sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Boletim nº 69 - Janeiro 2019


ENCONTRO EM GENEBRA: «UM IMPORTANTE PRIMEIRO PASSO»

O encontro de 5 e 6 de Dezembro foi uma primeira vitória para os esforços de Köhler, embora a única decisão concreta saída seja o novo encontro marcado para a primavera de 2019.

«Um novo capítulo»

«Chegou o momento de começar um novo capítulo no processo político», dizia a carta de convite enviada em Outubro por Horst Köhler, o enviado pessoal do Secretário-geral das Nações Unidas para a questão do Sahara Ocidental.
Para a ONU, e segundo um seu comunicado, o encontro configurava-se como o «primeiro passo de um renovado processo de negociação» para uma «solução justa, duradoura e mutuamente aceitável que permita a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental».
A Ordem de Trabalhos era, como seria de esperar, bastante vaga: «situação actual, integração regional, próximas etapas do processo político».
O último ciclo de negociações, em Março de 2012 em Manhasset nos EUA, tinha conduzido a um impasse. Marrocos afirmava-se partidário de uma solução política «duradoura» baseada num «espírito de compromisso» mas sem transigir quanto à «integridade territorial» e ao «carácter marroquino do Sahara», conforme declarou o rei Mohamed VI no seu “discurso à nação” em 6 de Novembro passado. Para a Frente POLISARIO, «tudo pode ser negociado, excepto o direito inalienável e imprescritível do nosso povo à autodeterminação», como disse à France Press Mohamed Khadad, membro do seu Secretariado Nacional e presidente do Comité de Relações Exteriores, antes de partir para Genebra. Conforme fontes saharauís presentes na reunião disseram à agência Prensa Latina, «o encontro é uma oportunidade para elaborar um plano de acção que leve a negociações oficiais e sérias».
A delegação marroquina era chefiada pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros Nasser Bourita enquanto a delegação da Frente POLISARIO era dirigida por Khatri Addouh, Presidente do Conselho Nacional Saharauí (o parlamento da República Árabe Saharauí Democrática).
Na conferência de imprensa que se seguiu no final do segundo e último dia do encontro Horst Köhler leu uma curta declaração final.
«A convite de Horst Köhler, enviado pessoal do Secretário-geral das Nações Unidas para o Sahara Ocidental, as delegações de Marrocos, POLISARIO, Argélia e Mauritânia participaram numa primeira mesa redonda a 5 e 6 de Dezembro de 2018 em Genebra, no quadro da Resolução 2440 do Conselho de Segurança.
«As delegações informaram sobre os desenvolvimentos recentes, discutiram questões regionais e abordaram os próximos passos no processo político do Sahara Ocidental. Todas as delegações reconheceram que a cooperação e a integração regionais, bem como a ausência de confrontação, são a melhor maneira de abordar os muitos desafios importantes que a região enfrenta.
«As discussões decorreram num ambiente de compromisso, abertura e respeito mútuo.
«As delegações concordaram que o enviado pessoal as convidaria para uma segunda mesa redonda no primeiro trimestre de 2019.»
Depois da leitura Köhler teceu algumas considerações sobre o desenrolar das conversações. Que se tinha tratado de um primeiro passo - «um importante primeiro passo», salientou - para a renovação do processo político sobre o futuro do Sahara Ocidental. Que o objectivo deste processo era alcançar «uma solução justa, duradoura e mutuamente aceitável que proporcionará a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental». «A minha esperança é que este processo seja guiado, em primeiro lugar, pela preocupação com os homens e mulheres, crianças e jovens do povo do Sahara Ocidental».
«Posso anunciar-lhes que as delegações asseguraram que estão dispostas a continuar a participar» neste processo diplomático. «Estou convencido de que uma solução pacífica para este conflito é possível», disse.
Por sua vez o MNE Nasser Bourita repetiu o discurso oficial das autoridades marroquinas. Que um referendo já não fazia parte dos cenários sobre a mesa desde a última resolução da ONU e que a iniciativa de Rabat de uma autonomia alargada, avançada em 2007, permanecia uma proposta «pragmática» e «credível», como «o deseja o Conselho de Segurança».
Quanto a Kathri Addouh lembrou que a Frente POLISARIO «não pode decidir pelo povo saharauí», mantendo todos os cenários em aberto. Lamentou a ausência de diálogo por parte de Marrocos sobre as suas propostas para reforçar a confiança entre as duas partes. Esta atitude torna a Frente «cautelosa» em relação à próxima reunião.

  

O ERRO DA UNIÃO EUROPEIA

Apesar dos vários acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), reiterando a não-soberania de Marrocos sobre o Sahara Ocidental, a UE persiste em pôr os interesses económicos à frente do direito internacional.

Em finais de Novembro passado um largo conjunto de organizações da sociedade civil saharauí vivendo nos territórios ocupados e na diáspora, fez um apelo ao Conselho e aos deputados do Parlamento Europeu alertando-os para a ilegalidade dos acordos que a UE pretende assinar com o Reino de Marrocos relativos à exploração dos recursos pesqueiros das águas do Sahara Ocidental. Aí alertam para as pressões que a Comissão está a exercer sobre o Conselho e o Parlamento para a conclusão do acordo que «inclui ilegalmente as águas do Sahara Ocidental ocupado, apesar dos sucessivos acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE)».
Nesse apelo relembram as decisões do TJUE de 21 de Dezembro de 2016 e 27 de Fevereiro de 2018 onde é explicitamente reconhecido que o Sahara Ocidental é um território «separado e distinto» de Marrocos sobre o qual este não tem qualquer tipo de soberania. Lembram igualmente que os acórdãos estipulam a necessidade da auscultação prévia do povo do território como pré-condição para a exploração dos seus recursos naturais enquanto território não-autónomo.
«Compete-vos a vós, Honoráveis membros do PE, decidir se participam, ou não, neste acto institucional de roubo contra o nosso povo (os saharauís) e neste acto de irresponsabilidade contra o vosso povo (os europeus) pagando milhões de euros dos vossos impostos a Marrocos por pescado que não lhe pertence, segundo o TJUE.»
E mais à frente: «Este acordo aplica-se apenas à parte ilegalmente ocupada por Marrocos deixando de fora a parte governada pela Frente POLISARIO, incluindo o seu acesso ao mar. Ao votar a favor deste acordo estão a pôr em causa o princípio da integridade territorial do Sahara Ocidental e da unidade nacional do povo saharauí, intrínsecas ao processo de auto-determinação ainda por realizar.»
«Em relação às designadas “consultas” invocadas pela Comissão Europeia, a maioria das nossas ONG — a sociedade civil saharauí — nunca foi convidada para estas conversações. Duas foram convidadas depois da Comissão ter concluído o acordo com Marrocos, o que consideramos a opção errada para obter o consentimento ao acordo que se aplica à nossa pátria ocupada.»
A reforçar este quadro legal, o TJUE – mais exactamente, a Sala Quinta do Tribunal Geral — tornou público, nos princípios de Dezembro, um novo e esclarecedor despacho onde «declara que o Acordo de Aviação assinado pela UE e por Marrocos NÃO PODE APLICAR-SE ao espaço aéreo do Sahara Ocidental porque nem o espaço terrestre nem as suas águas fazem parte de Marrocos».
Ao abordá-lo, Carlos Ruiz Miguel, professor catedrático de Direito Constitucional na Universidade de Santiago de Compostela, considera, depois de citar in extenso os parágrafos enumerados na sentença do Tribunal, que este «deixa claro que Marrocos não possui soberania nem na terra, nem nas águas, nem no espaço aéreo do Sahara Ocidental.»
E conclui: «O Tribunal de Justiça, com esta resolução, tal como o fez com a resolução de 19 de Julho deste mesmo ano, envia uma mensagem à Comissão, ao Conselho de Ministros e ao Parlamento Europeu. Uma mensagem que estes órgãos se esforçam por ignorar por razões inconfessáveis, embora algumas delas tenham sido descobertas recentemente. Refiro-me ao tremendo escândalo em que a eurodeputada francesa Patricia Lalonde esteve envolvida. A referida deputada fez um relatório favorável à continuação do comércio de produtos do Sahara Ocidental (controlados pelo rei de Marrocos, pelos militares, pelos colaboracionistas e pelos colonos) argumentando que isso facilitava o "desenvolvimento" do "povo saharauí". No entanto, foi revelado que, na altura em que elaborou esse relatório, estava envolvida num lobby pró-marroquino (…)». Não é só Lalonde — que, entretanto, se demitiu do lobby marroquino — que está a ser objecto de inquérito pois outros deputados europeus encontram-se na mesma situação.
Para Ruiz Miguel esta decisão vai ter implicações no processo negocial que se iniciou, precisamente, no dia a seguir a ser tornada pública a decisão do TJUE. «(…) apesar de o novo Secretário-geral da ONU, António Guterres, estar obscenamente alinhado com a posição de Marrocos, esta decisão constitui uma desqualificação do ponto de partida da proposta de uma suposta "autonomia" para o Sahara Ocidental feita por Marrocos» pois «a premissa dessa proposta é que Marrocos tem "soberania" sobre o Sahara Ocidental.»
Mas na votação realizada a 10 de Dezembro na Comissão de Comércio Internacional do PE (INTA) a maioria dos eurodeputados presentes não foi sensível a esta argumentação e votou a favor da aprovação do acordo de pesca com Marrocos e de o levar ao plenário para aprovação final. De salientar o empenhamento do PSOE espanhol que, sob a direcção de Elena Valenciano, teve o cuidado de alterar a recomendação de Patricia Lalonde que solicitava a sua aprovação imediata. Com a alteração introduzida e adoptada, o projecto de recomendação subirá ao plenário do Parlamento Europeu no início de 2019 para que seja concedida a aprovação definitiva ao novo acordo de pesca com Rabat.
Porém, nem todas as sensibilidades políticas representadas na INTA adoptaram a mesma postura. A eurodeputada finlandesa Heidi Hautala, dos Verdes, exigiu «que se conclua primeiro o inquérito interno sobre uma possível violação do código de conduta» da instância parlamentar por parte de Patricia Lalonde e em sinal de protesto anunciou a sua suspensão dos trabalhos. Outros deputados do mesmo grupo parlamentar solidarizaram-se com Hautala.
Esta reacção foi, contudo, contornada pelo presidente do parlamento, o italiano Antonio Tajani. «Infelizmente o presidente decidiu ultrapassar esta etapa aquando da reunião da conferência dos presidentes das comissões», informou a deputada finlandesa. Ou seja, ignorou os argumentos invocados para chegar mais rapidamente à aprovação do acordo.

 

 

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