sexta-feira, 5 de março de 2021

Boletim nº 94 - Março 2021

 

LUTA E SOLIDARIEDADE: OS DIREITOS HUMANOS NO SAHARA OCIDENTAL

O recomeço da guerra amplificou a voz saharauí, dentro e fora de portas. Nas autoridades de ocupação marroquinas cresceu a exasperação. A escalada de violações dos direitos humanos fortaleceu a determinação dos activistas, que alimentam a solidariedade internacional com um fluxo contínuo de informação, apesar dos riscos. Um ciclo que só será quebrado com a realização do referendo de autodeterminação.

Mohamed Lamin Haddi, em greve de fome desde 13 Janeiro
A situação não é nova, nem as técnicas usadas, mas o contexto tem as suas diferenças. A pandemia dá pretexto para isolar ainda mais a população saharauí na sua própria terra, se isso é possível, já que há anos está fechada a jornalistas, políticos idóneos, advogados/as e organizações de direitos humanos, mas aberta a empresas, homens e mulheres de negócios e políticos cúmplices do Reino. Permite também acrescentar uma nova acusação gratuita às habituais ligadas a posse de droga e insultos à autoridade: a não observação das regras sanitárias, ou a exigência do seu cumprimento rígido e absurdo, enquanto nas cadeias marroquinas os saharauis vivem em condições sanitárias degradantes e não têm acesso a assistência médica.
Neste panorama, quem pode proteger a população? É o Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV), «uma organização imparcial, neutra e independente, cuja missão exclusivamente humanitária é proteger a vida e a dignidade das vítimas de conflitos armados e outras situações de violência, assim como prestar-lhes assistência. O CICV também se esforça para evitar o sofrimento por meio da promoção e do fortalecimento do direito e dos princípios humanitários universais.» A sua base legal é a seguinte: «As quatro Convenções de Genebra e o Protocolo Adicional I conferem ao CICV um mandato específico para agir no caso de um conflito armado internacional. Em particular, o CICV tem o direito de visitar prisioneiros de guerra e internados civis. As Convenções também outorgam ao CICV um amplo direito de iniciativa.»
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https://www.icrc.org/pt/o-mandato-e-missao-do-cicv
Nos últimos meses têm-se multiplicado os já anteriores apelos para que o CICV visite os presos políticos e envie com urgência uma missão ao Sahara Ocidental.
Começando pelas organizações saharauís (obviamente não legalizadas, mas activas), que operam a partir do interior do território: a 22 de Janeiro, a Comissão Nacional Saharaui dos Direitos Humanos (CONASADH) publicou um comunicado insistindo no cumprimento da missão do CICV; o Colectivo de Defensores Saharauis dos Direitos Humanos (CODESA) divulgou a 16 de Fevereiro uma Carta Aberta dirigida ao CICV, subscrita por 150 eleitos/as do PE e de vários parlamentos nacionais, 177 organizações de 41 países e um vasto leque de personalidades de muitas nacionalidades; a Instância Saharaui contra a Ocupação Marroquina (ISACOM), através da sua Presidente, Aminetou Haidar, dirigiu-se ao Secretário-geral da ONU e ao recém-eleito Presidente dos EUA; o Movimento dos Prisioneiros Políticos Saharauis (MPPS) fez igualmente ouvir a sua voz, assim como a Fundação Nushatta para os Meios de Comunicação Social e os Direitos Humanos.
E continuando por entidades internacionais, entre outras: a Coordenadora Europeia dos Comités de Apoio ao Povo Saharauí (EUCOCO) mandou mais uma Carta Aberta ao CICV a 16 de Fevereiro (no seguimento de uma outra datada de Setembro, subscrita por 42 organizações de diferentes países europeus); 19 eurodeputados/as dos grupos “A Esquerda”, “Verdes” e “Socialistas e Democratas” (entre os quais Marisa Matias, José Gusmão, João Ferreira, Sandra Pereira e Francisco Guerreiro) escreveram a 22 de Fevereiro ao Alto Representante para a Política Externa da UE, Josep Borrell; o Intergrupo do Parlamento Europeu “Paz para o Sahara Ocidental” fez o mesmo no dia 26 de Fevereiro.
O silêncio é ensurdecedor. Até agora, Marrocos tem conseguido exercer a suficiente pressão e as convenientes ameaças sobre esta «organização imparcial, neutra e independente» com «um amplo direito de iniciativa». Há duas questões que é importante esclarecer, porque elas são utilizadas para, falsamente, explicar as razões desta inacção.
A primeira é que o governo marroquino tem tido o cuidado de não reconhecer que existe desde 13 de Novembro último uma situação de guerra (quando as suas próprias forças quebraram o cessar-fogo prevalecente desde 1991). Isto apesar de provas insuspeitas como, por exemplo, dois avisos do espaço aéreo das Canárias - o primeiro em 27 Novembro e o último em 8 Fevereiro - que recomenda, no último, o não sobrevoo do território do Sahara Ocidental devido ao conflito em curso, e uma advertência da GardaWorld (a 6ª maior empresa de segurança do mundo) dirigida aos seus clientes que operam do Sahara Ocidental para que tomem as maiores precauções ante a escalada do conflito.
No entanto, o Artigo 2º da IV Convenção de Genebra diz que «a presente Convenção será aplicada em caso de guerra declarada ou de qualquer outro conflito armado que possa surgir entre duas ou mais das Altas Partes contratantes, mesmo se o estado de guerra não for reconhecido por uma delas.» O Reino de Marrocos assinou este convénio a 26 de Julho de 1956.
A segunda é que do ponto de vista prático não há “saharauís”, só “marroquinos”, porque todas as pessoas que habitam o Sahara Ocidental são obrigadas a ter documentos oficiais marroquinos. Mas a mesma Convenção é clara quando estipula no seu Artigo 4º: «São protegidas pela Convenção as pessoas que, num dado momento e de qualquer forma, se encontrem, em caso de conflito ou ocupação, em poder de uma Parte no conflito ou de uma Potência ocupante de que não sejam súbditos.»
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https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/instrumentos/convIVgenebra.pdf
Os casos concretos de civis ameaçados, agredidos e em perigo são muitos e constantes, a maior parte não chega a ser conhecida em tempo útil, mas duas situações têm ganho maior atenção: as condições em que se encontram os presos políticos, e as represálias dirigidas a activistas, jornalistas e defensores dos direitos humanos. Alguns exemplos:
  • Mohamed Lamin Haddi, jornalista que cobriu o Acampamento da Dignidade de Gdeim Izik, em 2010, foi condenado a 25 anos de prisão e está detido na cadeia de Tiflet 2, em Marrocos. Iniciou, a 13 de Janeiro, uma greve de fome para denunciar os maus-tratos de que tem sido alvo, incluindo três anos de isolamento, a falta de alimentação adequada, a ausência de luz na sua cela e a negação de assistência médica. Foi ameaçado pelo próprio director da prisão e por uma enfermeira. A sua saúde vai piorando, a mobilidade está reduzida, tem dificuldade em falar e teme-se pela sua vida. A família tem sido impedida de o visitar. Diversas organizações internacionais têm-se mobilizado para exigir a sua segurança e requerer, enquanto prisioneiro de consciência, a sua imediata libertação, como aconteceu no dia 22 de Fevereiro com o Observatório para a Protecção dos Direitos Humanos, programa conjunto da Organização Mundial Contra a Tortura (OMCT) e da Federação Internacional dos Direitos Humanos (FIDH).
  • o Grupo de Trabalho da ONU sobre Detenção Arbitrária apelou publicamente, a 2 de Fevereiro, à libertação imediata do jornalista saharaui Walid Salek El Batal, do grupo de militantes do Smara News, que foi interceptado numa viatura por agentes marroquinos à paisana, em Smara, em Junho de 2019 e condenado a seis anos de prisão, depois reduzidos para dois. Foi violentamente espancado e pontapeado pela polícia, numa cena gravada por um cidadão anónimo, que o serviço de verificação do jornal norte-americano The Washington Post confirmou como verdadeira e que foi denunciada por inúmeras organizações de direitos humanos, como a Human Rights Watch.
  • o jovem Mohamed Salem Fahim desapareceu misteriosamente no dia 15 de Janeiro e, apesar das autoridades de ocupação negarem conhecer o seu paradeiro, a família foi encontrar o seu corpo em adiantado estado de decomposição 22 dias depois, na morgue do hospital de El Aíun, capital do Sahara ocupado.
  • Sultana Sid Brahim Abed, conhecida como Sultana Khaya, entrou em greve de fome no dia 21 de Fevereiro, depois de lhe terem roubado o telefone e de, mais uma vez, ter sido agredida pelas forças de segurança marroquinas que há três meses cercam a sua casa, na cidade de Bojador, não deixando ninguém entrar nem sair. A sua irmã foi igualmente atacada. Um grupo de jovens e mulheres que tentaram visitá-las foi também agredido. Sultana Khaya perdeu a visão do olho direito em 2007, em resultado da brutalidade de que foi alvo numa manifestação estudantil pacífica no campus universitário de Marraquexe. Em declarações à Agência APS, o coordenador da Comissão Saharaui dos Direitos Humanos na Europa revelou que mais de 80 casas de famílias saharauis nas cidades ocupadas estão sitiadas pelas forças de repressão marroquinas.
  • o ex-preso político Ghali Bouhla e Mohamed Nafeh Boutasufra, foram detidos em frente de casa por uma força policial à paisana, sequestrados durante três dias, sem qualquer justificação, e levados a 11 de Fevereiro para a prisão de El Aíun, onde aguardam julgamento (adiado já por três vezes), enquanto os seus familiares e amigos são intimidados.
  • Babouzeid Mohamed Said Labbihi, presidente do Colectivo dos Defensores Saharauis dos Direitos Humanos (CODESA), está sob vigilância permanente e foi proibido de aceder ao porto de Dakla, onde poderia arranjar trabalho, visto que tem Carta de Pescador, Certificado em Salinidade Marinha, Certificado em Segurança Laboral e uma licenciatura em Direito Privado. Desta forma as forças marroquinas impedem-no de trabalhar, ao mesmo tempo que intimam as empresas pesqueiras para que não lhe dêem emprego.
Sim, a comunidade internacional preocupa-se com a situação dos direitos humanos, mas não em toda a parte nem de modo igual. Muita atenção a uns, muita indiferença a outros. Depende das políticas de alianças que os violadores desses direitos constroem e das conveniências de quem com eles se alia.

UNIÃO AFRICANA: À PROCURA DE UMA SOLUÇÃO «JUSTA E DURADOURA»

Nos passados dias 6 e 7 de Fevereiro decorreu virtualmente a 34ª Sessão Ordinária da Cimeira de Chefes de Estado e de Governo da União Africana (UA). Integrava-se num esforço que os Estados africanos vêm fazendo de adequar a sua estrutura continental às mudanças por que está a passar o mundo em que vivemos. O processo de descolonização do Sahara Ocidental esteve presente.

A construir «a África que queremos»

Em Novembro de 2018 a UA tinha realizado uma cimeira extraordinária para debater a sua reforma institucional onde foi adoptada uma nova estrutura e apresentadas propostas para a reestruturação dos escritórios regionais, escritórios de ligação e representação, bem como a reforma do Parlamento Pan-Africano e dos órgãos judiciais e extrajudiciais e aprovado um roteiro sobre a reforma das instituições e órgãos dirigentes. A Cimeira de Fevereiro de 2019 reafirmou como uma prioridade central a efectivação deste processo.
Agora nesta 34ª Cimeira foi feito o balanço do progresso realizado na concretização dos programas de reforma, em particular a da Comissão da UA. Como seu presidente foi eleito o chadiano Musa Faki Mahamat para um segundo mandato de 4 anos. Para o cargo de Vice-presidente foi eleita a ruandesa Monique Nsangpaganwa, devido às novas regras eleitorais para a presidência da Comissão, segundo as quais o candidato ao cargo de Vice-presidente deve ser uma mulher caso um candidato do sexo masculino conquiste o cargo de Presidente da Comissão e vice-versa.
A reforma dos comissariados levou à sua diminuição, com a junção do de Paz e Segurança com o de Assuntos Políticos, tendo sido eleito como seu Comissário o embaixador da Nigéria Bankole Adeoye, substituindo na função o argelino Ismail Chergui.
Para presidir à União Africana durante o ano 2021 coube a vez ao presidente da República Democrática do Congo, Felix-Antoine Tshisekedi Tshilombo, em substituição do presidente sul-africano Cyril Matamela Ramaphosa. Segundo alguns observadores, a luta contra a pandemia de Covid-19, a instabilidade na região do Sahel e a questão do Sahara Ocidental são alguns dos problemas que o novo presidente da UA vai ter de enfrentar.
Recorde-se que a UA requereu no passado mês de Dezembro à sua Comissão de Paz e Segurança que instasse as partes no conflito do Sahara Ocidental - Marrocos e a RASD - a criarem as condições para um novo cessar-fogo e a chegarem a uma solução «justa e duradoura» para o conflito que permita ao povo saharaui decidir do seu próprio destino.
Marrocos viu a Cimeira como um terreno de confronto. Como escreveu Mohamed Bujari, «A apresentação por Marrocos de cinco candidatos, ou seja, a todos os cargos de Comissário com excepção de um, teve como objectivo obter o lugar de Comissário de Paz e Segurança em troca da retirada dos seus outros quatro candidatos» em favor dos de outros países, desde que estes dessem o seu apoio «ao candidato marroquino à Comissão de Paz e Segurança, Hassan Abu Ayyoub, considerado no seu país um dos mais destacados diplomatas. Marrocos quis, com esta estratégia clara, entrar num processo de permuta com todos os países das cinco regiões a partir da troca de votos com todos os países que apresentaram candidatos. (…) a iniciativa marroquina é um precedente único na história da Organização Africana desde 1963, uma vez que nenhum Estado membro apresentou candidatos para todos os cargos simultaneamente e num único processo eleitoral.»
Das cinco candidaturas apresentadas, quatro foram eliminadas «da lista que foi aprovada após o processo de cada candidato ter sido submetido a exame por uma comissão de personalidades representativas das cinco regiões por não terem obtido a pontuação necessária». O sobrevivente foi derrotado na eleição para o comissariado de Agricultura pela angolana Josefa Sako, o que «desmascara a falsidade da propaganda de Rabat sobre o apoio do continente africano a Marrocos e ao seu modelo económico e político», apesar de «Marrocos pagar as dívidas de um grupo de países sujeitos a sanções a troco de votarem no seu candidato.»
Bujari lembra-nos ainda que Rabat falhou na sua tentativa de obter o aval da UA a «projectos de infra-estruturas» na África ocidental envolvendo os «territórios ocupados (...), após uma batalha que foi mais uma ocasião para a União renovar o seu compromisso de respeitar as fronteiras e a integridade territorial dos seus Estados-Membros, de acordo com os seus princípios, objectivos e solidariedade com a luta do povo saharauí pela liberdade e pela soberania.»
A situação internacional apresenta-se hoje menos favorável a Marrocos do que a decisão do anterior responsável da Casa Branca parecia prometer. O Reino aproveitou a cimeira para testar a receptividade africana à sua política no Sahara Ocidental. A reacção do Burundi, que anunciou ter desistido de abrir um consulado nos territórios ocupados, deverá ter alertado Rabat para que a situação não está tão segura quanto procura fazer crer.
A próxima reunião, em data a anunciar, da Comissão dos Assuntos Políticos, Paz e Segurança – onde o processo de descolonização da Sahara Ocidental irá ser debatido - permitirá, possivelmente, esclarecer os contornos da actual relação de forças no conflito que opõe o regime marroquino ao povo saharaui.


 



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