir desde 25 de Dezembro. Mas daquele dia em diante abriram um café ao lado da minha casa e os informadores marroquinos aparecem todas as tardes a fingir que estão a jogar. Reconhecemo-los porque, embora usem roupas civis, comunicam via rádio”.
Djimi explica que, se os activistas saharauis não reivindicam a autodeterminação, a situação pode parecer perfeita, “apesar da presença militar e policial nas ruas”. “Mas, assim que uma pessoa tenta falar, já sabe que a discriminação, a intimidação e a marginalização económica a aguarda. É o que acontece com Sultana e a sua família. Sou uma defensora pacífica dos direitos humanos e da autodeterminação do Sahara. Marrocos não deve obrigar-nos a aceitar a ocupação. Tem que ter a coragem de convencer os saharauís da sua presença no Sahara ocupado”.
A organização estatal Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), equivalente em alguns aspectos à instituição espanhola do Provedor de Justiça, foi consultada por este jornal sobre a situação no Sahara Ocidental a partir de 13 de Novembro. Uma porta-voz referiu-se a um breve comunicado que o CNDH publicou depois de Sultana Jaya ter denunciado nas redes sociais ter sido ferida numa vista em Fevereiro devido a uma pedra atirada por um polícia. O comunicado conclui dizendo que, devido às "versões contraditórias" sobre o ocorrido, o CNDH enviou uma carta ao Ministério Público na qual recomendava a realização de uma investigação sobre os factos denunciados. Este jornal tentou, sem sucesso, obter a versão das autoridades marroquinas através dos Ministérios do Interior e da Comunicação.
PROTESTO A FAVOR DE UM INTELECTUAL MARROQUINO PRESO DISPERSO PELA POLÍCIA
Polícias marroquinos dispersaram um protesto em frente ao Parlamento em Rabat na tarde de sexta-feira [5 de Março], no qual cerca de 50 manifestantes pediram a libertação do historiador e activista marroquino Maati Monjib, de 60 anos. Abdellatif El Hamamouchi, presidente da comissão de apoio ao intelectual, disse a este jornal que várias pessoas ficaram feridas. "Entre elas, eu, numa perna", disse.
Monjib está em greve de fome desde quinta-feira, 4 de Março, com o objectivo de lançar um "apelo de socorro" à opinião pública face à "perseguição e injustiça" que declara sofrer do Estado, de acordo com uma carta divulgada pelos seus advogados.
O historiador está preso desde 29 de Dezembro, acusado de "fraude e atentado à segurança do Estado". Monjib declara-se inocente e ressalta que a verdadeira causa da sua prisão são os seus artigos de crítica ao Estado.
A dispersão do protesto pelas forças da ordem foi filmada e divulgada nas redes sociais. Monjib cumprirá 11 dias de greve de fome nesta segunda-feira [15 de Março]. "Receamos pela sua vida", disse Hamamouchi. “Ele é diabético e sofre de arritmias cardíacas. Já perdeu cinco quilos. E disse aos seus advogados que não vai desistir da greve de fome".»
Face ao movimento internacional de solidariedade o historiador marroquino acabou por ser libertado no passado dia 24 de Março. Foi, entretanto, para a Alemanha por motivos de saúde onde confirmou à comunicação social as perseguições que sofreu por parte das autoridades de Rabat.

 

O CONFLITO DIPLOMÁTICO MARROCOS-ALEMANHA: SÓ “MAL-ENTENDIDOS”?

No dia 1 de Março o Ministério dos Negócios Estrangeiros marroquino suspendeu os contactos com a embaixada da Alemanha em Rabat. No dia seguinte, o respectivo ministro, Nasser Bourita, dirigiu uma carta à chefe do governo alemão onde justifica esta decisão com os «profundos mal-entendidos (...) sobre questões fundamentais para o Reino de Marrocos».

Mal-estar visível

«O ministro marroquino dos Negócios Estrangeiros exortou o governo e todas as suas representações a "suspender todos os contactos" com a embaixada alemã em Rabat. Bourita indica que "os departamentos ministeriais e todos os organismos sob a sua supervisão são solicitados a suspender todo o contacto, interacção ou acção cooperativa, em qualquer caso ou de qualquer forma, tanto com a embaixada alemã em Marrocos como com as organizações de cooperação alemãs". As excepções requerem um acordo prévio explícito do Ministério dos Negócios Estrangeiros.»
A imprensa alemã, na reacção à notícia, refere o papel que a questão do Sahara Ocidental desempenhou nesta decisão. O diário Der Spiegel cita um alto funcionário da diplomacia marroquina que inclui o conflito na justificação desta medida. O diplomata fala, também, da “indiferença” com que a Alemanha reagiu ao reconhecimento pelos Estados Unidos da soberania marroquina sobre o território. O jornal invoca igualmente o incómodo de Marrocos por não ter sido convidado para a conferência internacional sobre a Líbia realizada em Berlim. O que voltou a acontecer na «segunda reunião do Grupo de Apoio à Transição no Mali, que é integrado pelo Grupo dos Cinco Países do Sahel (Mali, Mauritânia, Chade, Burkina Faso e Níger), Argélia, ONU e Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental / CEDEAO.», também realizada na capital alemã. O MNE Bourita, contactado pelo diário, recusou comentar o ocorrido.
«O Ministério dos Negócios Estrangeiros da Alemanha disse, em nota divulgada pela televisão pública alemã Deutsche Welle DW, que convocou hoje, 3ª feira [2 de Março] a embaixadora marroquina em Berlim, Zohour Alaoui, para uma reunião urgente para explicar os motivos da suspensão por parte do MNE de Marrocos de todos os contactos diplomáticos com a Embaixada da Alemanha em Rabat.»
Os “mal-entendidos” terão, provavelmente, começado com a renúncia de Horst Köhler ao cargo de Enviado Pessoal do Secretário-geral da ONU para a questão do Sahara Ocidental. Na altura, Maio 2019, o ex-presidente da República da Alemanha invocou razões de saúde para a sua decisão mas houve sectores da comunicação social marroquina que se vangloriaram do papel de Marrocos no estado de “saúde” de Köhler. Os governantes alemães não terão apreciado este desfecho, tanto mais que Köhler tinha conseguido voltar a sentar à mesa de negociações as duas partes. Aliás, o International Crisis Group no seu Briefing nº. 82 de 11 de Março de 2021 alertou para as condições que Marrocos terá imposto para a nomeação do substituto de Horst Köhler. Percebendo que era difícil "enfrentar Berlim", Rabat não quer voltar a ter um alemão no cargo.
A dessintonia entre os dois países ficou igualmente patente quando
«Em 21 de Dezembro a Alemanha convocou uma reunião [à porta fechada] do Conselho de Segurança da ONU para discutir a decisão do ex-presidente dos EUA, Donald Trump, sobre o reconhecimento do Sahara Ocidental como território marroquino.
«A declaração do representante alemão junto da ONU, Christoph Heusgen, após esta reunião de emergência reafirma a centralidade do processo da ONU e distancia-se da iniciativa americana. E endossa a Marrocos o fracasso do processo de referendo organizado pela ONU no início dos anos 1990, quando afirma que “10.000 colonos foram transferidos por Marrocos para a região que ocupava”. Para Berlim, as transferências de marroquinos para o Sahara Ocidental para serem incluídos no eleitorado estão na origem do atolar do processo do referendo. (…).
«A Alemanha responsabiliza Marrocos pelo fracasso na realização de um referendo, mas, mesmo assim, continua a manter uma cooperação muito activa com Marrocos. Repete que é o seu melhor aliado na região e que é um país amigo com o qual não deixa de ser generosa e solidária. A título de prova, a 2 de Dezembro de 2020 (...) Berlim disponibilizou um envelope de 1,387 mil milhões de euros de apoio financeiro, dos quais 202,6 milhões de euros sob a forma de donativos e o restante sob a forma de empréstimos subsidiados, em apoio às reformas do sistema financeiro marroquino e à luta contra a Covid-19.»
A Alemanha não está sozinha nesta política de duplicidades.
«Desejosa de preservar o seu estatuto de maior parceiro comercial de Marrocos, a UE tem o prazer de olhar para o lado enquanto as empresas europeias fazem negócios no Sahara Ocidental, especialmente em fosfatos, pesca e, mais recentemente, energia verde. Isto, apesar de várias decisões do Tribunal de Justiça Europeu de que os acordos comerciais da UE com Marrocos não se aplicam ao Sahara Ocidental, uma vez que o consentimento dos saharauis não foi obtido. Recentemente, em 2018, o TJUE determinou que um acordo de pesca UE-Marrocos só seria válido “na medida em que não fosse aplicável ao Sahara Ocidental e às suas águas adjacentes”.
«A resposta da UE foi enviar uma missão de averiguação do Parlamento Europeu para “consultar” alguns grupos saharauis aprovados por Marrocos e alegar que o seu consentimento era suficiente para cumprir o padrão estabelecido pelo tribunal. Este truque permitiu que a UE alegasse que os acordos com Marrocos permitem explorar os recursos do Sahara Ocidental sem implicar “qualquer forma de reconhecimento da soberania de Marrocos sobre o Sahara Ocidental”.
«Isso pode explicar por que a Alemanha pensou que poderia safar-se com algum sinal de virtude barato em resposta à decisão de Trump, enquanto uma unidade da Siemens AG podia celebrar uma grande encomenda de turbinas eólicas "no sul do Marrocos" - um eufemismo para o Sahara Ocidental.
«Mas Rabat já não se satisfaz com estas exibições espalhafatosas de prestidigitação diplomática.»
«Desde o passado dia 18 de Março, segundo a imprensa marroquina, Bourita iniciou uma série de aproximações aos países da Europa Central com o objectivo de "estabelecer relações bilaterais e apoiar a integridade territorial". Os países escolhidos foram três: Polónia, Hungria e Áustria. (…). Neste sentido, a empresa polaca flyARG, do sector aeronáutico e especializada na construção de helicópteros ultra-leves, anunciou que vai investir ilegalmente no Sahara Ocidental, infringindo as leis do direito europeu e internacional.»
Como escreveu Nestor Prieto, estudante de Ciência Política na Universidade de Salamanca,
«O conflito no Sahara Ocidental é multidisciplinar. A guerra que se seguiu à ocupação marroquina (1975-1991) desenrolou-se em paralelo com uma batalha diplomática constante, por vezes mais dura e com consequências mais nefastas do que a que se trava no campo militar. (...).
«A monarquia alauita sempre teve o apoio próximo da França, que tem o seu principal foco de influência no continente africano em Marrocos e tem fomentado uma cumplicidade mútua em política internacional. A França, tanto com governos social-democratas como republicanos ou liberais, vetou no Conselho de Segurança da ONU todas as iniciativas contrárias aos interesses do seu parceiro, destacando-se o veto que, em 2013, impediu a MINURSO de monitorizar as violações de direitos humanos no território.
«Na UE, Marrocos tem combinado a vulgar diplomacia com métodos novos e sofisticados de pressão e influência. O Sahara Ocidental é "a prioridade" da política externa do país e do seu corpo diplomático, que pressiona politicamente os Estados ao mesmo tempo que oferece excelentes contratos económicos para a exploração dos recursos naturais nos territórios ocupados. Além disso, a UE aproveita-se dos baixos custos da mão-de-obra e dos preços baixos em Marrocos para a aquisição de matérias-primas, sendo um dos principais importadores de fruta, legumes e peixe.
«Soma-se a isso a migração e o narcotráfico, dois elementos que Marrocos controla com mão de ferro e cujo fluxo para a Europa oscila conforme o cenário político. A geografia permite isso. Assim, em determinados momentos, o reino alauita facilita o tráfico como forma de pressão contra os países europeus. (...). Desde o regresso da guerra ao Sahara Ocidental, a chegada de migrantes às Ilhas Canárias (partindo das cidades do Sahara ocupado) aumentou em quase 700% em relação a 2019, de acordo com o Ministério do Interior espanhol, tendo-se tornado a mais letal rota de todas as existentes para tentar entrar na UE. Cerca de 3.000 pessoas morreram em menos de seis meses.
«A este factor acresce a inteligente política económica marroquina, que também por meio do seu corpo diplomático oferece contratos económicos vantajosos a governos, empresas e multinacionais europeias para fazer negócios nos territórios ocupados. Como exemplo, destacam-se a Siemens, (...), o Deutsche Bank, (…).
«A exploração do sector da energia - construção de parques eólicos e fotovoltaicos -, a dos fosfatos - extracção e distribuição -, da construção - para as imensas necessidades logísticas do território - ou da pesca são tremendamente lucrativas e um dos principais argumentos utilizados por Marrocos para que a Europa reconheça a sua soberania sobre o Sahara.
«Paralelamente a este trabalho político e económico, levado a cabo pelas Embaixadas e Consulados, Marrocos investe somas significativas de dinheiro na criação de think tanks e lobbies. Uma prática que ocorre em todo o mundo. (…). Na Europa, esse trabalho de bastidor ganhou maior visibilidade desde o reinício da guerra: presença nos meios de comunicação social [caso do Diário de Notícias], reuniões com ex-autoridades ou prebendas de diferentes níveis a governos.»

 

 

CONSELHO DE PAZ E SEGURANÇA DA UNIÃO AFRICANA: UM FRACASSO PARA MARROCOS

Decorreu no passado dia 9 de Março, sob a égide do presidente do Quénia Uhuru Kenyatta, a vídeo-conferência do Conselho de Paz e Segurança da União Africana (CPS), para análise da situação no Sahara Ocidental
1
Marcada na sequência da decisão da Cimeira da UA, "Silenciar as armas", realizada em 6 de Dezembro de 2020.
. Não correu de feição a Marrocos.

Um ”não-evento” para Marrocos

Embora não fazendo parte do Conselho, tanto a República Árabe Saharaui Democrática (RASD) como Marrocos foram convidados a juntar-se à reunião e a apresentar as suas posições, criando assim as condições para um novo cessar-fogo e o regresso à mesa de negociações com vista à obtenção de uma solução que permita ao povo saharaui determinar o seu destino em conformidade com as decisões pertinentes da UA e da ONU.
Marrocos, que recusou estar presente, não encontraria na reunião um ambiente diplomático favorável às suas pretensões. Diversos representantes, como o MNE do Egipto Sameh Shoukry, enfatizaram a importância das resoluções da UA e do Conselho de Segurança da ONU para alcançar uma solução política na disputa do Sahara Ocidental. Foi também o caso do Presidente da Argélia, Abdelmadjid Tebboune, que apelou à coordenação dos esforços africanos para estabelecer uma solução duradoura para o conflito, tendo afirmado que «o fracasso do cessar-fogo após a violação do acordo em vigor desde 1991 e a perigosa escalada do conflito são apenas o resultado de décadas de bloqueio sistemático e de abrandamento dos Planos de Resolução para contornar o processo de negociação e de tentativas recorrentes para impor um facto consumado a um Estado membro fundador da UA [a RASD]».
O CPS manifestou-se assim contra as reivindicações territoriais marroquinas, pois estas violam a Carta da UA, no que se refere a aquisição de territórios pela força, representando uma ameaça para a estabilidade do continente. A reunião decidiu ainda envidar esforços para a reabertura da representação da UA em El Aaiún, a fim de lhe permitir reactivar o seu papel na procura de uma solução, bem como o de reactivar o cargo do Alto Representante da UA encarregado da questão do Sahara (o ex-Presidente moçambicano Joaquim Chissano), cuja missão é de estabelecer contactos com as duas partes em conflito.
Sem data marcada, o CPS decidiu ainda realizar uma missão de campo na região, o mais breve possível, a fim de monitorizar a situação in loco.
Interpelando directamente as Nações Unidas, o CPS instou o seu Secretário-geral a acelerar a nomeação de um novo Enviado Pessoal e este a trabalhar em estreita colaboração com a UA, de acordo com as disposições da Carta das Nações Unidas e do quadro UA-ONU. Instou ainda o Secretário-geral a solicitar ao Conselheiro Jurídico das Nações Unidas que se pronuncie sobre a abertura de consulados no território ocupado do Sahara Ocidental.
No discurso perante o CPS, o Presidente saharaui, Brahim Ghali, apelou à UA para que assuma as suas responsabilidades históricas e futuras na descolonização do Sahara Ocidental, bem como na capacitação do povo saharaui para exercer o seu direito à autodeterminação e independência.
«[…] Infelizmente, desde 13 de Novembro de 2020, o confronto armado voltou ao Sahara Ocidental, na sequência de uma acção militar agressiva das forças marroquinas e da ocupação de novas zonas do território da RASD, em flagrante violação do acordo de cessar-fogo assinado pelas duas partes, a saharaui e a marroquina, há trinta anos, sob os auspícios e tutela da ONU e da UA, no quadro do Plano de Resolução que prevê a organização de um referendo de autodeterminação.(…).
«A comunidade internacional (Nações Unidas, União Africana, Tribunal Internacional de Justiça, Tribunal Europeu de Justiça e outros) adopta uma posição jurídica clara em relação ao Sahara Ocidental, bem como ao Reino de Marrocos, considerando-os dois países separados e distintos. (…).
«Colocamos a UA perante a sua responsabilidade e o seu dever em relação a esta questão africana. Dizer que a União não deve desempenhar um papel de liderança no dossier do Sahara Ocidental, ao lado da ONU, é uma declaração que contradiz a verdade histórica e contradiz a responsabilidade da UA de defender os seus princípios e objectivos. (…).
«Para a história, recorde-se que a nossa organização continental foi sujeita, em mais de uma ocasião, a acções irresponsáveis do Reino de Marrocos, […] como a expulsão humilhante da componente africana da Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental, MINURSO.
«A falta de uma posição firme sobre esta expulsão, que até hoje não foi abordada, nem pelas Nações Unidas nem pela União Africana, encorajou o Reino de Marrocos a continuar a subestimar a nossa organização continental, procurando abertamente esvaziá-la do seu dever, responsabilidade e capacidade para completar a descolonização do continente e resolver os problemas africanos, como o conflito entre a RASD e o Reino de Marrocos.
«Os líderes africanos, ao acolherem a candidatura do Reino de Marrocos para adesão à União Africana em 2017, não deixaram de explicar que o objectivo é aumentar a capacidade da UA de encontrar soluções africanas para os seus problemas e de proporcionar a oportunidade de unir os nossos países e povos em torno dos valores básicos dos membros fundadores da UA, que são a solidariedade, a unidade, a liberdade e a igualdade (…).
«Porém, passados mais de quatro anos, não assistimos a nenhum progresso nessa direcção, mas sim a uma expansão do Reino de Marrocos na sua intransigência e flagrante violação do Acto Constitutivo da União Africana. A agressão, a aquisição de território pela força e o rompimento das fronteiras dos Estados-membros são as maiores ameaças à estabilidade do continente e à existência e harmonia da UA, além de serem considerados precedentes que não podem ser tolerados. Podemos aceitar que um país africano se torne uma potência colonial que destrói todos os princípios e valores comuns da nossa organização e dos nossos povos?»
Pressionado a comentar os resultados desta reunião do CPS, o ministro dos Negócios Estrangeiros de Marrocos, Nasser Bourita, considerou-a um «não-evento», afirmando que a «resolução do CPS da UA sobre o Sahara Ocidental não é um assunto de Marrocos» e assegurando a exclusividade da ONU na resolução do conflito do Sahara Ocidental.


 



 


 


Sem comentários:

Enviar um comentário