sábado, 15 de setembro de 2018

Boletim nº 62 - Junho 2018

RECURSOS NATURAIS

Nas análises ao colonialismo europeu de finais do séc. XIX, princípios do séc. XX, o saque dos recursos naturais dos territórios sujeitos à dominação colonial é um dos seus traços identificadores.




Ao entrarmos no último quartel do séc. XX, quando pensávamos que esse flagelo tinha sido finalmente derrotado, fomos confrontados com o relançamento desta velha prática europeia, agora através de países que tinham recentemente passado do estatuto de colónias para o de países soberanos. Em Novembro de 1975 Marrocos invade e ocupa o Sahara Ocidental e em Dezembro de 1975 a Indonésia invade e ocupa Timor-Leste. Em ambas as situações os novos ocupantes recorreram às mesmas políticas de que tinham sido vítimas: a imposição de uma máquina administrativa de dominação, a imposição de uma cultura com a sua língua, a marginalização e subalternização das populações locais, a imposição de uma omnipresente máquina repressiva e, claro!, a pilhagem dos seus recursos naturais. Por isto, o então dirigente da Resistência timorense e hoje Primeiro-ministro da República de Timor-Leste, Xanana Gusmão, perguntava em 27 de Julho de 1992 ao Comité de Descolonização da ONU: «Será que o colonialismo só tem esse significado quando é praticado pelos brancos? Ou o colonialismo é uma forma de dominação de um Povo sobre outro?»
O combate ao saque dos recursos naturais é hoje um dos principais terrenos de luta da Frente POLISARIO. A recente decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) sobre o acordo de pescas UE-Marrocos, confirmando a sentença anterior sobre o acordo de produtos agrícolas, veio dar um novo impulso ao seu prosseguimento.
Ignacio Cembrero, um jornalista de referência nas questões do Magrebe, conta-nos o empenhamento de «Gilles Devers, advogado da Frente POLISARIO na Europa, [que] quer aproveitar o efeito de duas sentenças sucessivas do TJUE para pressionar um pouco mais Marrocos (…)».
Dentro desta campanha de denúncia do saque dos recursos o caso dos fosfatos é outro exemplo emblemático. 
NM Cherry Blossom
Em 13 de Abril de 2017 o navio NM Cherry Blossom, de bandeira neozelandesa, deixou El Aaiun com um carregamento de 50.000 toneladas de fosfato e ancorou em Port Elizabeth, na África do Sul, para se reabastecer. Alertadas pela Frente POLISARIO as autoridades sul-africanas apreenderam a carga e o navio, que ficou imobilizado naquele porto.
Após um longo processo litigioso, em 23 de Fevereiro deste ano o Supremo Tribunal de Justiça da África do Sul decidiu que a República Árabe Saharaui Democrática (RASD) é a proprietária de toda a carga do navio que estava destinada à Nova Zelândia.
O mesmo Tribunal respondeu favoravelmente ao pedido da Frente POLISARIO e concedeu um prazo de 30 dias para a venda do fosfato em hasta pública. Nos princípios de Maio o governo da RASD, em comunicado, congratulou-se pela venda do carregamento e anunciou que, no futuro, empreenderá acções similares noutros países contra empresas que comprem ilegalmente fosfato do Sahara Ocidental.
O representante da Frente POLISARIO na Austrália e Nova Zelândia, Kamel Fadel, disse à Reuters que «os fundos arrecadados com a venda serão transferidos para as autoridades saharauís que os poderão utilizar no futuro para localizar casos semelhantes».
Mas a Frente POLISARIO não está sozinha nesta luta. A associação Western Sahara Resource Watch (WSRW) tem sido uma parceira inestimável nesta difícil e dura batalha. No seu relatório de 2016 sobre o comércio mundial de fosfatos no Sahara Ocidental, alertava para a possibilidade de a companhia americana Innophos Holdings ser uma das compradoras chave do fosfato proveniente daquele território. Segundo a WSRW, «as compras não foram feitas directamente ao exportador marroquino (…) mas à companhia importadora de fertilizantes PotashCorp (hoje Nutrien). Este importador tem uma fábrica no interior da Innophos (…) com um pipeline transportando os derivados de fosfato da PotashCorp para a Innophos».
Este receio veio a ser confirmado pela própria Innophos Holdings no seu relatório de 3 de Abril de 2016, publicado pouco depois do daquela associação. «Estamos igualmente sujeitos a riscos decorrentes das condições sociais e políticas locais nas jurisdições de onde provém o mineral de fosfato que é a base das nossas actividades. O mineral de fosfato utilizado pela PCS [PostachCorp] para aprovisionar a nossa fábrica de Geismar, na Luisiana, em MGA [Merchant Grade Acid] é objecto destas condições políticas e sociais no Sahara Ocidental, onde a PCS se aprovisiona em mineral de fosfato, território que tem conhecido uma longa história de perturbações sociais e políticas. Se a PCS é incapaz de se aprovisionar em mineral de fosfato ou em quantidades suficientes, o nosso aprovisionamento em MGA será perturbado e a capacidade de fabricar os nossos produtos poderá ser seriamente afectada».
A WSRS lembra que desde 2010 já contactou a Innophos por diversas vezes sem nunca ter obtido uma resposta. «A ausência de resposta da Sociedade não passou despercebida aos vários dos seus antigos investidores: a Sociedade foi objecto de numerosos desinvestimentos. Uma longa análise de exclusão ética da empresa foi preparada pelo Conselho de Ética da Caixa de Pensões do governo norueguês em 2015. Pela mesma razão, a Sociedade foi igualmente expulsa da carteira de opções do Luxembourg Pension Fund e do Danske Bank, entre outros».
Mas o fosfato não é caso único. A WSRS cita também o exemplo da HeidelbergCement, que através de uma filial nos arredores de El Aaiún, a capital do Sahara Ocidental, explora uma cimenteira. «A fábrica é detida pela CIMAR [Cimentos de Marrocos], que por sua vez pertence à multinacional alemã via uma filial italiana, a Italcementi».
Tal como com a Innophos, a WSRS escreveu várias cartas à HeidelbergCement, assim como à sua filial Italcementi, perguntando se tinham autorização do representante do povo saharauí para operar no território ocupado. E tal como com a Innophos, não obteve qualquer resposta. 
 

ACORDO UE-MARROCOS: COMO “ILUDIR” A SENTENÇA DE UM TRIBUNAL

A partir da decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), que colocou as águas territoriais do Sahara Ocidental fora do âmbito dos acordos de pesca entre a UE e Marrocos, ambas as partes se empenharam em encontrar uma solução que permita contornar a sentença do TJUE.

Fim à pesca ilegal!

No dia 16 de Abril o Conselho Europeu aprovou a outorga à Comissão Europeia do mandato para a negociação do novo acordo das pescas com Marrocos, a entrar em vigor em 14 de Julho próximo.
O jornal marroquino Telquel diz que só a Suécia e o Reino Unido – por razões diferentes - se abstiverem. Cita a Comissão Europeia que se afirma convencida de que é «possível estender os acordos bilaterais com Marrocos ao Sahara Ocidental sob certas condições». A Comissão estará, aliás, a preparar um relatório a submeter ao Conselho e onde integrará «”o consentimento das populações do Sahara Ocidental” ao novo acordo». E a ministra espanhola das pescas, Isabel García Tejerina, foi muito afirmativa: «As negociações levarão muito a sério a sentença do Tribunal».
Nada foi dito, porém, sobre que “populações do Sahara Ocidental” são estas nem que metodologia irá ser seguida para obter o seu “consentimento”.
A voz discordante neste discurso veio da Suécia onde um deputado do Partido Democrático dirigiu uma pergunta ao Ministro do Comércio e da União Europeia a pedir esclarecimentos sobre o mandato concedido à Comissão para renegociar o acordo. Quem respondeu, no entanto, foi o Ministro dos Assuntos Rurais, Sven-Erik Bucht, que defendeu que a Frente POLISARIO, enquanto legítimo representante do povo saharauí, deveria ser consultada sobre qualquer acordo que incluísse as águas territoriais do Sahara Ocidental.
No dia 20 de Abril realizou-se a primeira reunião de trabalho em Rabat no âmbito destas negociações. Na véspera do encontro o Ministro dos Negócios Estrangeiros marroquino, Nasser Bourita, voltou a frisar que «a integridade territorial e a unidade nacional de Marrocos não são objecto de negociação ou de compromisso», neste e em todos os acordos que envolvam o país.
Por sua vez, e segundo a agência SPS, a Frente POLISARIO recordou em comunicado que «o Tribunal de Justiça da União Europeia sentenciou por duas vezes que Marrocos não tem soberania sobre o Sahara Ocidental» e que, portanto, o território não pode ser incluído nos acordos internacionais sem o «consentimento do povo saharauí, expresso pelo seu representante reconhecido pelas Nações Unidas, a Frente POLISARIO».
Em 17 de Maio a Comissão de Comércio do Parlamento Europeu realizou um debate sobre o estado das negociações. Sobre ele, o Representante da Frente POLISARIO junto da UE, Mohamed Sidati, divulgou uma declaração onde afirma valorizar «a tomada firme e responsável de posições por parte dos membros da Comissão de Comércio em defesa da União Europeia e da legalidade internacional, solicitando à Comissão Europeia que seja respeitado rigorosamente o Estado de direito pelos membros da Comissão», mas notando «com preocupação a intenção delineada durante as discussões (...) de estender» os acordos «com Marrocos ao Sahara Ocidental Ocupado. É evidente que os procedimentos seguidos visam evitar as sentenças emanadas do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias. Procedendo deste modo, as instituições europeias são arrastadas para o saque ilegal dos recursos naturais do Sahara Ocidental, o que constitui uma abordagem arriscada».
«Além disso, a Comissão Europeia optou por substituir o consentimento do povo saharauí pelo chamado "processo de consulta" e substituiu o povo do Sahara Ocidental pela "população local", onde a população de colonos marroquinos constitui a maioria».
E lembra: «O povo saharauí nada ganha com a exploração e exportação dos seus recursos naturais contra o seu consentimento. (…). Os alegados benefícios locais, referidos pela Comissão, em acordos negociados e aplicados com a potência de ocupação, excluem claramente o povo saharauí, incluindo a parte que vive no território ocupado do Sahara Ocidental».
Em Março passado interrogámo-nos aqui se, face à decisão do TJUE, o Conselho Europeu iria optar pelo direito internacional ou pelos interesses comerciais. Hoje já sabemos a resposta.

RUPTURA MARROCOS-IRÃO: À PROCURA DE APOIOS

No passado dia 1 de Maio Marrocos anunciou através do seu Ministro dos Negócios Estrangeiros, Nasser Bourita, o rompimento das relações diplomáticas com o Irão.

Mohamed VI em Riad

O ministro justificou a decisão com o facto de aquele país ter facilitado o fornecimento de equipamento militar à Frente POLISARIO por intermédio de um seu aliado, o Hezbollah libanês. Mas teve o cuidado de frisar que esta decisão não tinha nada a ver com as actuais tensões entre a Arábia Saudita e o Irão.
Não é a primeira vez que Rabat rompe diplomaticamente com Teerão. Tal já tinha acontecido em 2009, tendo na altura invocado «o activismo» religioso iraniano que representaria uma ameaça à estabilidade do país. Em 2014, porém, as relações foram restabelecidas.
Na conferência de imprensa onde fez o anúncio Bourita afirmou que «uma primeira entrega de armas tinha sido feita recentemente» através de um «elemento» da embaixada iraniana acreditada em Argel. «Marrocos dispõe de provas irrefutáveis, com nomes e factos concretos, que corroboram esta conivência entre a POLISARIO e o Hezbollah contra os supremos interesses do reino».
O ministro, regressado nas vésperas do Irão, disse aos jornalistas que tinha informado o seu homólogo da decisão do seu país.
Face a esta acusação, responsáveis da Frente POLISARIO exigiram a apresentação pública de provas da mesma. O porta-voz da organização Mohamad Hadad disse à agência espanhola EFE que «a POLISARIO nunca teve qualquer relação militar, nem recebeu armas ou manteve contactos militares com o Irão ou com o Hezbollah. (…). Desafiamos Marrocos a fornecer a mais pequena prova», acrescentou. Segundo este dirigente saharauí, Rabat encontra-se numa situação delicada pois «procura protecção para se desligar do compromisso de negociação» a que ficou obrigado pela última Resolução do Conselho de Segurança (a 2414).
A reacção das autoridades iranianas foi, também, a de considerarem as acusações como «totalmente infundadas».
Pepe Taboada, presidente do CEAS-SAHARA (Coordenadora Estatal de Associações Solidárias com o Sahara – Espanha), lembra que «Marrocos desde há mais de 40 anos que inventa fantasmas para tentar obter apoio para a sua ocupação do Sahara Ocidental e, de acordo com diferentes circunstâncias regionais e internacionais, tentar "desacreditar" a luta justa e pacífica do povo saharauí pela sua liberdade e independência».
Taboada alerta-nos para o facto de «O governo marroquino juntou-se à coligação árabe liderada pela Arábia Saudita contra o Irão, tanto na frente síria quanto na iemenita, para onde Rabat enviou aviões de combate e soldados».
E não deverá ter sido coincidência o anúncio deste rompimento ter ocorrido no seguimento das hostis declarações do PM israelita incitando ao agravamento do conflito com o Irão.

Sem comentários:

Enviar um comentário