sábado, 15 de setembro de 2018

Boletim nº 63 - Julho 2018

BRUXELAS: RECORDAÇÕES DA CAUSA COLONIAL

Em 11 de Junho passado a Comissão Europeia divulgou a sua proposta de reformulação do acordo comercial com Marrocos para o adaptar à sentença do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) de 21 de Dezembro de 2016. Mas, na prática, ignorou essa decisão judicial.


Tribunal de Justiça da UE (TJUE)

Recorde-se que nesse acórdão – como no de 27 de Fevereiro de 2018 - o TJUE define que o Sahara Ocidental não faz parte de Marrocos pelo que o território não pode ser abrangido por aquele acordo.
A proposta será agora enviada aos governos dos Estados membros e ao Parlamento Europeu para aprovação. O objecto da mesma são os protocolos nº 1 (acesso ao mercado da UE dos produtos agrícolas, simples ou transformados, pesca e produtos de pesca) e nº 4 (regras de origem).
Como se receava, a Comissão não atendeu à questão política central, presente na decisão judicial, a de que o Sahara Ocidental é um território não-autónomo que aguarda ainda a oportunidade de exercer o seu direito à autodeterminação.
Na sua análise o Western Sahara Resource Watch (WSRW) chama a atenção para alguns pontos que considera «altamente questionáveis».
Assim, em vez de aplicar o conceito “consentimento” como destacou o TJUE, a Comissão empreendeu uma “consulta”. E o conceito de “povo” do território foi substituído pelo de “população”. Ora «o Tribunal nunca sugeriu que a 'população' do Sahara Ocidental (que é totalmente diferente do 'povo') é relevante para o assunto», diz o WSRW.
De facto, «o quadro geral de um novo acordo foi iniciado com Marrocos sem qualquer contacto prévio com o povo do Sahara Ocidental». O que significa que «tendo em conta que a consulta fica aquém da exigência de obtenção de consentimento, a maioria dos grupos saharauís não foi sequer incluída no processo de auscultação». Ou seja, «apenas os grupos que foram registados pelo governo marroquino foram convidados a participar, o que exclui praticamente todos os grupos saharauís no território ocupado». Recordamos que 89 associações saharauís enviaram, em 3 de Fevereiro, uma carta à Comissão da UE rejeitando a metodologia seguida na renegociação do acordo com Marrocos sem a participação activa do seu representante político, a Frente POLISARIO.
Só mais tarde foi dada a conhecer a lista das entidades que a Comissão tinha contactado ou convidado. Esta lista mereceu também algumas chamadas de atenção da parte do WSRW.
Dos «actores políticos envolvidos» constam os «dois presidentes dos conselhos regionais do Sul» - a terminologia marroquina para designar os territórios ocupados do Sahara Ocidental e que a UE faz sua – e os dois «parlamentares originários do Sahara Ocidental». 
Mohamed Sidati
Igualmente incluído estava Mohamed Sidati, ministro delegado da F. POLISARIO para a Europa. O WSRW reconhece que em 5 de Fevereiro a Comissão teve uma reunião com Sidati mas que a mesma não estava integrada em nenhum processo de consulta, apesar do seu nome figurar na lista. Questionada pelo WSRW sobre qual tinha sido a agenda do encontro com o representante saharauí e se a mesma tinha sido antecipadamente comunicada à F. POLISARIO, a Comissão (ainda) não respondeu.
Quanto aos «parlamentares eleitos em eleições marroquinas no território ocupado representando partidos que defendem orgulhosamente a ocupação marroquina, de certeza que não representam o povo do território». O WSRW perguntou à Comissão se considera as eleições que Marrocos realiza no território que ocupa como legais, «mas não obteve resposta».
Da lista fazem igualmente parte vários grupos económicos entre os quais está a OCP, a companhia estatal marroquina que explora os fosfatos do Sahara Ocidental, embora a sentença do TJUE alerte no seu artigo 106.º que a questão dos benefícios de um acordo comercial é totalmente irrelevante como condição prévia para a sua legalidade.
O WSRW manifesta ainda a «sua surpresa» por ver o seu nome na lista das associações que rejeitaram tomar parte no processo de consulta pois nunca foi convidado para tal. E esclarece: «o WSRW foi na verdade convidado para um “encontro informal”. Mas o WSRW nunca foi solicitado a participar numa consulta formal que seria relatada ao Conselho e ao Parlamento europeus».
Aquando do encontro, em 17 de Maio, em que a Comissão do Comércio Externo do Parlamento Europeu convidou a Comissão, os eurodeputados ficaram a conhecer as linhas mestras sob as quais a proposta tinha sido construída. Como então deu conta um dos funcionários da CE presente nesse encontro, o novo acordo deveria incluir o Sahara Ocidental, as vantagens do mesmo deveriam ser redistribuídas pela «população abrangida» e ter uma referência ao processo de paz da ONU. Outro funcionário justificou o acordo invocando que «no acordo de associação não criamos obrigações nem impomos encargos ao Sahara Ocidental, às populações e ao povo do Sahara Ocidental – damos-lhes uma vantagem».
Os eurodeputados manifestaram a sua preocupação por esta leitura ignorar a sentença do TJUE e por os funcionários da Comissão terem utilizado a linguagem oficial marroquina para referir o Sahara Ocidental, «os territórios do sul». Como comentou no final um eurodeputado, «o espírito colonial europeu continua vivo em Bruxelas».
Nos princípios de Junho, a conferência interparlamentar organizada por 4 grupos do PE - os Socialistas e Democratas (S&D), a Aliança dos Democratas e dos Liberais pela Europa (ADLE), a Esquerda Unida Europeia/Esquerda Verde Nórdica (GUE/NGL) e os Verdes/Aliança Livre Europeia – sobre «A UE e o Sahara Ocidental: depois das sentenças do Tribunal Europeu de Justiça», exortou a UE e os seus Estados membros a tomarem «medidas imediatas» para respeitar a sentença do Tribunal e a contribuir para a resolução do conflito. Já antes os europarlamentares tinham defendido que a proposta da Comissão deveria ser submetida ao TJUE antes de subir ao PE «a fim de evitar qualquer instabilidade jurídica futura».
No mesmo sentido se pronunciou a Frente POLISARIO através de Mohamed Sidati. «A Comissão escolheu substituir o consentimento do povo saharauí por uma “consulta” e o povo do Sahara Ocidental pela “população local” constituída maioritariamente por colonos». A 16 de Junho interpôs um recurso perante o TJUE para a anulação da decisão do Conselho da UE de 16 de Abril autorizando a Comissão a negociar com Marrocos a extensão do acordo de pesca ao Sahara Ocidental. Ao anunciar esta iniciativa, Mohamed Khadad, membro do Secretariado Nacional da F. POLISARIO, sublinhou que «não só os rendimentos gerados por estes acordos têm permitido às forças marroquinas de ocupação financiar a sua política anexionista como a UE tem contribuído igualmente para esta política ao subvencionar directamente a implantação de infra-estruturas marroquinas em território saharauí ocupado».
Entretanto estava previsto recomeçarem em Bruxelas, neste final de Junho, as negociações UE-Marrocos sobre o novo acordo de pesca, negociações estas iniciadas em Abril passado em Rabat e que, segundo a agência EFE, «se limitaram às questões políticas, sem entrar nos temas estritamente da pesca». De acordo com observadores citados pela EFE «a parte política apresenta-se como a mais complicada devido ao facto de o novo acordo dever respeitar os termos da sentença do TJUE que estabeleceu que as águas territoriais do Sahara Ocidental não estão sob soberania marroquina. Marrocos, por sua vez, considera que a sua soberania sobre estas águas – onde são pescados mais de 90% das capturas da frota europeia – constitui uma “linha vermelha” que está fora de toda a discussão».
Segundo a imprensa marroquina, na reunião entre as partes preparatória do encontro de Bruxelas, Rabat teria duplicado o valor das licenças de pesca a cobrar à UE exigindo agora 800 milhões de dirham, o equivalente a 84 milhões de euros.
 

MARROCOS: ENTRE REPRESSÃO E BOICOTES

A sociedade marroquina está a passar por processos de transformação social de que a revolta no Rif e o boicote aos produtos Danone são dos exemplos mais visíveis. O regime autoritário está a ser posto em causa.

Confrontos e prisões no Rif (leparisien.fr)

 

Em 13 de Junho os acusados no processo da “revolta do Rif” decidiram abandonar as sessões no tribunal de Casablanca como sinal de protesto pelo que consideraram ser um julgamento parcial, visando a sua condenação.
O Movimento Popular do Rif (o Hirak al Shaabi) – uma região no norte de Marrocos - eclodiu em Outubro de 2016 após a morte de Mouhcine Fikri, um vendedor ambulante de peixe na cidade de Al-Hoceima a quem a polícia retirara a mercadoria e a lançara para dentro de um camião do lixo. Este acto levou o vendedor a lançar-se para dentro do camião sendo morto pelo mecanismo de trituração do lixo. Em Maio de 2017, face à continuação dos protestos que ameaçavam espalhar-se a outras regiões do país, o regime endureceu a sua resposta desencadeando uma vaga repressiva que conduziu à prisão e à abertura de processos a 772 activistas e manifestantes, dos quais 158 menores.
Na ocasião, os advogados de defesa denunciaram o comportamento do tribunal apontando-lhe a sua parcialidade favorável ao Gabinete do Procurador, expressa no indeferimento às solicitações da defesa para serem ouvidas outras testemunhas assim como para a audição de partes das gravações policiais realizadas antes das prisões dos acusados. Abdelkrim Musaui, um dos advogados de defesa, comunicou à imprensa que esta, em solidariedade com os seus constituintes que se expõem a duras penas «por atentar contra a segurança do Estado», tinha decidido guardar silêncio durante as sessões seguintes do julgamento.
No dia 28 o tribunal condenou Nasser Zefzafi, Nabil Ahemjik, Ouassim El Boustati e Samir Aghid a 20 anos de prisão. Houve, ainda, 3 penas de 15 anos e 6 de 10 anos. De entre as acusações, para além da «segurança do Estado», constavam as «tentativas de sabotagem, de assassinato e de pilhagem», «a recepção de fundos, donativos e outros meios materiais» com o fim de «atentar contra a unidade e a soberania do reino». Os condenados a 20 anos de cadeia entraram em greve da fome e anunciaram que não recorreriam das sentenças.
No dia seguinte, aquando de um debate no parlamento holandês, o MNE deste país, Stef Blok, pediu aos militantes «marroco-holandeses para prestarem atenção» quando entrassem em Marrocos. Na Holanda existe uma numerosa colónia originária do Rif que tem acompanhado com preocupação os acontecimentos naquele território e os métodos utilizados pelo regime para resolver a situação e o ministro alertava-os para o modo como poderiam ser recebidos no regresso ao seu país, sendo conhecidos casos de quem tinha sido preso ao chegar à fronteira. Na sequência deste comentário parlamentar, a embaixadora deste país em Rabat foi chamada ao ministério dos negócios estrangeiros marroquino onde lhe foi manifestado o desagrado pela observação do MNE, considerada «uma ingerência nos assuntos internos de Marrocos» que punha em causa as relações entre os dois países.
Também a França reagiu às sentenças. «Estamos comprometidos com o respeito pelas liberdades cívicas», disse a porta-vos do ministério dos negócios estrangeiros que acrescentou: «Estamos igualmente atentos à situação económica e social no Rif onde cooperamos com as autoridades marroquinas, através da Agência francesa de desenvolvimento, para o benefício da população desta região».
Mas as principais reacções ocorreram em Marrocos. No próprio dia em que foram conhecidas as sentenças houve uma manifestação feminina em Al-Hoceima, dispersa à bastonada pela polícia. O mesmo aconteceu em Nador, onde várias pessoas ficaram feridas quando a multidão que se tinha reunido no centro da cidade, na Praça da Libertação, foi empurrada de lá para fora.
Entretanto, um curioso movimento está a ocorrer neste país, o boicote a três conhecidas marcas. Segundo conta o jornalista Antoine Fonteneau da TV5, os produtos lácteos da Danone, os combustíveis da Afriquia e as águas minerais da Sidi Ali estão a ser alvo de uma campanha de boicote por parte dos consumidores marroquinos em resposta a apelos «misteriosos» lançados via redes sociais. Segundo ele, «os alvos indirectos são os próximos do rei Mohamed VI».
Iniciada em finais de Abril a campanha atingiu resultados significativos, pois segundo a filial marroquina da Danone esta viu reduzir o seu volume de negócio em 50% ao longo destes dois meses, tendo os títulos bolsistas das outras duas empresas sofrido uma desvalorização. Segundo conta o jornalista, o ministro dos Assuntos Gerais tem sido pressionado para apresentar a demissão por ter tido «o azar» de participar numa manifestação contra o boicote.
Outras figuras relevantes do regime são referidas. Casos de Miriem Bensalah-Chaqroun, dirigente da Sidi Ali, ex-presidente da associação patronal marroquina e uma potencial ministeriável. E de Aziz Akhannouch, milionário proprietário da Afriquia, que faz parte do governo e que é apontado para dirigir a oposição aos islamistas nas próximas eleições.
Fonteneau pergunta: «ataque político ou simples cólera contra a carestia de vida?». E responde recorrendo ao comunicado da organização Transparency Maroc de 19 de Maio: «é todo o governo de uma economia minada pela renda, a corrupção e a interferência do poder, que é visado».

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