segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Boletim nº 80 - Janeiro 2020


XV CONGRESSO DA FRENTE POLISARIO: CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS

Se existe uma larga unanimidade na sociedade saharauí quanto à necessidade de romper com o impasse em que as Nações Unidas deixaram cair o processo de descolonização do Sahara Ocidental, as propostas divergem quanto aos caminhos a seguir para ultrapassar este obstáculo.

XV Congresso da F. POLISARIO

Estas diferenças de visão têm vindo a ganhar uma maior acuidade nos últimos anos, alcançando, com a realização do XV Congresso da Frente POLISARIO, uma visibilidade maior. Hach Ahmed, porta-voz da Iniciativa Saharauí para a Mudança — de que já aqui tivemos a oportunidade de falar –, concedeu uma entrevista ao jornalista Pedro Canales para a ATALAYAR – uma publicação «que conta com a colaboração da Embaixada de Marrocos em Espanha»
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https://www.eldiario.es/politica/Nace-Atalayar-revista-Espana-Magreb_0_115488671.html: «A primeira edição da revista - 4 euros em Espanha, 30 dirham em Marrocos e 320 dinares na Argélia - traz na capa uma imagem dos monarcas Juan Carlos I e Mohamed VI para ilustrar uma entrevista com Lahcen Haddad, ministro do Turismo marroquino, que diz que "Mohamed VI pediu para ajudar a Espanha".»
– centrada na realização do Congresso e divulgada em 26 de Novembro passado. Dessa entrevista seleccionámos algumas perguntas e as respectivas respostas:
ATALAYAR - O próximo congresso da Frente POLISARIO, anunciado para o mês de Dezembro, será importante ou passará à história como os anteriores, protocolar e desconhecido?
HA - A julgar pelos preparativos e métodos observados, sinceramente não vejo novidades nem na forma nem no conteúdo. Será mais um …
ATALAYAR - A corrente a que preside, a Iniciativa Saharauí para a Mudança (ISC), será admitida como tal dentro da Frente para participar no Congresso?
HA - Antes de mais, uma precisão: eu não presido. Aliás, esse cargo não existe. Eu sou apenas o porta-voz. Sim, de facto era essa a nossa intenção. Acreditamos que uma corrente crítica interna é essencial para corrigir o defice democrático que a POLISARIO vem a arrastar desde a sua fundação, há quase meio século. É uma necessidade histórica se levarmos em conta o acumular de erros e desacertos, alguns dos quais imperdoáveis, em que incorreram membros importantes da direcção da POLISARIO. Mais do que erros, alguns factos foram crimes de pleno direito, execuções extrajudiciais de pessoas inocentes. A ISC pede que os supostos responsáveis sejam afastados e julgados e que uma Comissão da Verdade investigue o sucedido.
ATALAYAR - Receberam algum convite para participar, a título individual ou colectivo?
HA - Oficialmente não recebemos nenhum convite. Extra-oficialmente, muitos insultos e acusações através das suas redes e meios de manipulação da informação. Aparentemente, o núcleo duro que dirige a POLISARIO desde os anos setenta do século passado permanece alérgico a qualquer mudança ou opinião diferente ou adversa. De qualquer modo, já é tarde para convites. A nossa proposta era abrir, com tempo suficiente antes do Congresso, um diálogo e ir a uma Conferência ou Assembleia com poderes constituintes para rever e modificar alguns conteúdos dos Estatutos e do texto constitucional, a fim de adaptá-los aos novos tempos. Existem vestígios e formas de um passado totalitário que precisam de ser corrigidos. Aspiramos a introduzir novos ares no antigo sistema de partido único, uma maior abertura democrática, uma nova cultura política baseada na diversidade de ideias.
O correcto era passar por esta fase antes do Congresso. Infelizmente, a direcção da POLISARIO refugiou-se novamente nas suas trincheiras de resistência, perdendo a oportunidade de renovação e adaptação ao século XXI. Se a ISC não encontrar o seu lugar, como corrente interna reconhecida, numa POLISARIO democrática, não terá outra opção senão estabelecer-se como uma outra referência, não menos legítima ou representativa do povo saharauí. Esta é a proposta que defenderei pessoalmente na ISC. Não é a primeira vez que um movimento revolucionário que, originalmente, adquiriu a sua legitimidade por ter desencadeado a luta armada acaba por a perder parcial ou totalmente por má gestão, corrupção ou outras causas. Observámos isso na Frente Sandinista da Nicarágua, na OLP de Yaser Arafat e muito recentemente no Zimbabué por parte da Zanu, o movimento do ex-Presidente Robert Mugabe.
A nossa segunda Assembleia, prevista para o primeiro semestre do próximo ano, avaliará todos os cenários e as nossas opções para o futuro.
ATALAYAR - Existe algum indício que faça acreditar que a actual direcção da Frente permitirá a discussão sobre a democracia e o funcionamento interno no Congresso de Dezembro?
HA - Sinceramente estou pessimista. As nossas tentativas nos dois últimos chocaram contra um muro inexpugnável. É uma direcção que, durante décadas, encontrou na guerra e na excepcionalidade da situação desculpas para se abrigar dos ventos de mudança que sopraram de todos os pontos cardeais. Tornaram-se reféns de um sistema político e de um discurso ultrapassados que os fez perder credibilidade e oportunidades irrepetíveis. Tentam resistir até à força imparável das leis da biologia.
ATALAYAR - Acha que é um bom sinal a direcção de Brahim Ghali ter libertado os três bloguistas presos desde Junho?
HA - O que é um bom sinal foi a conduta irrepreensível dos magistrados que não se deixaram pressionar pelos responsáveis políticos. A detenção arbitrária dos três activistas é precisamente um exemplo do fracasso da POLISARIO em se adaptar aos novos tempos. Mesmo na Coreia do Norte, hoje é difícil reprimir as pessoas apenas por criticarem os governantes. Espero que tenham aprendido a lição. (…)
Dias depois o Primeiro Ministro da RASD, Mohamad Elouali Akeik, concedeu uma entrevista1 a Gorka Andraka Ibargaray, jornalista de El Salto, onde o Congresso foi também um dos temas:
El Salto - De 19 a 23 de Dezembro, realizar-se-à em Tifariti, nos Territórios Libertados do Sahara Ocidental, um novo congresso no qual, entre outros tópicos, será discutido o cessar-fogo. Qual a responsabilidade da Frente POLISARIO pelo fracasso do plano de paz da ONU?
MEA - Tivemos e temos as nossas críticas internas. E não são poucas. A primeira é ter aceite o cessar-fogo sem qualquer garantia, aceite o plano de paz baseado apenas na confiança. E, no fim, vimos que não tínhamos muita experiência nisso porque as Nações Unidas não garantem nada. Então, essa primeira crítica vem daí. Não precisávamos de aceitar o cessar-fogo, tinham que ter continuado as negociações ainda em guerra até que um acordo fosse alcançado, e cumprido, entre as duas partes. Hoje, continua a dizer-se à Frente POLISARIO de que a situação actual é uma consequência da nossa decisão de ter aceite o que ainda não se tinha determinado ou garantido publicamente.
Por outro lado, também somos criticados pela longa espera por algo que desde o início se viu que não avançava nem avançaria. Criticam-nos ano após ano. Lembram-nos que a MINURSO, o Conselho de Segurança e a comunidade internacional não estão interessados numa solução. E isso é claro. Ano após ano, o plano de paz é prorrogado, mas sem limites, porque não há nada que incomode a ONU ou Marrocos. Enquanto isso, o povo saharauí é mantido lá com uma ração diária de pão e Marrocos é protegido para que fique calmo e silencioso, a saquear a riqueza do Sahara e a esperar por melhores momentos para acabar com esse conflito a seu favor. É por isso que somos criticados há muito tempo, porque não pomos fim a esta situação e voltamos à guerra. É a pressão que enfrentamos nos últimos 15 ou 20 anos. E tivemos dificuldade em convencer nos Congressos, que é onde a política é decidida e as decisões são tomadas, de modo a que nenhuma data e hora fossem definidas para o retorno à guerra. Nos últimos dois ou três Congressos custou-nos muito para que nos dessem outra oportunidade de alcançar uma solução pacífica para o conflito.
El Salto - Também criticam os dirigentes históricos por não deixarem as rédeas do governo nas mãos dos jovens.
MEA - Sim. Essa crítica tem sido feita nos últimos anos, de que a geração que começou é a que ainda lá está. Compreendemos bem essa mensagem e a nossa intenção é, gradualmente, fazer com que os jovens cheguem ao topo da direcção política de acordo com as suas experiências e capacidades. Não se pode fazer de repente porque a experiência também é necessária. Ao nível da direcção política somos todos favoráveis a essa transição, esse progresso, a essa mudança na direcção, tanto com jovens como com mais mulheres. Mas, ao mesmo tempo, também somos democratas, quando vamos às urnas só votam em nós os veteranos, mesmo que não o desejemos. E na nossa Constituição não nos é permitido renunciar. E depois, quando somos novamente eleitos, criticam-nos.
El Salto - Os jovens dizem para que vão concorrer se não têm possibilidades de serem eleitos.
MEA - Esse é o desafio, como criar essas possibilidades. Não é que não haja vontade. Garanto-lhe que há muita vontade de que participem e dêem uma nova dinâmica e energia à nossa política. Desejamos de todo o coração que neste Congresso haja uma boa mudança, uma boa percentagem, e trabalharemos para isso. Mas o problema é que aqueles que têm estado aí são os mais conhecidos e as pessoas que vão às urnas dizem que a este não o conheço, não sei o que poderá fazer ... e fica um pouco receoso de deixar o futuro em novas mãos. Eu já não consigo resistir como resistia há 30 anos. Então era jovem, forte, podia ficar 24 horas sem descansar, mas hoje tenho menos força e capacidade.
El Salto - Não pode renunciar, mas pode não se candidatar.
MEA - Não. Nem isso. Não te candidatas, candidatam-te. No congresso elege-se um comité eleitoral de cerca de 100 pessoas, que é o que apresenta uma lista de candidatos. Nessa lista aparecem os que já lá estavam, adicionam-se mais dois terços e deixa-se a porta aberta para quem quiser candidatar-se. Mas não se te dá a oportunidade de excluir o teu nome da lista.
O Congresso foi antecedido de uma conferência preparatória que teve lugar em Tifariti, local onde decorreu o Congresso, na zona libertada, entre 15 e 18 de Dezembro.
No final dos trabalhos a agência SPS divulgou um despacho onde dá conta dos seus resultados:
«Durante três dias, mais de 2.000 participantes debateram a situação no Sahara Ocidental. As subcomissões, a comissão preparatória do Congresso, apresentaram, nesta ocasião, documentos e relatórios sobre a situação nos campos de refugiados saharauís, o impasse no processo de solução do conflito liderado pelas Nações Unidas, (...).
«No seu discurso na abertura da Conferência no domingo, o Presidente da República, Secretário-geral da Frente POLISARIO, Brahim Ghali, insurgiu-se contra o bloqueio do processo de resolução do conflito no Sahara Ocidental, denunciando o papel da França na manutenção de tal situação.
«O Presidente Ghali enfatizou que "este 15º congresso da Frente POLISARIO deve ser uma oportunidade para transformações reais, através das quais o povo saharauí deixará claro que nada o desencorajará a continuar a sua justa luta e a usar todas as formas legítimas, até que a plena soberania seja recuperada em todo o território da República Árabe Saharauí Democrática (RASD)".
«Referindo-se aos desafios enfrentados pelo povo saharauí, o Sr. Ghali disse que "a situação actual requer uma avaliação cuidadosa e uma análise objectiva de todo o plano de acção nacional entre os dois congressos, em particular, e a situação da nossa luta de libertação, em geral. Temos que investir nos pontos fortes e, ao mesmo tempo, identificar as falhas para superá-las de maneira abrangente e ponderada"».
O jornalista Jose Carmona, do jornal Público (de Espanha), acompanhou o desenrolar dos trabalhos do Congresso. Escreveu ele no dia 19: «Num evento que reúne as mais altas instâncias do partido e do governo saharauí, a Frente POLISARIO decidirá sobre três questões que parecem fundamentais: a recuperação da luta armada através de um reforço do Exército, o provar que o movimento tem mais vida para além da geração que travou a guerra contra Marrocos e a criação de instituições orgânicas pela transparência democrática». Chama a atenção para o facto de o local da reunião ser Tifariti, o «que tem uma enorme carga simbólica» para os saharauís: «era um território reconquistado durante a guerra com Marrocos e fica a cerca de 65 km do muro que separa as duas nações.»
Para Jose Carmona «O principal debate do XV Congresso da POLISARIO girará em torno de centrar, ou não, os esforços da nação no reforço do Exército. Ferida e diminuída desde o armistício, uma corrente da Frente POLISARIO considera essencial recuperar o espírito de luta para regressar aos focos das notícias internacionais. A proposta teria como objectivo final o reinício do confronto militar, embora exclua fixar prazos para evitar derramamento de sangue no que hoje seria uma luta desigual.»
E acrescenta: «A luta pela libertação do povo saharauí está cada vez mais relegada para segundo plano. A Frente POLISARIO reconhece esse problema e apercebe-se de uma desmobilização entre as novas gerações. A organização detecta uma quebra geracional com aqueles que não conheceram ou não se lembram da luta armada contra Marrocos devido ao cessar-fogo acordado com base no plano de solução da ONU e da União Africana. Por isso, um dos objectivos do Congresso é o de iniciar um processo de integração dos jovens que os coloque em posições de comando e responsabilidade.
«O povo saharauí duplicou a sua população desde 1991, mas grande parte dos jovens tem como único objectivo a migração para a Europa como rota de fuga. A República, dirigida por Brahim Ghali (com 73 anos), quer que os jovens dêem mais força à luta para que esta não morra com eles. O exílio esgota e a inacção frustra. Neste aperto, encontra-se um povo que, sabendo que a África é um território de paciência e esquecimento, se divide entre recarregar as armas ou morrer no deserto.»
No dia seguinte (20 de Dezembro) Jose Carmona continuou na sua abordagem ao Congresso sob o título «Miragens de guerra no sul de Marrocos». Segundo ele, os saharauís
«Há muito tempo que clamam por atenção diplomática para renegociar a paz com Marrocos, embora a inacção dos últimos 28 anos tenha provocado a intensificação do discurso. Há um momento em todas as histórias em que as ameaças vão além da sua própria ficção e tornam-se uma cruel realidade. (…).
«Não é novidade que a Frente ameace com um ultimato, apesar de Ghali querer deixar claro que haveria que "repensar o compromisso com o processo de paz", uma nuance que confirma o mal-estar generalizado com a Europa. "Planeamos usar todos os meios à nossa disposição para impor as nossas aspirações legítimas à independência", argumentou ele (…).
«A tensão das palavras do presidente contrasta com a cautela daqueles representantes que falam onde o seu povo não os pode ouvir. Perante os microfones ligados exortam à guerra para mostrar que nem tudo está perdido, embora uma vez estes desligados nem querem pensar em lutar contra Marrocos.
«Fontes de uma delegação do partido desdizem o presidente e garantem que não estão em condições de lutar, já que primeiro seria necessário executar um plano que equipe e prepare o Exército. Qualquer outra coisa seria um K.O. ao primeiro assalto. "Estamos cansados da estagnação, mas isso não significa que vamos optar por uma acção militar", esclarece o ministro da RASD para o relacionamento com as nações da África, Handi Meyara. O político vê o discurso de Ghali, beligerante e impaciente, como uma resposta à atitude dos dirigentes marroquinos. (…).
«Sentimos que somos a vítima silenciosa das potências europeias, especialmente de Espanha e França, que protegem Marrocos, e isso é inaceitável”, afirma o ministro.»
E conclui o jornalista: «A guerra é uma opção cada vez mais real para uma geração que tem vivido em precariedade e esquecimento, mas longe da violência militar. "A guerra nunca é uma opção desejada, mas somos obrigados a seguir esse caminho para defender os nossos direitos", diz Meyara, (...).»
O Congresso foi prolongado por mais 48 horas a fim de permitir o apuramento de votos para os órgãos superiores da Frente POLISARIO. Sem surpresas Ghali foi reeleito com 86% dos votos. Um pequeno e ridículo incidente foi despoletado por Marrocos que apontou logo o dedo à ONU. Intimidado, o Secretário-geral Guterres mandou o seu porta-voz, o francês Stéphane Dujarric, prestar esclarecimentos à imprensa.
Como relatou o jornalista Jesús Cabaleiro Larrán,
«A breve presença de dois observadores militares da Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (MINURSO) no 15º Congresso da Frente POLISARIO, (...), motivou a necessidade de uma explicação por parte das Nações Unidas na sequência de ataques desferidos por Marrocos, que chegou a qualificar o ocorrido de “escândalo”.
«Esta presença “não implica nenhuma posição política” da MINURSO que continua a ser “estritamente imparcial no desempenho do seu mandato”, declarou o porta-voz do Secretário-geral da ONU.»


DESAFIAR A POLÍTICA DE ISOLAMENTO DO SAHARA OCIDENTAL

Em Dezembro passado Isabel Lourenço, cidadã portuguesa, foi expulsa do Sahara Ocidental. Prossegue a política marroquina de isolamento do território.

Isabel Lourenço
 
Das primeiras notícias de há precisamente um ano ressaltava a expulsão de duas cidadãs espanholas que tinham partilhado a noite de passagem do ano em El Aaíun com a família de um amigo, refugiado político saharauí no País Basco. Qualquer pessoa pode ser o alvo desta medida. Jornalistas, advogados/as, investigadores/as, deputados/as, activistas dos Direitos Humanos ou simplesmente cidadãs e cidadãos de outros países. Entre 2015 e 2018 foram expulsas ou deportadas 175 pessoas de 17 nacionalidades, de acordo com a Associação Saharauí de Vítimas de Violações Graves dos Direitos Humanos (ASVVDH) cometidas pelo Estado marroquino. Só até Abril de 2019 foram expulsos 17 estrangeiros do território ocupado. O relatório dos Jornalistas Sem Fronteiras Sahara Ocidental: um deserto para o jornalismo, de Junho de 2019, detalha os dados relativos aos e às jornalistas.
O objectivo é triplo: bloquear as notícias sobre o que se passa no Sahara Ocidental sob ocupação marroquina; desencorajar outros profissionais e cidadãos de tentar fazer tal viagem, tendo em conta os custos (financeiros, e não só) que isso implica, sem resultados; e impedir o contacto dos saharauís com o mundo exterior, alimentando o seu isolamento e fragilidade.
Isabel Lourenço, activista dos Direitos Humanos, que tem acompanhado a questão do Sahara Ocidental há largos anos, e investigadora no Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (CEAUP), através do qual publicou recentemente um relatório sobre as crianças e os estudantes saharauís sob a ocupação, foi classificada pelas autoridades marroquinas como persona non grata que estava a tentar atacar a soberania do Reino de Marrocos e, contra a sua vontade, foi expulsa do Sahara ocupado e enviada para Agadir num táxi colectivo no dia 10 de Dezembro (Dia Internacional dos Direitos Humanos). O seu computador e telemóveis foram desconfigurados à força. Tudo isto, apesar de cumprir todos os requisitos legais exigidos por Marrocos para entrar no país, e de nunca ter escondido os seus objectivos: acompanhar a situação das famílias dos presos de Gdeim Izik, avaliar da situação actual das famílias do detido de 19 anos Mansour El Moussaui e de Mahfouda Lefkir, mãe de 34 anos e prima de Mansour que foi condenada a 6 meses de prisão e a uma multa de 2.000 Dirham por gritar no final da sentença de Mansour, dentro da sala do tribunal, contra a ocupação marroquina e a injustiça do julgamento. A descrição pormenorizada do que aconteceu, elaborada pela própria, pode ser encontrada aqui.
Alguns partidos políticos portugueses reagiram de imediato:
- No próprio dia 10, deputados do Bloco de Esquerda enviaram ao Governo, por escrito, três perguntas:
  1. Tem o Governo conhecimento desta situação?;
  2. Que diligências encetou o Governo, pelos canais diplomáticos e por todos os outros canais, junto do Governo de Marrocos, para assegurar a defesa integral dos direitos de Isabel Lourenço e a sua segurança pessoal?;
  3. Tenciona o Governo exprimir ao Governo de Marrocos reprovação por esta expulsão de uma cidadã portuguesa que cumpriu todos os requisitos para entrada e permanência em Marrocos e em nenhum momento atentou contra a segurança e a ordem pública daquele país?
- No dia 16, Francisco Guerreiro, eurodeputado do PAN interveio na sessão plenária do Parlamento Europeu condenando a repressão nos territórios ocupados do Sahara Ocidental e a recente expulsão de Isabel Lourenço, enfatizando que a continua repressão contra activistas e o povo saharauí pelo Reino de Marrocos tem de terminar e que a Comissão Europeia tem de tomar uma posição firme em defesa dos direitos humanos no Sahara Ocidental.
- No dia 17, Sandra Pereira, eurodeputada do Partido Comunista Português, dirigiu duas perguntas escritas à Comissão Europeia sobre a expulsão de Isabel Lourenço:
  1. A Comissão tomou conhecimento desta situação ilegal? Tomou alguma medida para se inteirar das condições da cidadã portuguesa?;
  2. Face às repetidas violações dos direitos humanos por parte do Reino de Marrocos a Comissão considera suspender os acordos que assinou com Marrocos, considerando as cláusulas de defesa dos direitos humanos neles presentes?
- No dia 20, por iniciativa do PAN, a Assembleia da República, reunida em plenário, aprovou o voto n.º 123/XIV/1.ª, com votação a favor do Bloco de Esquerda, Partido Comunista Português, Partido Pessoas, Animais e Natureza, Partido Ecologista Os Verdes, Iniciativa Liberal e Partido Livre. Votaram contra CDS-PP e CHEGA e abstiveram-se PS e PSD. Nele se afirmava que o Parlamento:
«não pode deixar de manifestar a sua preocupação pelas limitações impostas pelas autoridades do Reino de Marrocos à acção dos activistas dos direitos humanos e das suas organizações no Sahara Ocidental e pelo isolamento que é imposto aos presos políticos Saharauís. Estes factos demonstram, também, a urgência que existe em alcançar uma solução justa e duradoura para o Sahara Ocidental, que, assegurando o respeito pelos princípios da Carta das Nações Unidas e do direito internacional, garanta a efectivação do direito à autodeterminação do povo Saharauí.
Assim, a Assembleia da República, reunida em plenário, manifesta a sua condenação pela expulsão da activista portuguesa Isabel Lourenço dos territórios ocupados do Sahara Ocidental e apela ao Governo do Reino de Marrocos que respeite os direitos fundamentais dos activistas de direitos humanos, dos presos políticos Saharauís e do povo Saharauí em geral.»
Rompendo a indiferença informativa habitual, vários órgãos de comunicação social portugueses deram conta do sucedido, mas poucos noticiaram as reacções dos partidos políticos que se seguiram.


SAHARA OCIDENTAL: RECONHECIMENTO INTERNACIONAL DA LUTA PELA LIBERDADE E A JUSTIÇA

Dezembro é um mês de balanços e a luta pela liberdade e a justiça não podia escapar a esse escrutínio. O reconhecimento brotou na Suécia que premiou o empenhamento de uma personalidade e de uma associação na emancipação do Sahara Ocidental.

Aminatou Haidar (foto Fundação Right Livelihood)

No passado dia 4 de Dezembro a Fundação Right Livelihood entregou em Estocolmo os seus prémios anuais – o Prémio Right Livelihood - a quatro activistas dos direitos humanos.
Os laureados deste ano foram:
- «a defensora dos direitos humanos Aminatou Haidar (Sahara Ocidental)» pela «sua firme acção não-violenta, apesar da prisão e tortura, em busca de justiça e autodeterminação para o povo do Sahara Ocidental»;
- «a advogada Guo Jianmei (China), pelo seu trabalho pioneiro e persistente em garantir os direitos das mulheres na China»;
- «a activista ecológica Greta Thunberg (Suécia), por inspirar e ampliar a exigência política por uma acção climática urgente que reflicta factos científicos»;
- e «o dirigente indígena Davi Kopenawa e a Associação Hutukara Yanomami (Brasil), pela sua determinação corajosa em proteger as florestas e a biodiversidade da Amazónia e as terras e as culturas dos seus povos indígenas».
Ole von Uexkull, director executivo da Fundação Right Livelihood, ao anunciar os eleitos disse: «Prometemos aos laureados um apoio a longo prazo e a apresentação do Prémio em Estocolmo é o ponto de partida celebrativo da nossa cooperação. O nosso trabalho de apoio será adaptado às necessidades específicas dos laureados e esperamos ampliar o seu trabalho pioneiro.»
Como nos é contado no sítio da Fundação, «Passaram-se 40 anos desde que a Fundação Nobel recusou a criação de um prémio ambiental e o filantropo sueco-alemão Jakob von Uexkull decidiu estabelecer o Right Livelihood Award, amplamente conhecido como o "Prémio Nobel Alternativo" e hoje um dos mais prestigiados prémios em sustentabilidade, justiça social e paz.»
Na ocasião, a jornalista Amy Goodman (laureada em 2008 e que se encontrava em Díli aquando do massacre de 12 de Novembro de 1992) moderou uma conversa com o lançador de alertas Edward Snowden (laureado em 2014), que participou através de uma ligação a partir de Moscovo.
«Antes de mais, gostaria de agradecer ao júri internacional do prémio Right Livelihood pela honra que me concedeu. É um reconhecimento da luta do meu povo pela liberdade e independência, mas também uma homenagem à dignidade humana e aos princípios e valores dos direitos humanos e dos povos». Assim começou Aminatou Haidar, presidente da associação CODESA (colectivo de defesa dos direitos humanos do povo saharauí), a sua declaração. E continuou: «Permitam-me que felicite também os outros três vencedores que partilham comigo este prémio. Quero dizer-lhes que as suas lutas são nossas e que são complementares e buscam uma humanidade mais justa, mais respeitadora dos direitos humanos, da natureza e da grande pátria que nos abriga a todos, a nossa mãe Terra.»
Lembrou que a experiência dela não é um caso isolado mas identifica-se com o de «muitos dos meus compatriotas, alvo de injustiças, violações de direitos humanos, humilhações, desaparecimentos forçados, torturas e privações, mas também de resistência, sacrifício, recusa de submissão e determinação em defender os direitos humanos e dos povos».
«As partes directamente responsáveis por esse sofrimento são o Estado marroquino de ocupação, que ainda se recusa a reconhecer os nossos direitos como povo saharauí. Mas outros países europeus também são responsáveis pelo nosso sofrimento, como a Espanha, que falhou nas suas responsabilidades em relação à sua antiga colónia, a França, que protege e apoia Marrocos no Conselho de Segurança e, é claro, a ONU, que falhou na implementação das suas resoluções sobre o nosso direito à autodeterminação e independência e se tornou a protectora do status quo, apoiando de certa forma a ocupação». Acrescentando que «à União Europeia também cabe parte dessa responsabilidade, devido à sua persistência em saquear os nossos recursos naturais com a cumplicidade de Marrocos, em total violação de todas as leis.»
No Sahara Ocidental «queremos um mundo de democracia, de respeito pelos direitos humanos, de soberania dos povos sobre as suas riquezas e de respeito pelos valores e princípios do direito internacional que governam as relações entre povos e nações. «Eles querem um mundo que idolatra os interesses em detrimento das leis, um mundo de violência e poder em detrimento da paz, um mundo de subjugação e opressão em detrimento da amizade entre os povos e de cooperação construtiva para a coexistência pacífica». Em compensação, «o mundo que queremos como povo saharauí, como defensor pacífico dos direitos humanos e dos povos, é um mundo em que podemos usufruir do nosso direito a um futuro decente para as gerações futuras. Este mundo é muito diferente do mundo da tirania.»
E concluiu: «Finalmente, faço-vos um apelo para virem em nosso auxílio. Fiquem connosco e salvem muitos de nós da opressão da ocupação marroquina. Salvem mulheres e crianças pacíficas e inocentes, e convido-vos a juntarem-se à luta humanitária para libertar dezenas de presos políticos saharauís condenados a penas pesadas e injustas.»
Afrikagrupperna

Mas não foi só Aminatou Haidar a ver reconhecido o seu empenhamento na luta contra a opressão colonial marroquina. O grupo Equipe Média — que esteve presente no DocLisboa 2018 – foi premiado pelo Afrikagrupperna, uma organização sueca fundada em 1974 de apoio a campanhas de educação e informação em África (envolveu-se na luta contra o regime de apartheid na África do Sul).
Na nota informativa dando conta da atribuição do prémio divulgada no final do ano, justificam assim a sua escolha:
«A Equipe Média foi fundada em 2009 e usa um método não violento para romper o bloqueio informativo. Os seus membros trabalham em segredo documentando as violações dos direitos humanos no Sahara Ocidental ocupado. Acompanham e relatam manifestações públicas, ataques policiais, prisões e julgamentos. Os seus filmes e fotografias são distribuídos a organizações internacionais de direitos humanos e testemunham os actos brutais das forças de segurança marroquinas contra a população do Sahara Ocidental.
«O Sahara Ocidental ocupado é, na prática, inacessível aos meios de comunicação internacionais e aos observadores de direitos humanos. Vários jornalistas e observadores estrangeiros foram expulsos do território ou viram a sua entrada recusada. A Equipe Média ajudou os poucos que conseguiram entrar no Sahara Ocidental.
«A MINURSO, a missão da ONU que é usada há décadas para monitorizar um referendo (continuamente adiado por Marrocos), é a única intervenção da ONU que não tem autoridade para informar sobre crimes contra os direitos humanos. Na ausência de observadores internacionais, os informantes saharauís são a fonte de documentação dos abusos diários. A Equipe Média desempenha um papel fundamental na disseminação de informações sobre o Sahara Ocidental para o resto do mundo.
«A Afrikagrupperna decidiu entregar o prémio de solidariedade deste ano à Equipe Média, porque consideramos o trabalho deles como uma verdadeira acção de solidariedade. Com as suas acções corajosas para documentar as violações de direitos humanos e disseminar as informações coligidas por todo o mundo, a Equipe Média trabalha para acabar com a ocupação e melhorar as condições de vida do povo do Sahara Ocidental.»








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