sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Boletim nº 79 - Dezembro 2019


EUCOCO 44: DIREITO À AUTODERTERMINAÇÃO, SEMPRE

Entre 1975 e 2019, o objectivo permanece o mesmo: garantir que o povo saharauí pode exercer livremente o seu direito à autodeterminação. Já vão quase 45 anos e a luta continua. 

EUCOCO: desde 1975

 

Cerca de 400 participantes de vários pontos da Europa e mesmo de outros continentes, entre as quais muitos cidadãos e cidadãs saharauís, vindos do exílio nos Acampamentos, do Território Ocupado e a viver em Espanha, encontraram-se em Vitória-Gasteiz, no País Basco. Em 1975, na cidade de Haia, ao arrancar a 1ª EUCOCO (Conferência Europeia de Apoio e Solidariedade com o Povo Saharauí), eram doze pessoas à volta da mesa.
Durante dois dias fez-se o ponto da situação política e diplomática, ouviram-se muitas organizações, governamentais e não-governamentais, parlamentares e responsáveis políticos, reencontraram-se companheiros/as e conheceram-se novas pessoas, partilharam-se avanços e impasses, materiais e ideias de actividades. À margem desta EUCOCO 44 reuniram-se parlamentares de três continentes (Europa, África e América Latina), juristas especializados na questão saharauí e representantes de sindicatos de vários países, entre os quais a CGTP.
Parte do tempo foi utilizada em trabalho de grupos, temáticos - “Acção política e informação”, “Direitos humanos”, “Espoliação de recursos naturais”, “Consolidação do Estado saharauí” - de onde saíram uma caracterização do momento e propostas de acção no respectivo âmbito. No final, foi lida uma Declaração, sintetizando o debate.
Percorreram a 44ª EUCOCO dois tipos de sentimentos: a convicção da justiça das exigências do povo saharauí, comprovada pelo Direito internacional, e a determinação em defender esses direitos; em simultâneo, uma “zanga” perante a incapacidade de as instâncias apropriadas – as Nações Unidas, a União Europeia, a Espanha enquanto Potência Administrante – se recusarem a fazê-lo. A paciência está a esgotar-se.
Ficou mais uma vez claro que, perante as várias resoluções da Assembleia Geral da ONU, o parecer do Tribunal de Haia de 1975, os acórdãos do Tribunal de Justiça Europeu (TJUE) dos últimos anos e a decisão adoptada pela Audiência Nacional de Espanha a 4 de Julho de 2014, o Sahara Ocidental é um território pendente de um processo de descolonização, a Espanha, apesar dos vergonhosos Acordos de Madrid de 1975, continua a ser a Potência Administrante do território, Marrocos é a potência ocupante e a Frente POLISARIO é o legítimo representante do povo saharauí. Toda a argumentação jurídica é transparente e inequívoca.
A maior desilusão é a condução do processo de descolonização pela ONU, à qual cabe essa responsabilidade. O novo Secretário-geral, António Guterres, começou bem, indicando um Representante pessoal que foi capaz de relançar as conversações entre as partes interessadas e criar um novo ritmo. Perante as dificuldades, a demissão repentina do seu Representante pessoal, e as pressões do costume, nomeadamente da França, membro do Conselho de Segurança, o processo parou e até hoje o Secretário-geral da ONU não deu mais nenhum passo. Em Março de 2020 terá de apresentar um novo relatório ao Conselho de Segurança.
A forma como a União Europeia tem gerido as relações com Marrocos provoca repulsa: ao arrepio dos pareceres do TJUE, todos os truques são usados para manter inalterados os tratados assinados com a Potência Ocupante do Sahara Ocidental. Perante estas violações, um novo parecer foi pedido pela Frente POLISARIO, reconhecida nestes documentos como único representante do povo saharauí, ao mesmo Tribunal.
A cadeia de desresponsabilização está assim montada: os países europeus, em particular a França, cúmplice de Marrocos, que funciona como seu protectorado, e a Espanha, Potência Administrante que se nega a assumi-lo, mas também todos os outros países, escudam-se nas decisões da União Europeia. Esta, para além de se furtar ao cumprimento das suas próprias determinações, escuda-se amiúde nas Nações Unidas. E a ONU não cumpre com o compromisso com a sua própria Carta e resoluções.
Neste contexto, identificaram-se vias para romper o impasse:
  • pedir ao novo governo em Madrid que reconheça os erros do seu processo de descolonização em 1975 e assuma o seu estatuto de Potência Administrante, participando activamente nas negociações que, de acordo com o Direito Internacional, devem levar à realização de um referendo livre e justo;
  • exigir coerência e transparência nas políticas europeias, nomeadamente no que diz respeito à defesa dos direitos humanos do povo saharauí (incluindo o direito à autodeterminação) e o fim da espoliação dos seus seus recursos naturais;
  • pressionar o Secretário-geral da ONU para que promova e apoie digna e decisivamente o processo de descolonização do Sahara Ocidental em curso.
Em Dezembro celebrar-se-á o Congresso da F. POLISARIO, nas vésperas de se assinalarem 45 anos da invasão marroquina do território, do infame Tratado de Madrid e da fuga forçada para o exílio de milhares de saharauís, que desde então vivem precariamente nos Acampamentos em território argelino. Exactamente quando termina a 3ª Década para a Erradicação do Colonialismo proclamada pela ONU!
É tempo de escutar o povo do Sahara Ocidental e de agir.

TJUE: OBRIGATÓRIA A MENÇÃO DO TERRITÓRIO DE PROVENIÊNCIA

No passado dia 12 de Novembro o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) pronunciou uma sentença com um largo impacto nos diversos acordos comercias (e políticos!) que a União tem vindo a celebrar à revelia do direito internacional e, logo, da política externa que afirma prosseguir.

TJUE: identificação de origem obrigatória

 

Em resposta a um “pedido de decisão” apresentado pela Organisation Juive Européenne e pela Vignoble Psâgot Ltd, uma empresa israelita que explora os vinhedos nos territórios ocupados dos montes Golã e da Cisjordânia, pondo em causa a «legalidade de um parecer relativo à indicação da origem das mercadorias dos territórios ocupados pelo Estado de Israel desde Junho de 1967», o Tribunal reafirmou a «Menção obrigatória do país de origem ou do local de proveniência de um género alimentício no caso de a sua omissão ser susceptível de induzir os consumidores em erro» e a «Obrigação de os géneros alimentícios originários dos territórios ocupados pelo Estado de Israel conterem a indicação do seu território de origem, acompanhada, caso provenham de um colonato israelita situado nesse território, da indicação dessa proveniência.»
O Tribunal justificou a sua decisão pela necessidade «(...) de atingir um elevado nível de protecção da saúde dos consumidores e de garantir o seu direito à informação», pelo que «importa assegurar uma informação adequada dos consumidores sobre os alimentos que consomem. Os consumidores podem ser influenciados nas suas escolhas por considerações de saúde, económicas, ambientais, sociais e éticas, entre outras.»
«Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara: (…) os géneros alimentícios originários de um território ocupado pelo Estado de Israel devem conter não só a indicação desse território mas igualmente, no caso de esses géneros alimentícios provirem de uma localidade ou de um grupo de localidades que constituam um colonato israelita nesse território, a indicação dessa proveniência.»
No seu acórdão o Tribunal cita anteriores decisões suas no quadro da abordagem que fez à situação do Sahara Ocidental e ao aproveitamento que o regime marroquino realiza com os seus recursos. Fá-lo ao esclarecer os conceitos de “Estado” («Acórdão de 21 de Dezembro de 2016, Conselho/Frente Polisário, C-104/16 P, EU:C:2016:973, n.° 95») e de “território”. E lembra: «Como o Tribunal de Justiça já salientou, essas entidades compreendem, nomeadamente, espaços geográficos que, embora estejam sob a jurisdição ou a responsabilidade internacional de um Estado, dispõem, no entanto, à luz do direito internacional, de um estatuto próprio e distinto do desse Estado (v., neste sentido, Acórdãos de 21 de Dezembro de 2016, Conselho/Frente Polisário, C-104/16 P, EU:C:2016:973, n.os 92 e 95; e de 27 de Fevereiro de 2018, Western Sahara Campaign UK, C-266/16, EU:C:2018:118, n.os 62 a 64).»
No documento de trabalho apresentado na última reunião da EUCOCO, aborda-se esta decisão do TJUE e refere-se que «segundo os advogados de direito público internacional, esta resolução poderia aplicar-se aos acordos de comércio livre entre a UE e Marrocos. Este argumento reforçará ainda mais a posição da Frente POLISARIO nos seus recursos perante este mesmo Tribunal contra os novos acordos agrícola e pesqueiro da UE com Marrocos, que incluem ilegalmente o Sahara Ocidental. Isto é tanto mais assim quando esta resolução do TJUE acontece no momento em que a Oficina Cheridiana de Fosfatos (OCP) reconheceu num comunicado de imprensa de 5 de Novembro de 2019 que o Sahara Ocidental não faz parte de Marrocos.»
O documento de trabalho passa em revisão o comportamento das instâncias da União nesta matéria: «Numa questão similar, em 6 de Novembro, a Comissão de Comércio Internacional (INTA) do Parlamento Europeu adoptou uma resolução que estabelece um mecanismo para que as autoridades aduaneiras da UE obtenham informações fiáveis e detalhadas sobre os produtos originários do Sahara Ocidental. (…). O objectivo final é informar o consumidor sobre a origem do produto, para não o induzir em erro, porque o consumidor deve ter a oportunidade de tomar uma decisão baseada em razões éticas.
«O representante do Director das Alfândegas da Comissão Europeia, que esteve presente na reunião da INTA, disse que todas estas informações são prestadas regularmente pelas autoridades marroquinas. Para além disso, também afirmou que Marrocos “se ocupa” das regiões “marroquinas” (incluindo o Sahara Ocidental ocupado).»
Os participantes na 44ª EUCOCO de 22 e 23 de Novembro passado não podiam ignorar esta vergonhosa política externa que utiliza o direito internacional conforme as suas conveniências comerciais: «O movimento de solidariedade com o povo saharauí lembra à Comissão Europeia e ao seu novo Alto Representante para a Política Externa, Josep Borrell, a sua obrigação de respeitar os acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia e de reconhecer a Frente POLISARIO como o único representante da Povo saharauí, legitimado para negociar acordos de cooperação.» 

AZIZA BRAHIM: «O QUE NOS UNE É A LUTA»

Na sua recente deslocação à Suíça a cantora saharauí Aziza Brahim conversou com Roderic Mounir, uma conversa que foi publicada na edição de 13 de Novembro de 2019 do jornal Le Courrier.

Aziza Brahim em San Sebastián

«De Sul a Norte, do silêncio das dunas à agitação das metrópoles europeias, passando por Cuba: Aziza Brahim afirma-se como migrante. Um movimento forçado pelo exílio, que ela consegue transformar num enriquecimento. Da sua tristeza tira a sua determinação. A sua música é uma evocação melancólica e um apelo à resistência.
«Porta-voz de um povo esquecido, o do Sahara Ocidental ocupado desde 1975 por Marrocos, Aziza Brahim nasceu num campo de refugiados junto à fronteira argelina. As mulheres saharauís formam a base do seu compromisso - nunca conheceu o pai, que ficou no país onde morreu. Instalada em Espanha depois de estudar em Cuba, graças a uma bolsa de estudo, Aziza Brahim publica nesta sexta-feira um novo álbum com o título de Sahari
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Aziza Brahim, Sahari, Glitterbeat Records (2019).
. Dez peças que ela escreveu ou co-escreveu e gravou em Barcelona. Aí canta com a sua voz clara e poderosa, toca tambor tabal e guitarras. Os seus concertos são momentos únicos de emoção e de partilha, focados na emancipação. Conversa antes da sua chegada no sábado a Onex para participar no Festival Os Criativos
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Em 16 de Novembro, 20h30, na Salle communale d’Onex.
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A capa de Sahari mostra uma jovem bailarina no deserto. O seu sorriso contrasta com o fundo, um campo de refugiados. Um símbolo do seu percurso de vida e a superação do sofrimento através da arte?
Aziza Brahim: Essa foto, assinada por Ana Valiño, simboliza a esperança. Não se refere apenas à minha história, mas à de todos os saharauís. Somos um povo exilado há quarenta e quatro anos, numa das regiões mais inóspitas do mundo. Mas não perdemos a esperança, somos resilientes e aspiramos a viver e a trabalhar em paz no nosso território. O que nos une é uma cultura, uma língua e uma longa tradição de luta pelos nossos direitos.
Qual é a recordação mais marcante que tem da sua infância?
Tenho muitas. A mais significativa é sem dúvida quando percebi que o lugar onde vivia não era realmente o meu país, mas um campo temporário para refugiados. Comecei a sonhar com a minha verdadeira casa através das lembranças dos meus antepassados.
Em Espanha, onde mora, estabeleceu vínculos estreitos com a cena musical, principalmente com Amparo Sánchez, ex-líder da banda de rock alternativo Amparanoia, também ouvida ao lado dos americanos Calexico.
Conheci Amparo Sánchez numa estação de rádio em Madrid durante a promoção do meu álbum Abbar el Hamada (2016). Eu admirava muito a sua carreira. Começámos a considerar a possibilidade de uma colaboração. Quando acabei de compor as faixas para o novo álbum, vi aí uma oportunidade. A sua contribuição foi crucial para a cor do álbum, foi ela que supervisionou as programações, teclados e saxofones.
Existe alguma música em particular que a sensibilize particularmente ou represente o álbum Sahari?
Cada uma das canções encarna a ideia de resistência em todos os desertos do mundo. Se tivesse que escolher uma seria Lmanfa (exílio), dada a minha ligação particular com o que ela diz: "A tua casa é aquela que no exílio / todas as tristes noites eu visitava. / Todo o rastro no caminho / desapareceu há muito."
A sua avó poetisa e a sua mãe cantora transmitiram-lhe o gosto da música e do verbo. Costuma evocar muitas vezes o papel central das mulheres na sociedade matriarcal saharauí. Como vê o surgimento de uma nova consciência feminista à escala global?
A minha avó e a minha mãe foram, certamente, óptimas fontes de inspiração mas as vozes das irmãs que se levantam são reconfortantes e dão coragem a todas as mulheres - não apenas às mulheres da indústria do entretenimento. É claro que as mulheres devem-se unir e lutar colectivamente para alcançar a igualdade de direitos neste mundo dominado pelos homens.
Há alguns meses, a sua participação no festival Arabofolies, em Paris, foi cancelada pelo Instituto do Mundo Árabe por pressão de Marrocos. Foi um choque, uma surpresa?
«Ambos, mas infelizmente não foi a primeira vez. Os diplomatas marroquinos estão constantemente a tentar silenciar-me. Eu não acreditava, porém, que tal censura fosse possível em França. Felizmente o concerto ocorreu numa pequena sala muito agradável, cheia a arrebentar pelas costuras, onde - como sempre - pude sentir o carinho do público francês.»


 

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