domingo, 4 de agosto de 2019

Boletim nº 75 - Julho / Agosto 2019


O ATAQUE À LIBERDADE DE IMPRENSA NO SAHARA OCIDENTAL E EM MARROCOS

As notícias sobre a actuação repressiva das autoridades de Rabat no Sahara Ocidental, mas também em Marrocos, têm passado em silêncio na comunicação social. E, no entanto, as vítimas dessa perseguição são colegas de profissão.

Un desierto para el periodismo

Os Direitos Humanos como moeda de troca

O jornal Le Monde publicou recentemente um artigo de Khadija Mohsen-Finan e Pierre Vermeren sobre o actual impasse político em Marrocos e onde são abordadas as relações entre a União Europeia (UE) e aquele país. Escrevem eles:
«Em troca do "bom comportamento" do reino sobre as questões dos migrantes ou do radicalismo religioso, a UE demonstra pouca consideração pelos direitos humanos em Marrocos. (...)».
«Em 2011, para responder às reivindicações políticas e sociais da "Primavera Árabe", o governo mudou “a quente” a Constituição. A oferta real, saudada pela França e pela UE, não mudou contudo em nada o sistema e foi apenas uma resposta marginal às exigências expressas pelos marroquinos. (...)»
«Aliado privilegiado e parceiro de segurança de europeus e americanos, Marrocos já não está sob pressão para abandonar o seu governo autoritário. (...)»
«O "bom comportamento" de Marrocos nestas questões ou na luta contra o terrorismo tem um preço. A UE e os países ocidentais mostram muito pouca consideração pelos direitos humanos. (...)»
«A Comissão Europeia não teve, por exemplo, qualquer escrúpulo em ignorar a opinião do Tribunal de Justiça da União Europeia. Com efeito, este decidiu que o acordo de pesca entre a UE e Marrocos não pode aplicar-se ao Sahara Ocidental, uma vez que este território não pertence a Marrocos ao abrigo do direito internacional.
«Apesar disso, o acordo renegociado foi assinado em Rabat em 24 de Julho de 2018, incluindo uma cláusula que parece totalmente inaplicável. Os saharauís, referidos neste texto como "habitantes da região", devem, de facto, beneficiar das somas recolhidas por Marrocos da venda de recursos haliêuticos nas águas do Sahara. Assim, o acordo renegociado continuou a favorecer Marrocos, mas também a UE (…).»

O ataque à liberdade de imprensa no Sahara Ocidental ...

Em Junho passado a organização dos Repórteres Sem Fronteiras (RSF) apresentou na Asociación de la Prensa de Madrid o seu relatório “Sáhara Occidental, un desierto para el periodismo” sobre a situação da liberdade de imprensa no território. Recorde-se que Marrocos ocupa o 135º lugar entre os 180 países e territórios analisados pelos RSF na sua Clasificación Mundial de la Libertad de Prensa. A apresentação contou com a presença do jornalista saharauí Ahmed Ettanji, fundador e presidente do colectivo Equipe Media.
Os RSF denunciam a perseguição sofrida por jornalistas saharauís por parte de Marrocos, que manipula com «mão de ferro» a informação no Sahara Ocidental, pune «implacavelmente» o exercício do jornalismo local e bloqueia o acesso dos media estrangeiros. Exercer jornalismo no Sahara Ocidental é «um acto de heroísmo», cujos protagonistas pagam com detenções arbitrárias, assédio das suas famílias, difamação, tortura, prisão e «sentenças tão pesadas quanto injustas». Citam, entre outros, os casos dos jornalistas El Bachir Khadda (condenado a 20 anos), Hassan Dah e Mohamed Lamin Haddi (condenados a 25 anos) e Abdellahi Lakhfawni (cadeia perpétua), presos aquando do acampamento de Gdeim Izik e ainda Mohamed Bambari, condenado a 12 anos de cadeia.
A organização exige que Marrocos permita que a imprensa internacional entre no Sahara Ocidental, com liberdade de movimento através do território, e ponha fim à expulsão de jornalistas, ao mesmo tempo que exorta o governo marroquino a garantir processos judiciais justos para os jornalistas saharauís presos. Pede a Marrocos que cumpra a Convenção contra a Tortura das Nações Unidas e respeite a integridade física e psicológica dos jornalistas e que respeite os direitos fundamentais no Sahara Ocidental, incluindo a liberdade de expressão e informação, que garanta não só o direito dos jornalistas a exercer o jornalismo livre, mas o direito das suas cidadãs e dos seus cidadãos a receberem informações plurais e verdadeiras.
Desafia também a UE, «e especialmente os governos de Espanha e da França», para que «quebrem o seu habitual silêncio cúmplice com Marrocos e condenem a repressão dos jornalistas saharauís». Para este silêncio contribui igualmente «a precarização nestes últimos anos da profissão de jornalista e a crise do modelo económico dos media». Há também um ponto de crítica à política informativa da Frente POLISARIO – «o papel da POLISARIO no esquecimento mediático do Sahara» – que, dizem, se baseia «em slogans de propaganda que mudaram muito pouco desde a estética dos anos 70», com uma linguagem nada atraente para os meios de comunicação e redes sociais que exigem informação que vá para além do mero clichê político. Os jornalistas consultados reclamam a falta de um departamento de comunicação activo na Delegação Saharauí em Espanha e de uma estratégia de comunicação por parte das autoridades saharauís e do movimento de solidariedade com o Sahara.
Os RSF afirmam que, apesar da severa repressão de Marrocos e do silêncio dos media internacionais, «uma nova geração de repórteres saharauís corre riscos extraordinários para manter viva a chama do jornalismo e impedir que o Sahara Ocidental seja enterrado pelas areias do esquecimento: eles desafiam o férreo controle marroquino e organizam-se na clandestinidade para dizer o que o governo de Rabat não quer que seja conhecido».
Terminam o relatório afirmando que «Os Repórteres Sem Fronteiras perguntaram sobre a situação dos jornalistas presos e sobre a liberdade de informação no Sahara Ocidental a várias instâncias do Governo de Marrocos, sem obter qualquer resposta».
O jornalista Ahmed Ettanji, que recebeu em Abril passado, juntamente com o seu companheiro Mohamed Mayara, o XII Prémio Internacional de Jornalismo Julio Anguita Parrado, concedeu posteriormente uma entrevista ao colega de Espanha Jesús Cabaleiro Larrán.
Desta entrevista ressaltamos duas perguntas e as respectivas respostas:
«JCL: Há que recordar também a situação dos estudantes saharauís nas universidades marroquinas, já que no território do Sahara não existe universidade. Alguns foram assassinados ou perseguidos ou presos.
AE: Os estudantes saharauís sofrem muitas violações dos direitos humanos. Nas universidades marroquinas sofrem a marginalização, são perseguidos, detidos, vigiados e discriminados por parte dos professores e da direcção das universidades.
JCL: Não podemos esquecer porém os saharauís que estão ao serviço de Marrocos e que vivem no território à sua sombra, alguns desde o início do conflito.
AE: Em qualquer causa e conflito há sempre vendidos, são comprados por Marrocos mas não têm influência no Sahara Ocidental. Nós, como saharauís, exigimos sempre o referendo, que os saharauís votem se querem autonomia ou independência, mas Marrocos teme uma tal consulta. Nós reivindicamos a democracia, seja qual for o resultado, mas através da vontade expressa nas urnas através de um referendo.»
Outra colega de Ahmed Ettanji, também da Equipe Media, perseguida pelas autoridades coloniais marroquinas é Nazha El Khalidi. Presa em 4 de Dezembro passado, quando estava a filmar e a transmitir ao vivo as violências policiais sobre uma manifestação na capital do Sahara Ocidental, foi acusada de «reclamar ou usurpar um título associado a uma profissão regulada pela lei sem cumprir as condições necessárias para o seu desempenho». No passado dia 8 de Julho foi julgada e condenada a pagar uma multa equivalente a 400 euros. Cinco observadores internacionais – três advogados de Espanha e dois norte-americanos – viram ser-lhes recusada a assistência ao julgamento (os primeiros nem os deixaram sair do avião).
«Quero denunciar o bloqueio mediático que Marrocos está a impor ao território do Sahara Ocidental. Apelamos também a nível internacional para pressionar o governo marroquino a abrir o território a observadores internacionais e agências noticiosas para que a violação dos direitos humanos do povo saharauí possa ser documentada», disse El Khalidi à Euronews.

… e em Marrocos

Mas o regime de Rabat não limita a liberdade de expressão apenas na sua colónia. Os próprios jornalistas marroquinos são alvo da repressão das autoridades, como o artigo do Le Monde nos lembra.
Um recente e elucidativo caso é o de Taoufik Bouachrine, um jornalista de 49 anos, editor e co-fundador do jornal liberal Akhbar Al Yaoum.
Conforme a sua esposa Asmae Moussaoui contou ao diário britânico The Guardian, o seu marido tinha sido avisado por Jamal Khashoggi – o jornalista assassinado no consulado saudita na Turquia em Outubro de 2018 - de que corria perigo de vida, meses antes de ser preso em Fevereiro de 2018. Bouachrine notabilizou-se pelos seus editoriais críticos dos governos marroquino e saudita. Foi então acusado de múltiplos casos de estupro, assédio sexual e tráfico de pessoas, acusações que negou sempre. Foi condenado a 12 anos de cadeia e a sua prisão e julgamento foram denunciados pelo Grupo de Trabalho sobre as Detenções Arbitrárias do Conselho dos Direitos Humanos da ONU.
E é este regime, com estas práticas no seu próprio país e no território que ilegalmente ocupa e explora, que tem as bênçãos das democracias europeias!



CAMPANHA DIPLOMÁTICA DE MARROCOS: ISOLAR O INIMIGO

Marrocos tem vindo a desenvolver uma intensa campanha diplomática nos últimos tempos, a que o pedido de renúncia apresentado por Horst Köhler do cargo de Enviado Pessoal do Secretário-geral da ONU para o processo de descolonização do Sahara Ocidental não terá sido alheio.

Uld Salek: RASD ratificou Acordo de Livre Comércio

Como entãodemos conta, a Frente POLISARIO responsabilizou os governos da França e dos Estados Unidos da América por essa atitude do ex-presidente alemão. Assim como também demos então conta da atitude reivindicativa do regime marroquino atribuindo os “méritos” desse pedido à sua agressiva diplomacia.
E, de facto, esta tem estado muito activa, como recentemente o comprovou com os acordos estabelecidos com El Salvador e com Barbados. Se bem que do ponto de vista geoestratégico estes dois Estados não tenham um grande peso na arena política internacional, ao conseguir “levá-los” a subscrever a sua proposta no processo de descolonização do Sahara Ocidental, Rabat pretende transmitir um sinal de mudança na relação de forças no seu conflito com o movimento de libertação saharauí. Aliás, já tivemos a oportunidade de assistir a processos semelhantes a este com ex-colónias portuguesas - como foram os casos de Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe - que reconheceram inicialmente a República Árabe Saharauí Democrática (RASD) mas depois alteraram a sua posição, porque “outros valores mais altos se alevantaram”, pelo menos mais que os do direito internacional.
Segundo o comunicado de imprensa divulgado em 15 de Junho passado subscrito pelos Ministros dos Negócios Estrangeiros dos dois países, Nasser Bourita e Alexandra Hill Tinoco, «o governo de El Salvador informou o governo do Reino de Marrocos da sua decisão de deixar de reconhecer a R.A.S.D. e de romper todo o contacto com essa entidade». «O governo de El Salvador apoia a integridade territorial do Reino de Marrocos e a sua soberania nacional, assim como a sua iniciativa de autonomia como única solução para este diferendo regional», conclui o comunicado conjunto. Na ocasião foi ainda afirmado que este acordo inclui a cooperação económica nas áreas da agricultura, do turismo, da saúde, das energias renováveis, as questões migratórias, etc..
No dia 21 de Junho, de acordo com um despacho da Agência Marroquina de Informação, a Primeira-ministra de Barbados Mia Mottley, de visita a Rabat, «decidiu deixar de reconhecer a pseudo “rasd” [sic]» e, ao fazê-lo, «o governo de Barbados» estava a «prosseguir as acções já empreendidas por mais de 162 países em todo o mundo», citando o comunicado conjunto. Que acrescenta: «O governo de Barbados apela a todas as partes a prosseguir, de boa fé, as negociações a fim de manter o momento iniciado pelo plano de autonomia, que é credível, sério e realista, e de favorecer uma solução política baseada no realismo e no espírito de compromisso no quadro da integridade territorial de Marrocos e de acordo com o Conselho de Segurança da ONU».
Esta ofensiva foi também visível na sessão de 17 e 24 de Junho da Comissão de Descolonização das Nações Unidas, vulgarmente designada de Comité dos 24, ocorrida em Nova Iorque.
As linhas de fractura foram basicamente as mesmas das anteriores sessões desta Comissão: de um lado os que defendem que a questão do Sahara Ocidental é um processo de descolonização — Frente POLISARIO, Argélia, República da África do Sul, Uruguai, … – e do outro os que defendem que é um caso de defesa da integridade territorial — Marrocos, Costa do Marfim, Senegal, Arábia Saudita, … . Os primeiros defendem a realização de um referendo de autodeterminação que contemple todas as opções de escolha — independência, integração ou uma autonomia regida por Rabat. Os segundos limitam a escolha à autonomia no quadro do Reino de Marrocos.
Ilustrativo de como “as circunstâncias fazem os discursos” foi a intervenção do embaixador da Indonésia, Mohammad Kurniadi Kob, ao afirmar que a «erradicação do colonialismo está entre as prioridades das Nações Unidas porque o seu trabalho está directamente relacionado com o bem-estar dos Territórios. O trabalho da Comissão de Descolonização deve ser guiado pela necessidade de aumentar a sensibilização para que ainda existem 17 Territórios Não-autónomos, a necessidade de empenhamento consultivo em cada caso e uma abordagem baseada no consenso». Recorde-se que há 20 anos a Indonésia, potência ocupante de Timor-Leste, partilhava as posições de Marrocos nesta Comissão.
O representante da Frente POLISARIO, Sidi Mohamed Omar, na sua intervenção voltou a exortar a comunidade internacional a «dar uma oportunidade ao povo saharauí de exercer de modo livre e democrático o seu direito inalienável à autodeterminação e à independência. Cremos que não é pedir demasiado a esta Comissão das Nações Unidas criada para erradicar o colonialismo sob todas as suas manifestações e formas».
Omar alertou para o facto de Marrocos querer convencer a comunidade internacional que «a força faz o Direito». «Por outras palavras, Marrocos quer que a ONU simplesmente aceite a sua reivindicação de soberania sobre o Sahara Ocidental, que a organização nunca reconheceu». E lembrou que se a regra tivesse sido “a força faz o Direito”, «numerosos países que hoje fazem parte desta Comissão não teriam acedido à independência».
De igual modo, aproveitando a realização da XII Cimeira Extraordinária da União Africana realizada em Niamey, capital do Níger, que aprovou a entrada em vigor do Acordo Continental que estabelece a criação de uma Zona de Livre Comércio, o MNE da RASD, Mohamed Salem Uld Salek, divulgou a 9 de Julho um comunicado onde chama a atenção para que o facto de o seu país ter assinado e ratificado este Acordo enquanto Marrocos apenas o assinou, mas quando o ratificar «converter-se-á num Estado parte deste tratado igual à República Saharauí». O ministro insurge-se contra as declarações do MNE marroquino no final do encontro «negando a existência da República Saharauí, dos seus bens e produtos (...)». Uld Salek relembra as condições que Rabat se comprometeu a respeitar, que figuram no articulado deste tratado, no tratado de adesão à UA e demais legislação internacional.
E conclui: «pode dizer-se que as declarações do ministro marroquino, depois das derrotas sofridas em Niamey, se dirigem principalmente à opinião nacional marroquina, já que, por um lado, Marrocos ratifica compromissos internacionais e, por outro, projecta um discurso interno totalmente inverso ao que assumiu. Tudo isso para tentar superar a grande crise estrutural sofrida pelo regime (...) que faz com que o país ocupe as últimas posições nos indicadores de desenvolvimento humano, educação e saúde, elevando-o ao mais alto nível em termos de emigração e número de cidadãos pertencentes a grupos terroristas, sem esquecer a sua supremacia nas exportações de drogas».
Durante o desenrolar dos trabalhos na capital do Níger o presidente da RASD Brahim Ghali foi convidado pelo seu homólogo mauritana para assistir às cerimónias de tomada de posse do novo presidente da Mauritânia, Mohamed Cheikh El-Ghazouani, que ocorrerão em 1 de Agosto próximo.


Sem comentários:

Enviar um comentário