sábado, 15 de setembro de 2018

Boletim nº 64 - Agosto 2018

ACORDO UE-MARROCOS: «VIRAR AS COSTAS À JUSTIÇA»

A União Europeia (UE) e Marrocos chegaram a um novo entendimento sobre as pescas que insiste em ignorar as decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), agora de uma forma claramente intencional.

Acordo veementemente condenado

A partir do momento em que o TJUE sentenciou a ilegalidade dos acordos de pesca com Marrocos que incluíssem as águas territoriais do Sahara Ocidental, as classes dirigentes da UE puseram-se em marcha para contornar essa dimensão ilegal do acordo. O Conselho Europeu tinha até ao dia 14 de Julho, data em que entraria em vigor um novo protocolo, para ultrapassar este obstáculo.
Marrocos e a UE haviam acordado desde o início do processo de negociação, em Abril deste ano, que o Sahara Ocidental fosse explicitamente referido no âmbito geográfico do Acordo e do novo Protocolo de aplicação.
Em edição anterior referimos algumas das diligências que os funcionários da UE desenvolveram, sabendo-se a desconfiança, os receios, de quem acompanha estes processos quanto ao seu resultado final. E sinais disso não nos faltaram. Em 13 de Julho três eurodeputados escreveram uma carta «com carácter de urgência» às mais altas instâncias da UE alertando para o facto de o navio Bente, com pavilhão holandês, estar a transportar para o porto alemão de Bremen produtos do Sahara Ocidental embarcados em El Aaiún. Os eurodeputados diziam-se «preocupados por esta evolução, pois ela vai implicar uma violação directa das recentes decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre o acordo comercial UE-Marrocos de 21 de Dezembro de 2016 (C-104/16) e o acordo de pesca de 27 de Fevereiro de 2018 (C-266116), invalidados pela inclusão nessas convenções do território saharauí ocupado».
Em 20 de Julho a Comissão tornou pública a «Declaração conjunta da UE e do Reino de Marrocos sobre o fim das negociações para um novo acordo no sector da pesca», onde reafirma que «as duas partes concordaram assim sobre as disposições e melhorias introduzidas nestes textos, a fim de maximizar os benefícios para as populações locais nas áreas abrangidas, de acordo com os princípios da gestão sustentável dos recursos haliêuticos e da equidade».
A Frente POLISARIO reagiu de imediato. «A Frente POLISARIO toma nota da decisão tomada hoje pelo Conselho da União Europeia de assinar uma adenda ao Acordo de Associação UE-Marrocos, destinado a aplicar-se ao território do Sahara Ocidental, e condena veementemente esta decisão». E lembra: «Após os acórdãos do TJUE de 2016 e 2018» ficou claro que «um acordo celebrado entre a União Europeia e Marrocos não pode ser aplicado ao território do Sahara Ocidental. Para se candidatar a este território, é necessário um acto separado, com base no consentimento do representante do povo saharauí.
«Dias depois destas decisões judiciais, a Frente POLISARIO dirigiu-se aos líderes políticos europeus para permitir a conclusão de tal acordo com o único e legítimo representante do povo saharauí.
«No entanto, a Comissão Europeia, com o mandato do Conselho, rejeitou qualquer contacto com a Frente e limitou-se a tomar nota das duras manobras de Marrocos, o poder militar que ocupa o território.
«Portanto, a UE vira as costas à justiça para proteger os interesses políticos e financeiros a curto prazo e dificulta os esforços de paz do enviado pessoal do Secretário-geral das Nações Unidas para o Sahara Ocidental, o Sr. Horst Köehler, optando pela continuação de um conflito internacional que pesa sobre a estabilidade e a segurança na região e prolonga por mais anos o sofrimento do povo saharauí».
E conclui: «No futuro imediato, a Frente POLISARIO pede ao Parlamento Europeu que assuma todas as suas responsabilidades e rejeite esta proposta ilegal da Comissão. O parlamento, um órgão democrático, é um representante institucional da lei e deve condenar a deriva da Comissão.
«Diante desta cruel tentativa de impor o desvio, a distorção e iludir os julgamentos do TJUE, a Frente POLISARIO não terá alternativa senão contestar esta decisão perante o TJUE».
Nalguns países europeus houve reacções de desagrado por esta opção política da UE. No Reino Unido, questionado por parlamentares da oposição, o Secretário de Estado para o Norte de África e o Médio Oriente reafirmou que o RU aceita e respeita as decisões emanadas do TJUE, tendo o Ministério dos Negócios Estrangeiros confirmado que os produtos provenientes do Sahara Ocidental já vêm com uma identificação específica.
Em Espanha, a antiga potência colonizadora, um grupo de deputados pertencentes ao Intergrupo de Amigos do Sahara Ocidental dirigiu-se em 28 de Julho por carta ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, UE e Cooperação, Josep Borrell, para lhe pedir que não aceite o novo acordo de pesca, considerando que não respeita o acórdão do TJUE.
Segundo fontes da União Europeia, esta considera que é possível estender o acordo às águas territoriais do Sahara Ocidental desde que certas condições sejam satisfeitas, tais como beneficiar a população local e que esta seja consultada. Conforme explicaram à agência Europa Press, Marrocos comprometeu-se a organizar uma consulta «adequada» à população saharauí e a avaliar os efeitos sociais e económicos. A UE irá acompanhar ambos os procedimentos.
TJUE: Lembrar o já sabido

Ora acontece que em 19 de Julho, vésperas do anúncio do acordado entre a UE e Marrocos, o TJUE voltou a reiterar as suas decisões anteriores, excluindo categoricamente qualquer possibilidade de a UE incluir o Sahara Ocidental nos seus entendimentos com Marrocos. Esta decisão veio na sequência do recurso de Março de 2014 da Frente POLISARIO contra o acordo de pesca então assinado.
Mohamed Khaddad, interlocutor da POLISARIO junto da ONU, comentou: «Enquanto em Rabat os serviços da Comissão Europeia acreditam que estão autorizados a assinar um novo acordo com Marrocos para aplicá-lo à área marítima do Sahara Ocidental, a decisão de 19 de Julho de 2018 envia uma mensagem muito clara sobre a força do direito internacional, e que o seu atropelo não levará a lugar algum».
E concluiu: «Estamos a acompanhar a evolução do dossier, porque o acordo ainda não foi ratificado pelo Parlamento Europeu e, se este mecanismo de extensão do acordo for realmente por diante, apresentaremos um novo recurso aos Tribunais da União Europeia. Além disso, os nossos advogados estão actualmente a trabalhar no pedido de indemnização contra a Comissão, que decidimos fazer tendo em conta a obstinação europeia, e os danos reclamados ascendem a centenas de milhões de euros».
Entretanto, o diário britânico The Guardian, na sua edição de 11 de Julho, contava que, apesar das iras de Israel, o senado irlandês tinha aprovado um projecto-lei visando, na prática, banir a importação de produtos dos territórios palestinianos ocupados pelo exército de Telavive, abrindo caminho para que a Irlanda se torne o primeiro Estado europeu a impor um boicote a esses produtos. Quando o difícil processo legislativo estiver concluído será proibido o «comércio com, e o apoio económico a, colonatos ilegais em territórios considerados ocupados pelo direito internacional». Assim formulada, esta decisão contempla também o caso do Sahara Ocidental. E a mesma poderá ser um convite a outros países para seguirem o exemplo irlandês, segundo senadores citados pelo The Guardian.

 

KÖHLER NO SAHARA OCIDENTAL: «POR UM NOVO ESPÍRITO DE REALISMO E COMPROMISSO»

O Enviado Pessoal do Secretário-geral da ONU Horst Köhler realizou mais um périplo tendo visitado Argel (Argélia), Nouakchott (Mauritânia), Rabouni (Argélia) e Rabat (Marrocos), antes de desembarcar nos territórios do Sahara Ocidental ocupados por Marrocos.

Encontro Köhler - Ghali

Em 26 de Junho reuniu com o Presidente da República Árabe Saharauí Democrática e Secretário-geral da Frente POLISARIO, Brahim Ghali, nos acampamentos de refugiados. Na ocasião Köhler disse que o encontro tinha sido uma oportunidade para aprofundar os conhecimentos sobre os obstáculos à procura de uma solução para o problema saharauí. E voltou a reiterar que a redução para seis meses do mandato das Nações Unidas seria «susceptível de criar uma dinâmica e um modo de reflexão com um novo espírito, que pode conduzir, depois de mais negociações, a uma solução aceite por ambas as partes e eliminar um obstáculo ao processo de desenvolvimento da região do Norte de África como um todo».
Entre 28 de Junho e 1 de Julho esteve no Sahara Ocidental, na capital El Aaiún, em Smara e em Dakhla. Na capital encontrou-se com delegações de organizações saharauís de defesa dos direitos humanos. Primeiro com a ASVDH - Associação Saharauí de Vítimas de Violações Graves dos Direitos Humanos e depois com a CODESA - Colectivo de Defensores Saharauís dos Direitos Humanos. Além de Horst Köhler esteve igualmente presente Colin Stewart, o chefe da MINURSO, onde decorreram as reuniões. Ambas as organizações aproveitaram a oportunidade para passar em revista a situação dos DH no território e o papel nela desempenhado pelas forças de ocupação marroquinas.
Lembraram a Köhler e a Stewart a ausência das liberdades cívicas essenciais – a liberdade de associação e de expressão – a descriminação social e económica, e a completar o quadro, as prisões, a tortura.
Nada desta informação foi nova para os representantes das Nações Unidas. Logo no dia da chegada de Horst Köhler a El Aaiún as forças de segurança impuseram uma presença policial muito forte, instalando efectivos nos bairros e principais artérias da cidade. Segundo o correspondente do colectivo Equipe Media foram cercadas as casas de vários activistas e os seus ocupantes impedidos de sair.
Às 19 horas tiveram início as manifestações na Avenida Smara. Os manifestantes empunhavam bandeiras da RASD e reivindicavam o direito à autodeterminação e exigiam a protecção das Nações Unidas. As manifestações propagaram-se aos bairros e às ruas adjacentes e foram reprimidas pelas forças policiais.
Também os desempregados do grupo Al Kassem organizaram uma concentração a qual foi reprimida, resultando 7 pessoas feridas.
Numa manifestação no bairro de Nadi Lahma, um carro da polícia marroquina atropelou um manifestante saharauí - Ayoub El Ghan – o qual acabaria por falecer no hospital. O jovem de 16 anos é a 146.ª vítima da lista de mortes e feridos graves das ondas de protesto que agitam o Sahara Ocidental.
As manifestações prosseguiram um pouco por toda a cidade noite adentro e tiveram também lugar na cidade de Smara, no norte do território, igualmente visitada por Horst Köhler e a sua equipa.
Duas jornalistas saharauis, Zahara Essin e Khadi Essin, foram detidas no bairro de El Auda, juntamente com um jovem saharauí que procurou impedir a sua detenção. As jornalistas estavam a recolher imagens das manifestações dentro de uma viatura.
Köhler teve ainda a oportunidade de se encontrar com as autoridades locais e figuras do mundo dos negócios marroquinas.
Segundo o seu porta-voz, «durante as suas conversações, o Presidente Koehler sublinhou a importância de se avançar para uma solução política justa, duradoura e mutuamente aceitável para o conflito, que assegure a autodeterminação do povo saharauí. Enfatizou a necessidade de um novo espírito de realismo e compromisso».

MARROCOS: «CONTRA A PILHAGEM DAS RIQUEZAS E O EMPOBRECIMENTO DA POPULAÇÃO»

As autoridades de Rabat continuam a seguir o caminho da repressão para tentar aliviar a tensão social que se tem vindo a acumular na sociedade marroquina nos últimos anos.

Tensão social em Marrocos

As reacções às sentenças a que a justiça marroquina condenou 53 das figuras mais destacadas do movimento do Rif (o Hirak al Shaabi) — com penas que chegaram aos 20 anos de cadeia e sem absolvições – não se restringiram a esta região do norte do país. Ocorreram manifestações, com grande adesão popular – «vários milhares de pessoas» segundo a agência noticiosa EFE – noutros pontos do país entre os quais Casablanca e Rabat, originando novas detenções e mais uma morte, Imad Attabi.
O regime tentou jogar em vários tabuleiros. Por um lado tentou legitimar e valorizar o processo judicial, afirmando as alternativas de recurso de que os condenados usufruíam ou disponibilizando-se para a aprovação parlamentar de uma amnistia, ainda que parcial. Procura assim retirar o confronto da rua — onde não o pode esconder – e encaminhá-lo para um terreno que controla em absoluto e onde o risco de ser surpreendido é praticamente nulo. Por outro lado procurou chamar a atenção para as “obras de desenvolvimento” de que a região do Rif tem vindo a ser objecto nos últimos meses. Isto é, desde que começaram os confrontos em resultado da morte do vendedor ambulante Mouhcine Fikri em Outubro de 2016.
Estes movimentos de protesto, porém, como já aqui falámos, não são um caso isolado. Vêm associar-se ao boicote popular lançado em finais de Abril a produtos de consumo comercializados pelos grandes consórcios franco-marroquinos. Os produtos objecto do boicote são os lacticínios comercializados pela Société Centrale Laitière, filial da multinacional francesa Danone, a água mineral Sidi Ali comercializada pela sociedade das águas Oulmès, pertencente ao grupo Holmarcom da família Bensaleh, e os combustíveis da Afriquia pertencente ao grupo Akwa da família Akhannouch. Como escreve a ATTAC-Marrocos, «com determinação e criatividade o povo marroquino resiste aos grandes grupos capitalistas locais e internacionais que pilham as riquezas do país e empobrecem a população». E mais à frente, «o seu verdadeiro objectivo [dos investimentos do Estado] é garantir o crescimento da fortuna de algumas centenas de famílias burguesas historicamente conhecidas em Marrocos no campo dos negócios, que controlam o aparelho estatal e os seus recursos e aproveitam a oportunidade para se apropriar de todos os sectores rentáveis do país e saquear as suas riquezas. (…). Hoje estão empenhadas na conquista da África subsariana».
A ATTAC termina a sua leitura da actual realidade marroquina convidando a população: «as multinacionais que saqueiam as nossas riquezas e destroem o nosso meio ambiente exigem uma campanha popular contra a sua impunidade».
«A campanha internacional contra a impunidade das multinacionais deve cruzar-se com a de boicote, desinvestimento e sanções (BDS) contra Israel, que também tem muitas empresas em Marrocos.
«Hoje, diante dos governantes que concentram as decisões económicas e políticas e violam os interesses da maioria, a desobediência e os boicotes aos seus produtos tornam-se um dever nacional!
«Diante da sua cumplicidade e aliança com os nossos antigos e novos colonizadores para saquear e explorar os nossos recursos, a desobediência e o boicote aos seus produtos tornam-se um dever nacional!
«Confrontados com o racismo dos governantes contra a esmagadora maioria do nosso povo, o seu desprezo pela sua cultura de resistência e solidariedade, a sua promoção da dominação cultural colonial, especialmente francesa, que não cessou desde a independência formal do nosso país, a desobediência e boicote aos seus produtos torna-se um dever nacional!»

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