CENTRAR O SAHARA OCIDENTAL NO PROCESSO DE DESCOLONIZAÇÃO
Para começar o ano em que termina a Terceira Década Internacional para a Erradicação do Colonialismo, proclamada pelas Nações Unidas, e sendo o Sahara Ocidental a última colónia de África, a Associação de Amizade Portugal-Sahara Ocidental lançou uma iniciativa visando reforçar e exigir o empenho da ONU e sensibilizar a opinião pública portuguesa.
Pela descolonização do Sahara Ocidental
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Deste esforço
resultou a Carta Aberta dirigida ao Secretário-geral da ONU, António
Guterres, no dia 17 de Março, subscrita por 63 personalidades
portuguesas, reconhecidas em diversos sectores de actividade e
intervenção.
«Vivemos
num mundo em turbulência, e a questão do Sahara Ocidental parece ser só
mais uma, entre muitas. No entanto, o povo saharauí mantém a exigência
de decidir o seu futuro, e o Direito Internacional é inequívoco»,
afirmam as e os subscritores. «O custo humano – bem como político,
económico, social, cultural e ambiental - destas mais de quatro décadas
de impasse é indescritível».
Ao
reconhecer «a contribuição fundamental» de António Guterres «para a
solução do caso de Timor Leste» e o «papel das Nações Unidas nesse
processo», as e os subscritores esperam que com esta experiência a ONU
possa voltar a fazer a diferença, «ao empenhar-se decididamente na
negociação que leve as partes a acordar na realização de um referendo
livre e justo à população saharauí, de acordo com o recenseamento já
realizado».
Neste
sentido, as «cidadãs e cidadãos portugueses e do mundo», reiteram ao
Secretário-geral que ele «pode contar com todo o apoio e capacidade de
mobilização de quem acredita que é nos momentos difíceis que o esforço, a
criatividade e a perseverança nos princípios nos distinguem.»
O
contacto com o grupo de subscritores/as foi extremamente estimulante:
algumas pessoas têm acompanhado o problema ao longo de anos e continuam
atentas e solidárias; outras redespertaram para a questão, evocando
memórias de acções e debates em décadas anteriores; para outras ainda
foi uma revelação, à qual aderiram prontamente. Recebemos agradecimentos
por terem tido a oportunidade de participar na iniciativa, pedidos para
continuarem a receber informação e afirmação de disponibilidade para
colaborações no futuro.
O eco na comunicação social, à qual também foi enviado um comunicado de imprensa, foi diminuto, mas muito diversificado: no Pravda em português, no Sete Margens, no Jornal Económico e no Esquerda.net
(por ordem de publicação). Ao mesmo tempo, abriram-se portas para dar
ao Sahara Ocidental uma atenção e um lugar que não tem tido na
informação portuguesa.
A
Carta, traduzida em francês e inglês, foi igualmente partilhada com
grupos de solidariedade, em particular europeus, de alguns dos quais nos
chegaram apreço e encorajamento, contribuindo para estreitar laços e
cumplicidades.
Veja aqui a Carta na íntegra e a lista de subscritores/as.
SAHARA OCIDENTAL: A AMEAÇA DA PANDEMIA
A pandemia do coronavírus veio ensombrar ainda mais a vida da população saharauí, quer se encontre no território ocupado do Sahara Ocidental, nos acampamentos de refugiados ou nas prisões marroquinas. O que torna mais urgente que “rompamos o silêncio”.
Adiado para Outubro
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Nos princípios de
Março a organização do Festival Internacional de Cinema do Sahara
(FiSahara) anunciou que, devido à situação criada pelo coronavírus,
tinha decidido adiar a realização do festival para Outubro. O FiSahara -
o mais original festival da história da cinematografia – estava
previsto decorrer no acampamento de refugiados de Auserd (região de
Tindouf, Argélia) com arranque marcado para 14 de Abril. A sua primeira
mostra ocorreu em 2003 e hoje reúne muitos apaixonados da 7ª arte vindos
de várias partes do mundo. O tema deste ano era: «Rompamos o silêncio:
Memória e resistência».
Esta
medida inscreveu-se nas orientações do Ministério da Saúde da República
Árabe Saharauí Democrática (RASD) que logo nos princípios de Março
definiu um conjunto de acções de prevenção que incluíam campanhas de
sensibilização e um plano de comunicação em matéria de prevenção
dirigido a professores, pais e alunos. O Ministério solicitou igualmente
à população a máxima colaboração, incluindo a difusão apenas dos dados
divulgados pelos canais autorizados, de modo a evitar a propagação de
boatos e notícias falsas.
Mas
com o avançar da pandemia pelo mundo os responsáveis saharauís tiveram
de adoptar medidas mais restritivas, tal como, aliás, o foram fazendo a
maioria dos governos, seguindo as instruções dadas pela OMS (Organização
Mundial de Saúde). «O governo saharauí aprovou medidas que entraram em
vigor ontem [19 de Março] à noite, incluindo a medida de confinamento
para impedir a propagação do Covid-19 na República Saharaui», informou o
sitio ECSAHARAUI. Que acrescenta:
«As
autoridades saharauís decidiram introduzir um regime de alerta máximo
devido à ameaça de propagação do coronavírus. As aulas nas escolas estão
suspensas. Todos os eventos desportivos e de entretenimento foram
cancelados.
«O
governo saharauí ordenou na quinta-feira o confinamento da população
residente nos campos de refugiados saharauís, nos territórios libertados
do Sahara Ocidental e nas regiões militares para impedir a propagação
do surto de coronavírus que afecta o mundo, causando milhares de mortes e
infectando todas as partes do planeta.
«Isso
significa que os 170.000 cidadãos dos cinco campos (Dakhla, Smara,
Bojador, Auserd e El Aaiún), além da Unidade Administrativa de Chahid
Alhafed, terão saídas restritas a partir das 00:00h de sexta-feira [dia
20] à noite e até novo aviso.»
Mas
na situação em que se vive nos acampamentos e nos territórios
libertados receia-se que estas medidas não impeçam a degradação das
condições de vida. Uma notícia saída no Diario 16,
assinada pelos jornalistas Manuel Domínguez Moreno e José Antonio
Gómez, dá-nos conta disto mesmo: «A escassez de hospitais e a falta de
médicos nos campos de refugiados onde o povo saharauí vive podem
provocar uma crise de saúde com consequências apocalípticas». E
acrescentam: «Estamos a ver como o COVID-19 está a fazer colapsar os
sistemas nacionais [de saúde] de países avançados como a China, a
Itália, a Coreia ou a Espanha. Se esta situação ocorre nesses lugares
economicamente privilegiados, o que acontecerá nos campos de refugiados
do povo saharauí, onde há tantas deficiências de saúde?
«Se
o impacto do COVID-19 em infectados e mortos é enorme em países com
recursos, nos acampamentos onde os saharauís vivem seria catastrófico,
sobretudo depois de em 2018 os recursos financeiros com que a Frente
POLISARIO contava terem sido drasticamente reduzidos.
«As
condições de vida nos acampamentos e os limitados recursos económicos
tornam a disponibilidade de pessoal de saúde qualificado um dos
principais problemas que os profissionais enfrentam para garantir o
direito à saúde da população de refugiados saharauís.
«Para acudir a esta situação, ONG como Médicos del Mundo
tentam aliviar as deficiências do pessoal de saúde através da formação
contínua, de diferentes programas e do apoio à formação local das
matronas, prestando atendimento especializado com equipas voluntárias.
«Se
o coronavírus chegar aos acampamentos de Tindouf (Argélia), onde vivem
mais de 180.000 seres humanos em condições desumanas, atingiria os
saharauís de um modo mais agressivo do que, por exemplo, em Espanha ou
Itália. A população de risco nestes acampamentos é muito mais elevada
pela situação em que vivem: diabetes, desnutrição, desidratação.
Infecções ou desidratação são algumas das doenças mais comuns que apenas
trinta médicos têm de enfrentar.
«Por
outro lado, as infra-estruturas hospitalares são casas de adobe com
pouca ventilação e sem água corrente. Além disso, na grande maioria, é
impossível realizar procedimentos cirúrgicos porque não existem salas de
cirurgia esterilizadas.
«Para
a transferência de doentes quase não existem ambulâncias onde haja
oxigénio, nem, obviamente, ventiladores. Também existe uma grave falta
de medicamentos essenciais em qualquer hospital ocidental,
principalmente antibióticos. Portanto, estão altamente expostos a uma
epidemia.»
A
pensar na actual situação no Sahara Ocidental, e particularmente na que
vivem os presos políticos saharauís nas masmorras marroquinas, umas
largas dezenas de associações defensoras dos direitos humanas e de
solidariedade com a causa do povo do Sahara Ocidental dos cinco
continentes — entre as quais a AAPSO (Associação de Amizade
Portugal-Sahara Ocidental) — escreveram uma carta a Filippo Grandi, Alto
Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, a Michelle Bachelet,
Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos e aos 15
membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas alertando-os para a
situação em que se encontram os detidos, que «são vítimas de
maus-tratos, tortura e negligência médica intencional». «No contexto
desta pandemia, são alvos fáceis para o regime marroquino», havendo «uma
necessidade urgente de intervir para a sua protecção.»
«No território que Marrocos controla», conforme relata o jornalista Jesús Cabaleiro Larrán no Periodistas en español,
no passado dia 27, «estima-se que mais de 3.000 colonos marroquinos
deixaram o Sahara devido à disseminação do coronavírus. Especificamente,
haveria mais de mil em El Aaiún e mais de 1.250 em Dakhla, no sul do
território. Nesta última cidade, as autoridades marroquinas fretaram
mais de 28 autocarros. Além disso, também houve quem partisse de avião e
em táxis colectivos (...).
«As
razões para este êxodo são diversas, desde o fecho do comércio a não
confiarem nas instalações hospitalares existentes no território em caso
de complicações.»
Como escreveu
1
Sven
Lindqvist, «Você já sabe quanto baste. Eu também. Não é de informação
que carecemos. O que nos falta é a coragem para compreender o que
sabemos e tirarmos conclusões.»
Exterminem todas as bestas, Lisboa, Editorial Caminho, 2005, p. 17.
BENNANI-CHRAÏBI: «MARROCOS NÃO É UM MUSEU PROTEGIDO ...»
A sociedade marroquina continua a dar sinais da insatisfação dos seus habitantes enquanto o regime continua a dar mostras de incapacidade de adaptação às mudanças. «Um aparelho coercivo, por mais poderoso que seja, não pode garantir a sobrevivência de um regime indefinidamente», como disse Mounia Bennani-Chraïbi.
Uma iniciativa da FSM
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Em 23 de Fevereiro
passado as ruas de Casablanca encheram-se de populares contestando o
regime político que domina o país. Porque protestavam eles? Segundo o
sítio peoplesdispatch,
«contra uma série de questões que assolam o país. Os marroquinos têm
enfrentado a degradação das condições económicas, o desemprego e o alto
custo de vida, resultado da desigualdade social e da falta de direitos
civis e humanos no país, além das políticas antidemocráticas seguidas
pelo regime. Milhares de pessoas que participaram nos protestos exigiram
mais direitos democráticos, melhores condições de vida e a libertação
dos presos políticos, especialmente os detidos durante os protestos no
Rif». Lembramos que esses protestos, iniciados em Outubro de 2016 e
desencadeados pela morte de um peixeiro trucidado numa camioneta do lixo
para onde a polícia tinha lançado o peixe que lhe havia extorquido,
espalharam-se depois a outras regiões do país. O movimento foi esmagado
por uma brutal repressão das autoridades que fizeram mais de 1.000
presos, dos quais 53 – considerados os dirigentes da contestação – foram
julgados e condenados a pesadas penas de prisão.
A
base organizativa de onde nasceu esta nova iniciativa teve um carácter
inovador pela sua heterogeneidade e amplitude. Partiu da recentemente
criada Frente Social Marroquina (FSM), unindo mais de uma trintena de
organizações políticas, sociais, de defesa dos direitos humanos e de
activismo social, entre os quais se incluem 4 partidos políticos, a
Confederação Democrática do Trabalho e a Associação Marroquina dos
Direitos Humanos.
Segundo o peoplesdispatch,
«Younis Ferrachin, coordenador do FSM, disse num discurso durante os
protestos que o objectivo da manifestação era exigir justiça social,
direitos e liberdades e que a luta continuaria até que essas exigências
fossem atendidas. Alertou para o rápido declínio na situação dos
direitos humanos no país, bem como as crescentes restrições sistemáticas
impostas às liberdades civis e políticas dos cidadãos marroquinos».
No dia a seguir a esta iniciativa o MiddleEastEye divulgou
uma entrevista com Mounia Bennani-Chraïbi, professora de Ciências
Políticas na Universidade de Lausanne (Suíça), que há três décadas vem
analisando os movimentos políticos e sociais em Marrocos. Fez parte do
elenco de investigadores que colaborou na edição do nº 21 da revista L’Année du Maghreb de Dezembro de 2019 dedicada ao tema "Quando a Argélia protesta. Pensar na contestação no Magrebe".
O
artigo de Bennani-Chraïbi tem um título sugestivo: «Retrospectiva sobre
a voz da rua em Marrocos: nada muda para que nada mude». Segundo o Middle East Eye,
«A especialista em movimentos políticos e sociais regressa nesta
entrevista aos desenvolvimentos do protesto em Marrocos. Um tópico
quente, quando no domingo [23 de Fevereiro] vários milhares de pessoas
se manifestaram em Casablanca por uma "verdadeira democracia"» e «mostra
como a “relativa liberalização do regime” e a gestão dos anos de chumbo
(1956-1999) - um período durante o qual numerosas violações dos
direitos humanos foram cometidas contra os opositores políticos e os
activistas democráticos - contribuíram para transformar a "voz da rua"».
Dessa entrevista seleccionámos os seguintes extractos:
«Middle East Eye: Como se articula hoje em Marrocos a voz do protesto e quais os seus principais desenvolvimentos desde a época colonial?«Mounia Bennani-Chraïbi: A expressão “voz da rua” designa expressões de protesto que se desdobram em locais públicos abertos (cortejos, tumultos, manifestações, sit-in). (...)«O impulso para a acção colectiva já não é um apanágio de partidos políticos, sindicatos ou associações. As figuras do protesto diversificaram-se e feminizaram-se. A um outro nível, o repertório de acção tende a homogeneizar-se, enquanto se presta a uma grande inventividade. (...)«MEE: O desapontamento provocado pelo M20F [Movimento de 20 de Fevereiro] e a violenta repressão no Rif abriram caminho para novas formas de protesto ou, pelo contrário, travaram-nas?«MBC: A curva de mobilizações no espaço público tem variado. Teve uma quebra em 2014, antes de voltar a subir a partir de 2016, depois voltou a descer.«Mas as expressões de protesto não se reduzem a marchas e a sit-in. Várias iniciativas nasceram na sequência do M20F: teatro do oprimido, filosofia na rua, etc. Em 2018, o movimento de boicote contra o custo de vida apanhou de surpresa os decisores e actores políticos.«As tentativas de controlo das fronteiras aumentaram e numerosos candidatos ao exílio deram um carácter político ao seu acto. Simbolicamente, foram proclamadas "renúncias à nacionalidade". Toda uma cultura da transgressão desenvolveu-se no rap marroquino, nos estádios de futebol e nas redes sociais.«O próprio facto de simples estudantes liceais terem sido presos por causa dos seus posts trai a desorientação das autoridades, que tentam desesperadamente restabelecer o muro do medo.«MEE: No seu artigo explica que a clivagem centro / periferia em que se organiza a voz do protesto é mais forte do que antes. Como explica isso? Isso representa uma barreira para a sua evolução?«MBC: Segundo certas leituras, a multiplicidade de clivagens étnicas, confessionais ou regionais dificulta a cristalização de uma clivagem central entre o centro e a periferia e a formação de grandes aglutinações de protesto (até mesmo revolucionárias).«Em Marrocos, durante muito tempo a ênfase foi colocada na natureza fragmentada e segmentada da sociedade. Mas, embora o regime tenha explorado esse filão acusando os contestatários do hirak do Rif de separatismo, Nasser Zefzafi [um de seus membros presos] tornou-se um ícone nacional dos manifestantes.«As transformações que ocorrem na arena contestatária mostram que a divisão centro / periferia ("Marrocos útil" / "Marrocos inútil"; "predadores" / "filhos do povo") tende a ter precedência sobre as outras clivagens, o que cria condições favoráveis para a extensão dos protestos. (…).«MEE: Podemos dizer que a juventude marroquina, em particular graças às redes sociais, é hoje capaz de se organizar de forma autónoma?«MBC: As redes sociais são uma poderosa ferramenta de comunicação, como foi noutros tempos a imprensa, os caminhos de ferro ou o telegrama. No entanto, não basta fazer um clique para resolver o problema da organização de uma acção colectiva. O processo de autonomização é inseparável da acumulação das aprendizagens conseguida pelos contestatários.«MEE: Poderá a contestação marroquina, à semelhança do que se passa na Argélia, assumir uma nova forma?«MBC: Contrariamente aos discursos sobre a excepcionalidade marroquina, o reino não é um museu protegido dos sobressaltos que agitam a sua vizinhança.«Lembremos que as negociações que precederam a formação do governo alternativo "consensual" em 1998 [após a designação da esquerda, depois de 40 anos de oposição, pelo rei Hassan II para levar adiante o processo de transição democrática antes da sua morte] são indissociáveis do contexto regional do final dos anos 80 e início dos anos 90: esperanças de democratização na Tunísia e na Argélia, grandes mobilizações contra a Guerra do Golfo em 1991.«Da mesma forma, o movimento de 20 de Fevereiro é inseparável da onda de protestos que ocorreram na região [Primavera Árabe iniciada em 2011].«Embora as interacções entre os manifestantes e os detentores do poder façam parte de uma historicidade, elas são regularmente afectadas pelas mudanças de horizonte do pensável e do fazível à escala regional e transnacional.«MEE: Podemos dizer que a política de "pacificação radical" que evoca no seu artigo - a ideia de que uma cidade fortemente reprimida permanecerá calma por vinte anos, ou seja a memória de uma geração -, implantada desde o início pelos franceses e depois adoptada e actualizada pela monarquia marroquina, funcionou?«MBC: Acima de tudo, essas políticas mostraram que um aparelho coercivo, por mais poderoso que seja, não pode garantir a sobrevivência de um regime indefinidamente.»
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